quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

PÍLULA CHEIA DE SAUDADE DO MUNDO - Número 34


Tem lugares que lembram vida, histórias, caminhos. Lembram destinos inteiros. Cenas de filme em preto e branco também. Uma brisa que passou pela janela. Amores, amigos, afeições. Tem lugares que são a cara de alguém. Que estão descritos em livros, mesmo os que ainda não foram publicados. Lugares que foram fotografados numa viagem inesquecível. Lugares que se sonha e outros que a gente transforma em quadro com moldura azul. Tem outros que a própria vida vai fazendo. Uma rua, uma casa, uma praça, uma praia. E até uma cidade inteira de memórias. Mas de todos os lugares bons, o melhor é aqui e agora, lembrou Stela, citando Gil. É desse que não quero esquecer. Mundo que penso e que busco por formas novas. Saí da pupa da Pedra do Sal, lugar de bambas, aos pés do Morro da Conceição, na Gamboa, e desci pra cortar o cabelo, jogar pra trás, mostrar o rosto inteiro. Preciso de pele nova, marrom. Pra refletir algum dourado do creme de damasco. Pra interagir, fluir, ouvir o cantar de galo que diz que o tempo passa e o mundo também. Atravessar a estrada do próprio instante. Aí a gente abandona roupas usadas e veste valores. A gente esquece os mesmos lugares e busca um caminho distinto. A gente abre os olhos e só fecha ao bom descanso. É o tempo de travessia. Primeiro numa vila, na Lapinha, depois Belo Horizonte. E aí o destino que liga Minas ao porto, ao mar. Mundo inteiro azul esse. O short jeans, velho, desbotado, bom de usar. Mundo livre esse há. E ser livre é, em meio à angústia da saudade, calar pra ouvir "Summertime" no folhetim. É o centro de Tóquio calado no tempo, talvez 75. É ver trens, aviões e nuvens passando. Dá pra ver a lua cheia a olho nu. Artistas, malucos-beleza, famílias inteiras em busca de encontros transformadores, únicos. Mundo resistente esse. O da força da alma em não ceder à falta de ar. Estou falando de Kiki Joachin. De viver como se não houvesse mesmo o amanhã. De comer o doce predileto, abraçar um cachorro, fazer foto com quem se gosta, batizar estrelas com o próprio nome, acreditar que uma partícula pode explicar o mundo. Mundo de símbolos esse. De eternidade, enchendo a graça da gente de esperança tardia. Mundo de alarde. De topless em St. Bart. De Cris com esmalte fluo. De Dorgi em lítio e entropia hipster. De Mickey e Mallory em "Natural Born Killers". De Dalila atravessando uma faixa de pedestres. De Etiópia, regime híbrido, museu de povos, novela meio esquecida. Mundo inesperado esse. O sumiço de Alex O. e o sorriso de Alex O. num fim de semana em Santo Amaro. Mundo quente esse. Bom de chupar picolé Capelinha no Solar do Unhão e desapegar, como Nalim costuma sugerir. Ela que chegou, abriu portas e janelas, e foi. Minhas irmãs também vão. Meu filho vai. Pra onde vou? Fico tão cheio de saudade que qualquer beijo de cinema me faz chorar contido, meio que escondido pra depois aliviar. Se eu dominasse esse mundo, cada dia seria o primeiro do verão. Cada coração teria uma canção predileta. Toda manhã a alegria nasceria repentina. Esse mundo seria um lindo lugar para se tecer sonhos e sorrisos nos rostos vistos. Em cada céu, um por-do-sol. E garças brancas no amanhecer. Sem sombras de esquecimentos e árvores alheias. Mundo pra se ver gente, regar plantas, amar rosas e preparar-se ao infinito, ao mar. Um dia, num mundo saudoso assim, a gente aprenderia a amar.

Marco Antonio J. Melo

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

PÍLULA DA BUSCA POR BOAS NOTÍCIAS - Número 33

Imagem da Praça Tahrir, no Egito

Busco uma boa notícia. Ainda é mais cômodo esse percurso do que ser o poeta da esquina que recita versos pra uma multidão que só deseja as vestes. Conheço pessoas, por exemplo, que não sabem que o Haiti é aqui, na América, e não na praça Tahrir. Ainda me impressiona saber que os habitantes de Port-au-Prince, capital do país sem nação da Ilha de Domingos, estão no limite da barbárie. Ainda fazem fogueiras alimentadas com corpos. Os "fortes" matam por pouco. Os "fracos" dormem pouco, nas ruas, longe dos restos da cidade e perto uns dos outros, na vã tentativa de evitarem a morte e o roubo daquilo que não mais têm. Parece ser a volta dos tontons macoutes, agora sem um único Papa Doc. O Haiti é um lugar ou um furo? Porque os do Egito se satisfazem em cima do muro. Procuro uma boa notícia. Um registro sísmico da alma. Para sorrir como Dona Tereza. Uma gargalhada farta e genuína, mesmo sob o som da chuva no telhado de zinco. "Dá água na boca", justifica ela sobre o riso alongado. Na pequena TV, ligada na cozinha, enquanto Dona Tereza servia bolo de erva doce, via-se uma reportagem sobre duas ossadas encontradas na Espanha, datadas de 6 mil anos atrás. Ossadas de duas pessoas que estavam abraçadas, num suposto vínculo de amor. Afeição, querer bem? Ou atração, satisfação? Descubro uma boa notícia, uma resposta aguda a uma pergunta astuta. Mas nem sempre o que escrevo ou o que sou desperta sentimentos semelhantes. Para Di, o neologismo cunhado (e mal dito) é chamado de "pilulismo". O que significa - ainda que sob circunstancial mas cruel sarcasmo - algo que não lhe parece claro. Ou clarividente, como diria um bom amigo, outra vez aprisionado. Talvez, para Di, não seja tão óbvio que eu esteja me referindo a Di Cavalcanti, imerso em dúvidas quanto à sua liberdade como homem. São as armadilhas do senso comum. Porque falo mesmo para confundir, enquanto ele continua estando, não sendo. Divulgando notícias, enquanto desejo tão somente as boas. "Você tem uma sensibilidade, uma peculiaridade comportamental, uma forma de escrever caprichosa (caprichos supérfluos explícitos e tal). Às vezes, isso vaza aqui e ali, e, de repente, você, em seu também egocentrismo, nem nota que se entrega", disse, a mim, William, um bardo às avessas, afeiçoado ao mundo particular. Thalles, homem médio, equilibrado, sem excessos e sem carências, foi ainda mais lacônico: "O que você escreve é uma baboseira. Não tenho paciência". Torno públicas as boas notícias, pois. Em maior número possível, porque me parece que o mundo gosta é de destroços, mais visíveis na madrugada. É uma garagem em pedaços ali, bolsas e sapatos jogados no chão de acolá, uma segunda-feira inóspita adiante. Quanto espaço sufocante. Minha semana, portanto, só começa na terça. É quando cedo ao trivial. Volto à área dos fundos da Casa d'Arquitetura, sento no banco de madeira gasta, fumo um cigarro. Por vezes, Lara, Aline e Ana me acompanham em amenas conversas de primavera árabe ou verão. O sol acende o vermelho da parede sem grafites e as pétalas de flor de pitangueira forram o chão. Nestas horas passageiras, sinto saudade do pequeno grande Ícaro. Não mais o verei por longos meses. Sinto o cheiro de boa comida que vem do andar de baixo. Sinto a sombra de um lugar real. Boas notícias são bem-vindas, como brisa na face em dia quente. E qual dos rostos é o meu? O que espreita o mundo, o zeitgeist, ou o que olha pra dentro, pro espírito do tempo interior? Há oito anos, enviei um e-mail ao codinome Vezzio. Exatamente às 14h56 do dia 25 de janeiro. Do rebordo, eis que ressurge esta pessoa com outras informações e lembranças. Pergunto se o limbo está no mapa dos meus sonhos. Como o que se repetia quando criança. Toda noite, eu caminhava por um campo sombrio, sob a lua cheia, então via um sobrado antigo e uma árvore espessa. Escutava o som de um piano, via luzes acesas e acordava. Que venha desse lugar descascado pelo tempo, desse purgatório, boas notícias. Mesmo que sejam, no fim das contas, um lugar comum.

Marco Antonio J. Melo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

PÍLULA DO QUE FALO E DO QUE CALO - Número 32

Imagem hiper-realista de Alex McLeod

Quero falar de ausências. Falta de grana, de portas abertas, da compreensão de algumas pessoas do meu círculo, falta de alegrias repentinas. Quero exprimir a sensação de impotência, abatimento, de carência e sufocamento. Passa-se meio segundo e quero dizer outros sinais. Do impacto de trinta bombas atômicas. De 200 mil mortos. Dos que ficaram, que agora saqueiam, roubam, estupram e matam. Quero discorrer sobre o estado de vida "solitário, miserável, sórdido, brutal e curto", do qual escreveu Thomas Hobbes há séculos. Da guerra de todos contra todos. Quero falar do embate espiritual com a morte. A velha senhora que palita os dentes, como asseverou Lya Luft. Amarga morte, de semblante falsamente piedoso, que se esgueira pelas frestas do portão da vida e pelo corredor da espera, de cabeça baixa, minando os vestígios do tempo. "A melhor invenção da vida é a morte", sentenciou Jobs. Estamos cercados por este querer. O mundo inteiro está vendo, por cima, por baixo, pelos lados, andando, voando, acenando. Cercados da cessação definitiva. Da imobilidade e extinção. Quero expressar a perda de beleza, de afetos, de cobrir e descobrir, do tempo de paz ou mesmo o de luta. Há muito grito, pouco amor. Quando penso num dia, passaram-se anos. Quero perguntar se ainda há tempo de mudar um pouco o mundo. E quero também afirmar as esperanças. As almas soterradas que são salvas. A motivação genuína em torno das tragédias dos dias. Como uma prece, uma oferenda, um próximo passo. Como um rito de passagem do instante. Do lugar sagrado, do tempo, do bosque e do coração. Do universo em comunhão. E da roupa que foi guardada para este dia. Dos anônimos que desejam mudar, crescer, mesmo que doa. Do respirar coletivo, um ato venerado. Quero discorrer a angústia no entulho da frente de casa. Descer, caminhar, lutar contra o termo. Quero declarar guerra contra a falta de contentamento e o terremoto de alguns graus no assentamento da minha relação com os outros. Quero me conhecer e pensar que passa. Que pode ser um vislumbre iluminado na paisagem triste. Ao som de "Alley Cats" repetidas vezes, quero falar, conversar breve, suave. Amar o que faço, ainda em vida. "Eu queria falar de música e partida", disse Brena, contemplativa. Pois quero manifestar. Flertar com as três gordas meninas. A vestida de bolo, a do velório, a do nada. Quero contar o amanhecer. "Irresistível", descreveu Ana Karla. Quero um dia ser como o dia, inspiração. Apostar no belo do estranho, coser Pina Bausch e Caetano, falar de memória e amor. Exercitar o senso de humor. Para o estranho, dizer: "Obrigado pelo vinho rosé". Quero discursar ao púlpito. Ser político, diplomata e jornalista, historiador e jurista. Ser poeta. Ser. "Vem dormir no meu terraço", convidou Juelton. Vou com robe de seda japonesa, malas Louis Vuitton, tirar a camisa em público, no colo deitar e, sim, deixar falar. Unir os eixos de mim, ao gosto do picolé de amendoim, da camiseta Beach Culture. Filosofar o riso e professar o pedido pra que devolvam meu sol de luz perpendicular. Deixar que um novo alguém pouse os olhos em mim, que me coma e me beba um copo de mar laranja profundo ao navegar o meio do mundo. E se, ao lado desse oceano de ausência, num sopro de solidão, eu ouvir outras vozes falando, quero calar em devoção.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 22 de novembro de 2011

PÍLULA DA VONTADE DE SER LIVRE - Número 31

Fotografia de Luigi Ghirri

Desde antes de nascer talvez eu saiba que tudo na vida tem um certo fundamento. A própria vida é um edifício com base sólida. Não é das construções que se vê com constância pelas avenidas, pois se faz raro o viver a vida, enquanto mais comum é ver os prédios conformistas das pessoas que apenas existem. É mais fácil, hoje, dizer que as coisas são frutos de explicações naturais. Perdeu a graça falar em milagres, acaso, sorte ou destinos pessoais. Sobretudo se movidos por estrelas. É mais fácil provar uma metade do que ser grande ou inteira. Do que ser todo em cada coisa boa, como escreveu Pessoa. Do que ser livre. Aliás, a liberdade é, dos fundamentos, o maior de todos. Maior que o adágio da vida, até. Na última madrugada escrevi, exausto, no mural: terminei a análise de uma extensa pesquisa. E, logo em seguida, questionei como se olhasse em meus próprios olhos: estou livre? Ninguém leu, ninguém curtiu. Muitas pessoas sequer assistem filmes inteiros, como fez, encantado, Fabrício. Talvez nem saibam sobre o Barravento. Nem ouvem jazz. Não sabem sobre nós, prós, contras e sobre imperfeição. Certa feita, enquanto caminhava, ali pela Lisboa, um sujeito de meia-idade, já entregue às rugas, perguntou-me as horas quando, no fundo, queria mesmo uma compensação. "Saí do trabalho tarde e, na verdade, queria encontrar alguém", disse-me, preso em seus próprios vícios. Eu mesmo tenho os meus. E aquele velho pode ser eu. Tenho vício de mar, quando também poderia provar rio de água doce. Vício de amar por uma semana. De observar o mundo e congelá-lo em letras e fotografias. Tenho o mau costume de olhar todas as provas. Esbarrei, uma vez, em fotogramas de um homem obeso, feio e nu. Faltou a mim idoneidade e, a ele, decoro. Não, não sou livre. Estou sempre sujeito a domínio estrangeiro e restrições. Não ganho mesada, não tomo Chandon, nem teço considerações. Aceito as caronas oferecidas por quem dirige um carro que também é meu. Já vi mais de três mil vídeos pornô, mas não fiz nenhum. Não apalpei ninguém, mas permiti que me tateassem a alma. Constatei, atônito, a figura altiva do tempo em minha própria barba. Para Marcos, isso é viver. Numa frase síntese, ele pareceu desprendido de qualquer calabouço. Enquanto eu questiono minha aptidão para vender ou tirar moedas do próprio bolso. E, do calor que faz agora, esta aflição. Logo eu, que sempre gostei do verão. É o tempo - este, sim, livre - zombando da minha limitação. Vanessa perguntou, então, o que parece ter valor universal para mim. Trabalhar, escrever, publicar. Baixar discos por dia, assistir filmes e ler mais revistas que livros. Fazer yoga, nadar, fumar vez em quando. Cuidar do pequeno, da família, do campo. E do quarto, que é templo, mas nem tão amplo. Sair, respirar, dançar em alguma pista. Viajar, não tanto quanto eu gostaria. Exercitar a ortografia do sorrir. Caminhar ouvindo música, beber cerveja gelada e dormir. Tentar, tentar outra vez e coisas mais que não posso declarar. Vanessa, em mais uma sinopse real, perguntou-me, tirando do meu rosto o sorriso ideal: "Tudo em você é sempre fantástico assim?". Não, não me faço livre. "Siga suas intuições", costuma dizer Nalim, numa inversão de valores. Antes, eu a aconselhava. Hoje é ela quem faz os ditames da razão. Eu nem sequer cumpro minhas penas em liberdade. E veja que nem sou antiamericano, nem nacionalista, nem estatista. Não sou politicamente correto, nem fanático e nem mesmo um homem prático. Sou tolo. Um bobo humanista. O que me faz calar é o som de um mensageiro dos ventos. É atravessar a rua pra falar com alguém. É viajar de moto por uma estrada de terra. É assistir "Um Lugar Para Recomeçar" só porque Mitch Bradley deseja ver o mar. E roubar araçá no quintal de Seu Cajaíba. Crer em disco voador. Escrever para Leandro Sarmatz, dizer que sonho em ser livre e acreditar que terei respostas. Não, não tenho o poder de qualquer proposta fazer. Ou pensar como Lucas, em que a Liberdade é seu lugar favorito. Ele, naturalmente, se referiu ao reduto de japoneses em São Paulo. Eu falo do estado da alma. Da vontade de ser livre e diferente pensar. É isso que mereço ter e que desejo saber pra, afinal, feito um oriental, me libertar.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 8 de novembro de 2011

PÍLULA DA CAMINHADA - Número 30

Cena do caminho para Woodstock

Estou pensando em privilegiar certas ações para a vida. Não sei se posso chamar de ativismo ou mesmo tendência para sentimentos religiosos. O que me move é a leveza da observação. E a tentativa de mantê-la frente às adversidades que começam a fazer convites para o enfado. Quero ir às ruas por incômodo ou fardo. Fazer como na praça Zuccotti, uma ocupação. Juntar-me aos hippies, punks, aos veteranos de guerra com seus rabos de cavalo já grisalhos, às saias coloridas de Bali, às rasteiras de couro, às gentes dançando ao lado, tocando sax, sanfona ou violão, batendo palmas, panelas e vassouras com os hare krishnas, entoados pelo cheiro forte de incenso, o cheiro da ocasião. Não dispenso também os de paletó e gravata, as senhoras de trench coat e as outras que distribuem sanduíches de queijo, bife, tomate e pão de sal. Dos lugares que vou caminhar e das pessoas que desejo ver, a regra é a da diversidade e nada de mal. O único partido que tomo é o de poder escutar Beirut. Em coro, para que a voz, assim em uníssono, alcance o viaduto, a caixa d'água, o mar de Venice ou Salvador. A luz pode ser a de 70, granulada, algo estranha e antiquada, refletindo nas construções, como num filme em super-8. Nessa marcha pública de resgate à alegria, a gente não precisa de polícia todo dia. O que a gente precisa é não esquecer o rosto um do outro e dormir nu, resistente, na cama de um hotel. A gente precisa romper com a poesia de ontem e reatar o verso de hoje. Não envelhecer, jogar o mundo inteiro na mochila pra não morrer. Sim, o sonho não acabou. Vou caminhar com os pés no asfalto ou na areia, colocar os sinetes nos tornozelos, pedir carona na estrada da esperança, descer as ruas, deixar a luz do sol entrar e me apaixonar eternamente. Quando eu sair, não vou bater a porta da frente. De vez em quando e tal, mando um postal. E quando eu estiver cansado, volto o pensamento à brandura, tiro a mochila das costas no meio do caminho dos dias e a brisa vai refrescando o suor. Vou seguindo, tirando o pó da roupa e remendando a intuição. Contribuição coletiva? Por que não? Gentileza, cortesia? Nada em vão. E, da porta da casa do mundo, verei um filete luminoso de lua e estrela, no azul profundo do céu noturno de verão. Chamo de céu do Oriente. Abaixo dele, o sorriso do Éden, o olhar azul-esverdeado de Mi do Carmo, as mãozinhas de Luana sobre as minhas, o sotaque mineiro de Graci, as vozes de Clara, Denise, Caíque, e as três meninas Marias chupando pinha na saudosa Angola de Ciro, na orla, na João Pessoa. Ou jabuticaba, laranja doce, manga madura da boa. O céu agora é cor abóbora. Ali, por trás dos eucaliptos. Tem cheiro de figo e de chuva no ar. E as pessoas caminham pelas árvores ou para onde for além de lá. É uma gente assim tão minha, que eu, simplesmente, vou. Do meu coração febril sou portador. Vou para uma Wwoof para trabalhar, viver novo estilo de vida, cuidar de jardins. Lá terei lugar para cozinhar, outro para dormir e capela para orar. Lá vou fazer yoga e meditação. Espalhar amigos pelas mesas e eles se apropriarão, se juntarão todos numa longa chaise, sem idade e sem gêneros, e serão universais. Talvez eu queira viver e ter venturas, sentir e ver diferente das estruturas atuais. Mas o que quero mesmo é poder escolher. Criar ou recriar, vestir-me de cores ou continuar nu, ler Quintana ou Chico Buarque de Holanda, experimentar todos os amores e entregar-me a todos os sabores. Eu quero ter esse poder sem pudor. E, caminhando com os outros, eu vou. Sem muito papo, sem muito explicar. Cheirando a gosto de mar, feito sábado, feito príncipe, pássaro a flutuar. Eu vou do jeito que sou e não quero nem conversa com quem não tem amor. Pode até estar às moscas o meu coração bobo, como dizem. Mas, como se lê no cartaz da caminhada, meu coração não tem corrupção.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

PÍLULA DO TAO DO AMOR - Número 29

Fotografia de Luigi Ghirri

Sabe quando você se sente confortável em ficar consigo mesmo? Alguns chamam de egoísmo, o que, mesmo assim, não diria respeito a mim. Outros apontam a condicionada reflexão do ano e do fim (mea culpa). Prefiro pensar que são os limbos do pensamento. A coluna do meio. A fase de transição. E estou trocando a pele, sem nenhuma camiseta estampada pra maquear o alvo do tom do coração. Estou com Mari Kaoos, trazendo o vento. Ouvindo bossa nova em inglês. Criando gestos simples, exatos, e sei por onde devo andar, bonito e dedicado. Sei que, de tantos, meu irmão Breno é um dos que valorizam este aceno acertado. É um dos que exercitam comigo o tao do amor. Nada de comovente ou afetado, estou falando do tal do amor. O que alivia. Inculto ou declarado. É um imenso esgalho dentro de nós que dá pra meio mundo. E por falar nesta parte do universo habitada, resolvi remexer nos livros, na poeira das páginas dobradas. Separei um de trechos de fé, um outro do Dalai Lama e o de bolso, escrito por Almodóvar, presente de Jhon. Dedilhei os discos e dei por falta de alguns. O "Get Ready", do New Order, uma coletânea de lados b do Everything But The Girl, alguma coisa de soul, entre outros títulos perdidos. Pérolas de confessionário. Como em "Querelle", o francês. Como nos textos de Oscar Wilde. Ou na voz de Jeanne Moreau dizendo que todo mundo mata aquilo que chama de amor. E a paisagem é o porto de Brest. De novo, o tao do amor. Esse culto aos espíritos ancestrais. É como colocar o rosto pra fora da janela do carro, passar as mãos nos cabelos, sentir o vento que chamamos e simplificar a vida neste sinal. É o que diz meu mapa astral. Então, vi Indira, Suca e a pequena Valentina de mãos dadas num passeio. O venerado amor caminhando. Nestas horas nem preciso de cigarro pra descrever estas breves perspectivas. Nada mais de Paris dos cafés, dos maços de Gauloises, do elmo alado dos gauleses invencíveis. "Um dia vamos viver em Paris. Vou te levar ao club showcase. Te apresentar um garoto francês. E, toda noite, observaremos as estrelas". Não, Ed MacFarlane. Tentador seu convite, mas só quero seguir a coragem do meu coração. De algum modo, ele sabe bem o que realmente tem de ser e onde quer estar. Basta o fascínio de me imaginar em outro lugar. Pode ser o Nepal. Sobrevoar Sagarmatha no primeiro dia, o rosto do céu. No segundo, fazer só o que for do meu gosto. Na terça, aprender com os erros, mas não parar de errar. Quarta eu vou tomar decisões sozinho. Quinta pegarei uma estrada alternativa. E sexta, entre um encontro e outro, o tao do amor. Vou riscar minhas mãos com tinta de caneta. Fazer cócegas, cheirar revistas, livros, papel novo, comer yakisoba devagar. O piercing do nariz, tirar e colocar. Esticar os braços pra cima. Respirar e me sentir cinestésico no espaço. Posso até não chegar ao amanhecer, mas tenho um futuro enorme à frente e um pensamento mágico incandescente: nada há de me acontecer. Nada que seja do gosto do caos, do desespero, da lágrima ou dor. Nenhuma perda de movimento. Ninguém bradando o fim do mundo. Os emissários do medo dizem que sou mero sonhador. Que seja, melhor mesmo antever o mundo como um sonho. Ou a mais incrível invenção. "Quem inventa o mundo, o absurdo de acharmos que somos únicos. Quem inventa eu, você, outrem, outrora, a hora, agora". Quem inventou a fé do coração sabe muito da alma, não é mesmo Kaike? É que lá, do alto do décimo segundo andar da linha do horizonte sobre o mar, existe uma alienada chamada esperança, e uma outra transtornada chamada razão. Ali, em meio ao verão, sob os sons das cigarras, sentado na mureta de uma praia qualquer, talvez Itacaré, farei um afago, um carinho. A propósito, rapaz, o tao do amor significa caminho.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 11 de outubro de 2011

PÍLULA DO REAL E DO IMAGINADO - Número 28

Fotografia de Kenji Onglao

Às vezes penso que os dias meus parecem um tanto excêntricos. Eu mesmo chego à conclusão de que lembram roteiros fantasiosos sim, mas nem por isso ruins. A julgar pelo que escrevo, pareço mesmo conduzir as palavras para impressionar, emocionar ou ativar o riso fácil. Ora essa, isso não me daria especial talento? A maioria até sugere que eu lance um livro. Eis que tento. "Compraria todos os seus, se os fizesse", disse Júlia, certa feita. Seria um livro cheio de sabores, a propósito. Uma salada de alface americana, agrião, rúcula, azeitonas pretas, berinjela, macarrão fuzille, passas, tomates secos, verdes e fritos, mozzarella, lombo e frango desfiados. Mesmo com todo este diverso gosto, aviso aos desavisados: os absurdos contados são estranhamente reais, ásperos e crus. Uma noite dessas, por exemplo, resolvi caminhar às 23h, desafiando o silêncio. Um cheiro fétido senti em várias partes da cidade. Urina ardida, peixe estragado, esgoto a céu aberto, lixo apodrecido, rato morto, flatos, ralos e gases outros. Tirei o piercing do nariz pra ver se o problema estava em mim. Perto de casa, um bêbado gritou: "Eu não sou ladrão! Eu não sou ladrão!". E perguntou como fazia pra se chegar assim em Itabuna. "Desce esta rua direto", apontei para a direção do tempo. Em casa, quando liguei a TV, alguém cantava: "Pense no Haiti, reze pelo Haiti". Deitei e dormi. Sonhos esquisitos estes que tenho. Eu dirigia, mas o acelerador não funcionava. Ainda assim, o tempo passava. Depois acabou o óleo e o moço do posto demorou um turno inteiro pra dizer: "Volte depois". Quando passei pelo sentido Rio-Bahia, um homem atirou pedras em meu carro e gritava, enlouquecido: "É meu, é meu! Mas não consigo!". Cheguei em casa e Gil estava lá, vestido com um incomum pijama, revelando o segredo do universo à minha mãe. "Onde está o carro?", perguntou-me. "Creio que roubaram", eu disse, como se soubesse. Imediatamente, surgiu, do nada, Neto, o vizinho do boteco vazio. "Quanto você pode me pagar pra eu dizer?", chantageou. Lembro, ainda, de ter visto, ao longo do caminho impreciso, um pássaro de cauda longa, um homem desalinhado pedindo cigarro e três velhas sulcadas e mudas, que me observavam. E também um pequenino garoto, atrás de um portão, apontando o dedo noutra direção. Perto de Candeias, um outro garoto que chorava deitado ao chão. Vi um professsor travesti ensinando educação física a um anão. Um calendário que comemorava o Dia do Roubo. Albinos assassinados na Tanzânia, para que fossem pendurados seus membros no alto dos cembros. Duas belas meninas siamesas que me ofereceram picolé. Vi Giovanna preparando um jardim no rodapé. Descobri o significado da palavra desfastio. Fui pra uma festa em alto-mar e decidi a hora exata de abandonar o navio. Ganhei de Lívia um butter toffes de caramelo na manhã de um sábado nublado. Charlote cantou fado para mim. Só pra mim e pras estrelas. Tomei vinho com Rachel, saltei os olhos de uma sacada até o distante horizonte da cidade iluminada. Marcamos um café e uma viagem a Nova York. "Você se sentiria em casa", disse meu pai, de algum lugar. Questionei essa possibilidade tridimensional. É que o mundo de fora, que chamam de real, talvez seja uma mera fantasia para escolher. Este mundo que tenho feito, meio torto, tenho tentado mais bonito o fazer. E dispus, bem escrito no diário, em várias línguas, que tudo que passo e sei, sonhando ou acordado, posso escolher ser tão real quanto imaginado.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 4 de outubro de 2011

PÍLULA DA ARQUITETURA DO MUNDO - Número 27


Helder, certa vez, disse algo muito franco, mas raro de eu escutar: "Aprendi com você". Fiquei surpreendido. Não por agitação ou impulso, mas por tentar definir o que ele queria exatamente exprimir, ou mesmo pensar e construir. Sim, acredite, fico sensibilizado com estas manifestações. Deve ser meu renovado exercício de observação dos pormenores do dia ditando outros olhares para também outros lugares, cores, objetos, texturas e projetos. Com vento no rosto e despreocupação favorecida pelo corte de cabelo desfiadinho, meio que me sinto um shaper, sem a pele bronzeada, claro. Mas a favor das ondas, dos sons da madeira de demolição, dos papéis de parede, das cidades inteligentes e de outros aspectos de ocupação. Eu sei, no fundo, que, além daquele horizonte, existe um profundo lugar, aqui, ali, um qualquer lugar. Creio que meu desejo é que o espírito workaholic fique um pouco pro lado de lá, distante da minha sombra. Quero andar sorrindo por um tempo, olhar direções horizontais e verticais, traçar uma rota. Ver chuva e sol na pista. Ver lugares sólidos, uma flor na Venezuela, os Recifes, o São Salvador, e também lugares imaginários, em que nada é e jamais parece ser. Esse é meu cenário, minha arquitetura de ideias multifacetada, curiosa, inclusiva e iluminada. Meu loft figurado. Só forma, imagem e concepção. E quando eu chegar lá embaixo, no canal reformado, vou ver as pessoas tomando banho, sem pudor, e sem indecência também. Um banho de essência com cheiro de invenção. Gente queimada, sarará, num sofá improvisado sobre a água do mar. Vou ver Niemeyer, Weinfeld, Kogan ou Botta a vagar, ao lado e adiante de uma mulher bem vestida, caminhando sob o guarda-sol. E uma outra de calça Neon, bem bohemian chic, passeando pelo farol. E uma criança fofa com cara de choro, à frente do tempo, como num movimento de Berlim, numa cidade em ebulição. E um operário com macacão fluo pedindo água ao vizinho. Meu alterego sentado no jardim, sozinho, de cabelos longos, formando um lótus na posição. Eu vou pro Japão. Transpirar arte, design, gastronomia. Cessar-fogo à correria da esquina da rua estreita. Ver um dândi moderno e pensar que sou eu. Apurar meu senso estético, meu bom gosto e frescor. Ter dia, noite, frio e calor. Preto, branco, luz e escuridão. Passar ao largo das ambivalências e ao lado das casas coloniais demolidas. Eu, pacientemente, sorrindo, esperando, vestindo a mesma padronagem colorida ou o mesmo tom. Ou o que combine e descombine, não importa. Seja lá o expressionismo de Paul Klee, o simbolismo de Munch, o color block de Warhol, o passo, o traço, ou bem mesmo o azul de Picasso. Eu vou, simplesmente, vestir. E, descalço, pisar no gramado molhado. É uma sensação quase indescritível. É como beber água gelada e deixar molhar a camisa. Sensação de verão refletindo meus gostos pessoais e certo universo em mim. Na tarde do fim, ter a chance de ficar com aquele ar de menino que vê formas nas nuvens. Aquelas estruturas de máxima mobilidade e leveza, ou de algodão. De repente, os tons de cinza se chocando. Uma guerra entre o claro do céu e a previsão da chuva. No meio do vão livre, as pessoas correndo com certa aflição. Eu? Fugir de chuva de verão? De jeito algum! Água assim é minha sala de estar, meu pé-direito duplo, meu mezanino, meu avarandar. Saltando entre uma poça e outra, é que eu vejo a água lavando tijolos aparentes, portas pivotantes, puxadores, platibandas, gentes. Daí chego em casa, seco os olhos e as mãos ao alcance, como um bolo mesclado feito por minha mãe e, de relance, está tudo bem. A chuva, no fim das contas, é um refresco de abacaxi com hortelã. E quando ela passa, fica tudo em volta, assim, com aquele efeito de luz do dia sobre a grama do jardim. Tudo tão integrado, como uma boa conversa sobre hoje e amanhã, uma palavra cantada ou uma imensa boutique afetiva das memórias amenas da estação. Lamento não ter visto Otávio, não ter conhecido seu filho, não ter exorcizado o passado antes da chuva. Lamento até o ângulo obtuso de minha irmã Bia ou não ter ganhado esta semana na loteria. Até que gostei de ter ficado em silêncio por estes dias, de ter comido um Bombom de Filé Bistrô e repetido os salgados chineses. Mas nesse meio tempo, eu gostei mesmo é de ter as vezes da arquitetura do mundo. Tenho certa ânsia de ler e reler este sentido das coisas por um segundo. Pressa de viver, dentro e fora de mim. Tantos traços e formas me interessam, mas nada tanto assim.

Marco Antonio J. Melo

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

PÍLULA DO DIA SEGUINTE - Número 26


"Aos amigos o calor, aos inimigos o pavor", disse Jean, encerrando uma ótima conversa sobre os dias de toda a vida, atribuindo a frase a Caê, mas também referência a um provérbio popular. De toda forma, é sentencioso. Nestes dias, em que estou mais no quarto que no mundo, o que tem preenchido o tempo e os poros são as afeições recíprocas e a combinação de sons, seja na forma de inquietação acelerada, o que, invarialmente, me faz dançar de pijamas e meias sobre a cama (se for sozinho, "I Follow Rivers", de Lykke Li, se juntinho, "Human Nature", de Michael), ou no exercício da serenidade do espírito, que me desobriga de emitir qualquer opinião sobre o estado das coisas. Na verdade, isenta-me de escutar minha fanhosa voz, o que dá ao silêncio o caráter de sonora virtude. No último domingo, recebi, em minha casa, em meu quarto, Milly Fada e Barbarella, personagens reais, para almoço em família e para uma oração, exercício de fé e proteção com a leitura do Evangelho. Também folheamos revistas de arquitetura e decoração, olhamos fotografias antigas, descansamos dos deveres, provamos goiabada com creme de leite, tomamos sorvete, rimos. Para dar tom a tudo mais, som. Se tem um combustível imprescindível (e insubstituível) pra eu tocar as horas? Música. É o que dá liga e faz cheirar a casa inteira de passado, presente e futuro. Mais até que diários, poesias, fotografias, ou quaisquer outros entulhos carregados de poeira. É minha ferramenta pra acordar em incendiária e certeira presença feliz. É a sombra pra eu tomar sol por horas e realçar, da pele, o verniz. E para um caudaloso banho com volume no último, impressionando minha audição. Para caminhar nos passeios, meios-fios e ruas com fones de ouvido, imaginar outros explêndidos cenários escondidos no seguir. Num passo e depois noutro, não desejo nem conversa. Só vejo gente certa, gente aberta, gente minha que caminha a partir do que eu ouvir. Meu único desejo em tomar a direção das letras, é porque darei voltas e escutarei alguma coisa que me faça sorrir. Até pra chorar, pra saudade esvaziar, música. É pista de folhetim, assunto de bate-papo, é meu dramin de viagens. É a cor do som das paisagens lá fora. E nem ligo se canto alto, sem pudor, com energia extra tomando corpo afora. Meu sintoma é o de uma trilha sonora, ainda que certamente desafinada. A que, por vezes, faço na madrugada e que só se sabe depois de feita. Para a canônica hora que se aceita, "Gloria", de Laura Branigan. Para passar pelos grafites do Beco, Beirut. Para as entendiantes segundas, o "Gosto do Prazer". E parar só o tempo, sem rasgar e ser a manhã, Joss Stone em "The Good Care". Para cruzar os braços atrás da nuca, qualquer composição de "Cor-de-Rosa e Carvão". Para conter a irritação, o som submerso na água da piscina. Para que saber que horas são? Ou pra que serve uma canção como esta? Para salvar no pen drive, em versão rhythm'n'blues, a clave de sol Beyoncé. Para as horas mortas da noite, "Depois de Ter Você". Para fechar os olhos, eu, ouvinte de minha própria respiração. Para o dia seguinte, pílula. E alguma outra canção.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 13 de setembro de 2011

PÍLULA DO POSTO DA SOLIDÃO - Número 25

Fotografia de Sonya Kozlova

Recordo os dias em que cunhei um posto da solidão em minha geografia, na tentativa de evitar o tempo em que eu perdia planejando encontros. Para estabelecer um ponto de apoio é que eu elegia lugares assim. Um lugar de esteio que se coadunasse a mim. A regra sempre foi simples e de inconstestável eficácia: eu saía só, sem avisos prévios, e deixava as horas passarem, às vezes até a alvorada. Nesse espaço-tempo, ficava por ali pelo centro da cidade, sentado na barra de ferro da loja de conveniência ou circulando no quarteirão, com água ou cerveja nas mãos, caminhando até a igreja, sob a antiga e imensa árvore onde Purki escondeu, na copa, talheres de ouro. Fortuitamente, portanto, eu encontrava pessoas. Entenda o casual como sendo seu oposto imediato, ou seja, todo o tempo eu via e, por minha vez, era visto. Ainda assim, eu testava o limite entre ficar só e solitário, e, nesse misto, acumulava histórias alheias, relicários. Meu único senso era o da observação, e não o da caça (eu, caçador de mim?), como certas vozes levantaram em falso testemunho. Por ali eu sentava, colocava fones de ouvido e me entretinha em algum suplemento para o olhar. Ali, por exemplo, reencontrei Well. "Só por hoje", repetíamos um ao outro, reproduzindo o adesivo de um carro em passagem. Imagine que Well mora na cidade há nove anos, sempre circulou pelo Centro e jamais cruzou meu caminho. São as coisas que se sucedem num bom estado daquilo que posso chamar de um homem sozinho. Se bem que fama, às vezes, faz minha cama. E a de Luciana. Certa noite ficamos a lembrar dos restos mortais da Sociedade do Poeta Morte e cada um de seus também perecíveis membros. Lu ainda lamenta os velhos delírios do tempo. Eu, nas madrugadas, prefiro encarar fantasmas presentes. Quase sempre tomam a forma de espectros adiposos, prolixos, desdentados e aborrecidos, calçados em pesados sapatos. Eu me desprendo deste teatro de devaneios e escolho ficar só. E descalço, absorvido em minhas generalizadas limitações e rodeado pelas paredes azuis do quarto. É um hiato que há de durar, este de escolher meu quarto como o mais novo lugar de impressões. É lá que tenho autonomia e totais condições de seguir, ainda que na esfera neblinada do devir, ou, por vezes, ensolarada de um horizonte pouco linear. No meu quarto, mudo inteiro. Ou mudo só os móveis de lugar. E, se o dia amanhece, desperto espreguiçado, ainda com o bom do riso de Danfer. Não é um jeito delicioso de começar o dia? Faço fotos das sombras do meu corpo nu e publico. Pra mostrar que, pelo menos, minha pele mudou. Passo as mãos no verniz sobre a madeira da mesa que resgatei do meu avô, ainda com os restos de tinta das telas de minha mãe. Acendo um incenso de mel e escolho a carta da intuição. Meu quarto me alerta o coração pra curar, numa troca de roupa, a aparente puerícia da vida. Empilho os livros de Bartlett, Grogan, Danuza. Deixo uma revista aberta nas páginas da casa da ilha de Hamilton. Coloco uma foto de Jardel no porta-retrato chinês que ganhei do meu irmão. Escolho uma caneta, deito as costas no chão de cerâmica clara e faço um bilhete ao refúgio do quarto, aos horários flexíveis, ao firmamento. Posso até ouvir o rufar surdo dos tambores de alguma marcha escolar. Penso que devo colocar um cabideiro no canto de lá, trocar o guarda-roupa e a armação da cama de solteiro. Encho a gaveta de sentimentos, da cigarreira que Cecye trouxe de Paris ao prato andino, das caixas coloridas de disquete ao grampeador. Tudo em meu quarto tem precioso valor. Até a luz. Algumas vezes, quando estou sentado na cadeira de couro sintético, escutando Erasmo, apoio os cotovelos sobre a mesa, sustento o queixo numa das mãos e olho a janela, tentando roubar a luz das venezianas. Não há nenhuma paisagem romana pra eu me apropriar. Só há o enquadramento de luz e sombras em projeção. Este efeito é meu quarto. Meu mais novo posto da solidão.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

PÍLULA DO IMPLACÁVEL - Número 24

 
Cansei. Das censuras projetadas, tão típicas de quem não tem muita coragem de olhar e apontar o próprio desvio. Cansei da falta de conteúdo e das idiossincrasias. Tenho preguiça, agonia de gente que se pensa demais. Não quero acordar de manhã como o que se sente famoso e bajulado. Não sou Lord Byron. Quero só felicidade e não o fardo da rima. Quero simplicidade e só. Visões de domesticidade serena e só. Feito pintura flamenga. Quero ganhar mais que um selinho em dias ensolarados. Ficar imerso em meditação, ou ressaca. Mas que seja eu e nenhum porta-voz. Porque meu estado de espírito não precisa ser oficializado. Não é casa, nem comida, nem pede polidez e inteligência. Tenho novo carimbo e uma outra essência. Sem nenhum traço de angústia pra marcar o dia que vai amanhecer. Repriso: quero só felicidade. E alguma comunhão com minha própria identidade. Ganhar um primeiro pôr-do-sol no platô da cidade. No alto da elevação de ocupação irregular, agachar, olhar as circunstâncias do tempo. De nuance, a casa ao fundo, a árvore ao lado, entregando a primavera, em certo contraste com o céu ainda chumbo. Olhar o mundo para onde mais eu puder. Dirigir minha visão temporal para o encontro de rio e mar. Para a canga estendida. O banco de tronco e a derradeira realidade que ainda não descobri. Este olhar de misticismo do homem encolhido em si. Contemplação, aliás, é meu mais novo querer, o interlúdio feito com tinta cenoura-camarão. Quero aquela pele queimada, sem camisa, de gestos mouros, entre o Café Brasil e o Favela. E a voz de minha mãe. Aquela saudade velha. O refrão da música das algas: "Nobody knows you the way you know you. But I think I do". E a alemã de cor marrom. A tatuada. A mulher do mercado. A esguia que olhou nos meus olhos. E o olhar desse homem quase escondido que se perdeu na pracinha, na viela, seguindo a ladeirinha, ouvindo as ondas baterem no breu. O olhar desse homem sou eu. Que se perde de vistas num dilúvio, correndo de cabana em cabana. Esqueço-me num beijo longo, em amor de verão, comunicado e novo, reinventando certo pensar. Ao fim, sou eu que preciso me reinventar. Colocar uma camisa polo, bermuda jeans desfiada, deixar o zíper semiaberto, o cabelo displicente, enterrar o chapéu no rosto e dormir. Antes mesmo do sol sair, ver no que vai dar a noite. Se alguém questionar minha camisa, direi: "Não leve tão a sério". Tal qual Flora, negra da Ribeira. Tal qual Guinho, mistério abrandado na areia. Dudu e a argentina sereia. Ou a festa ao lado da igrejinha, no piso do casarão português. Cansei. São quase seis. Quero água da fonte pra não envelhecer. E roubar da manhã um pôr-do-sol. Quero viver. E andar com a turma que não perde tempo, que não se pensa. A turma real. Quero valer a pena e não ser o tal da enseada. Quero recortar a linha do horizonte, o sol marcando as costas, a fronte suada e o vento passando só pra aplainar. Quero ser alga e viver na água do mar ou no ar úmido. Que seja inexorável e profundo este querer em mim. Depois, posso até achar que minha humanidade não é tão implacável assim.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 30 de agosto de 2011

PÍLULA DO EFÊMERO - Número 23

Fotografia de Jonathan Harris no Alasca

Gilles Lipovetsky analisa o efêmero, o lixo do luxo, o vazio. Eu analiso a felicidade. Aos que me perguntam como estou, respondo, mecanicamente: "Feliz". É uma tese. Enunciada e sustentada. E o que não é? Maricá já dizia que não há homem feliz sem mérito. Veja os meus: chegar em casa cedo, tomar um banho longo, ler sobre a caça às baleias no Alasca, ver as imagens quase em sépia de Jonathan Harris, assistir "O Mundo de Jack e Rose" e dormir em paz. Em minha casa, por incrível que pareça, é que consigo ser o mais social possível. Há uma singular energia de proteção, a começar pelas portas, sem trancas ou chaves. Em casa, definitivamente, sinto-me seguro e diminuo as distâncias, até a que me separa de Crist. Deito na cama, sem pressão externa, e dilato o pensamento com a franqueza que me cabe. O pensamento e o gesto das mãos. Depois de fruir certo gozo, risco as mãos, nesse meu hábito quase obsessivo-compulsivo. E ouço "Paris", do Friendly Fires. Melhor: ouço "Classic", de Adrian Gurvitz. "Got to write a classic. Got to write it in an attic. Babe, I'm an addict now. An addict for your love", cantarolo como se minha voz pudesse chegar a algum lugar. Se alcança, segue às raias das ideias passadas. O alto da Serra Grande, a extensão do mar. Segundos de um retrato que não desbota. As vozes do casal francês do restaurante e a imagem fugidia dos sapeurs. A brisa do andar de cima e o reggae raiz rastejando o chão. Eu, meio que sonhando, projetando minha alma ao passado, no Tororó, no Largo. "Your Love", do The Outfield, em fita K7, com sorvete de açaí e cupuaçu. O quarto da pousada e o mundo azul ensolarado fora dela. Purki, no registro da cena mais próxima da realidade. Di, com a lente mais subjetiva. Nós três, livres e quase inseparáveis, nos azeitando, pouco a pouco, à atmosfera arrastada. Creio que seja um tempo que não se construa mais. Descer e subir a ladeira daquele bairro litorâneo parecia mesmo uma romaria cheia de areia nos paralelepípedos. Uma prece. Nós, tão soltos ao longo dos dias que não nos importávamos de ficar a maior parte do tempo em trajes sumários. No afã das lembranças, era o tempo da disputa dos melhores beijos. E do riso mais alto. Tínhamos uma filosofia tropicalista, uma festa no Canoa, os mares de água doce. Pelo mesmo beco fétido, caminhamos. Pela mesma rua inteira nos separamos. O rosto de Natal, que mais parece um ouriço fundido, arredio, deste meu breve cochilo riu. E encheu meu quarto com cheiro de pinho. Havia uma outra mulher de perturbador silêncio, e surfistas tostados, com gíria e sotaques próprios. Respiro outra vez aquele ar, deitado na cama como que na rede ou sentado na cadeira de tecido cru, ao lado do pé de jambo. Ar de mormaço, que me faz virar o corpo em direção à porta do quarto. Ainda consigo ver Rafael, do Odeon, rosto do deserto, corpo da praia, olhar tão castanho claro e sorriso tão encantador, que eu fiquei ali, quieto, observando ele consertar um ventilador. Solícito, até afetuoso, me ofereceu uma massa no Pirilampo, enquanto o dia clareava e minha visão turvava. Caminhei sem camisa, trôpego das pernas e dos miúdos, mas lindo, com meu cabelo jogado, meio bronze, um típico "Forever Young" do Alphaville. Purki dizia: "Não consigo viver tão intensamente". Di dizia: "Ohh, tão lindo". E eu mal dormia sob a sombra gramada dos coqueiros do outro dia branco, lá em Resende. Eu lia de Baby Consuelo a David Bowie, Dzi Croquetes a Salvador Dali. Inspirações que eu queria fruir. Em meio à escolha da roupa, do colar significado, da bebida quente, dos gritos de alguma intensa liberdade e dos fogos, um abraço demorado e uma oração às estrelas dos que amo. De novo, confundi a saudade com os olhos claros de Crist. E do nome de cada um que me faz vivo. E choveu. Deliciosamente, na Concha, choveu. Vi alguém fazendo yoga. Pareceu Jhon. Eu já estava, há muito, em outro tempo. Decidi voltar só, de pés descalços sobre a terra. Cansado, sim. Mas não o cansaço da tal inteligência abstrata. Não era o peso da consciência do mundo sobre meus ombros marcados pelo sol. Eu me sentia...feliz. Assim, ao fim de agosto, estirado à cama, com um arfar da alma, numa posição ao gênero do mar. Ainda que esse luxo seja um efêmero respirar.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 23 de agosto de 2011

PÍLULA DAS GENTES - Número 22



Existe algo de particular nos dias de Festival. Qualquer coisa particularmente fria na madrugada se sentia. "É uma quermesse de touca e cachecol", definiu alguém na imensa fila de espera. No sentido bom, é como um leilão de prendas ao ar livre. Você bem pode ganhar chocolate ou um beijo que escapou ao canto da boca. E aquele ângulo saliente, no encontro das duas superfícies, é o mapa do encanto da cidade por estranhos frequentada. Definitivamente não é uma boca banguela, porque a cidade fica inteiramente encantada. Gente simples e gente burguesa misturada, convergindo no mapa típico de interior: uma arena, uma multidão. E, se alguém levanta os olhos (e ocasionalmente as mãos), vê-se luz que Paul Gaughin bem poderia amar. É tanta estrela e tanta foto pra contar. Aí tem os espetáculos, os encontros e desencontros, os tipos, as tribos e os índios, os pandeiros, o alaúde, o scratch, e o trem. Às minhas costas, gentes. Todas de bem. A arquiteta e o jovem namorado. O velho com cabelos nas narinas. O quase bêbado, o quase belo, e a fina. Uma adolescente linda e o fotógrafo que finda o olhar em seu flash. As novas loiras de luxo e os microshorts sobre as meias grossas. O casal gay marcando o terreno feliz. E outras tantas gentes tentando respirar ar quente pelo nariz. Nem olho pra trás, mas sei de tudo e todos do que se diz. Ouço as vozes, no contraste do contralto de Frejat. Eu ouço o que desejo. E vejo, como nos sonhos, aquele cara e aquela, dançando no vácuo do gradeado. Eles que estão certos! Os dois me dizem, em duplo som, "hoje você parece belo". Eu, menos estrangeiro no momento que no lugar, vivo, contra o vento, o primeiro ano em que só deixo o tempo passar. E vejo o todo, e o que vi, tanta gente se juntando por ali. Marina, Bethânia, Jardel. Naiara, Dolores, Milena, Leilinha e Quel. Iracema, Suzana, Dedé. Bia, Jamille, Renata, Marcela e Zé. Lívia, Darlan, Cristina, Amélia, Cristian e Robertinho. Cris, Léo, Lucas, Dannillo e Binho. Maurício, Marcelo, Gildásio e Raphael. Agripino, Cecília, Thay, Anuska e Amando. E outras tantas gentes, espelhos da vida, estrelas brilhando. Nomear todas há de ser meu ritual e minha canção. É um povo assim, quase multidão. Gente que formigava os corredores e tendas. Tônico cicatrizante de minhas últimas dores nos pés. Para estas pessoas (e tantas outras inumeráveis), é que refiz o penteado, a roupa e o sorriso maquiado de batom. De mais tempo é que preciso. E meu tempo precisa de mais alma e som. Não parto de nenhum outro lugar, a não ser do bom de mim mesmo. Se é uma verdade e meia, não sei. É que foram dias pouco cartesianos. Eu queria era gente ao meu lado. Gente, um bocado. Não estou nem aí se dizem que é minha zona de conforto contra a solidão, para mim foi puramente real. Nestas ainda frias noites de Festival, joguei meu corpo no mundo e nos cantos, fotogrando as pessoas sem pressa e sem critério. Gente assim, doce mistério.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PÍLULA DA CIRURGIA - Número 21

Capa do disco "Todos os Olhos", de Tom Zé

Bem curioso o significado do verbo internar. Especialmente quando faço uso das expressões mais cruas, digamos assim. Introduzir ou meter-se pelo interior de algo é aquilo que dá a entender. Uma noite antes de ser internado numa espécie de casa de saúde, ouvi "Todos os Olhos", de Tom Zé. Ironia. Outra expressão que consiste em dizer o contrário do que as palavras realmente significam. Lembro bem que, nesta época, eu não pensaria em passar o Natal num hospital. A ceia? Sopa temperada com éter. Tão sutil o sabor, que, como atestariam os antigos, encheu o espaço além mesmo da atmosfera terrena. Não só o fluido parecia hipotético, meus pensamentos também. Eu não sabia se podia ou não comer, ou mesmo ser comido, na antropofagia das ideias, e não da carne. Mas, a indicação do médico era enfática: "Dieta zero!". Pois que fiz valer o SUS e aceitei com alegria minha condição de paciente. De novo, aquele que tem a virtude de suportar, com resignação(!), determinadas incisões. Na enfermaria, fiquei ao lado de homens seminus. O silêncio que impuseram a eles, por variados sinais e sintomas, passava a impressão de que nem representação mental seus espíritos davam forma. Não havia, naquele espaço sem disfarces, ideia de bem e de belo. Carla, uma enfermeira que perdeu parte da voz por conta de uma infecção hospitalar, insistia para eu colocar o vestido vazado de cor esmaecida. Dei de ombros, virei ao lado na maca em que fui instalado feito um fardo estilhaçado pela guerra, e fiquei a ler Baudelaire. É dele, aliás, um crucial pensamento acerca da vida: "É um hospital onde cada doente está possuído pelo desejo de mudar de cama". Hora do almoço! Enquanto eu tentava sentir algum gosto específico do alimento oferecido, conheci os detentos de quarto. W tinha fimose. Nos exames, descobriu também um cisto. Vi quando uma outra enfermeira, esta sem nome, colocou uma sonda em seu canal peniano pra que ele conseguisse urinar. X caiu da motocicleta e feriu o braço. Levou mais de trinta pontos, e talvez demorasse a recuperar o movimento da mão. Y estava cortando lenha e o machado decepou um dos dedos. O corte foi tão profundo que chegou ao meio do pé. Z eu não conheci. Caiu de uma laje, numa altura de mais de três metros, e ali estava, imóvel numa maca durante o dia ou gemendo na madrugada. Todos homens muito simples, que, com suas histórias pessoais difíceis, faziam questão de transformar aquele tempo em riso fácil. Ainda que, irremediavelmente, rissem de si mesmos. Entre eles, fiquei conhecido como "o turista". Diante dos fatos, minha passagem ali era, sim, como um recreio. Eis que chega Lucas, o enfermeiro mais jovem. Perguntou-me se eu queria ajuda para colocar a camisola, questionou a origem do meu sotaque, quis saber o que eu lia e o que escrevia. Acionei meu repertório e ganhei confiança. Tentei um tráfico: "Você me consegue um chocolate e eu te dou... enfim, eu pago bem". Lucas abriu um sorriso saudável. Propício para o momento de padecimento ali instalado. Algumas horas depois, voltou, pediu para eu tirar a roupa de baixo, me pôs numa cadeira de rodas, guardou meus piercings, olhou nos meus olhos, e, repetindo o sorriso, disse "boa sorte", com um traço de zombaria. Levaram-me à sala de cirurgia, fria, cheia de maquinários temerosos. Um anestesista quase ausente pediu para eu sentar e arquear a coluna à frente. Segurava uma enorme seringa e aplicou o líquido no meio das minhas costas. Senti cócegas e um estranho efeito sucedeu. Perdi completamente a sensibilidade da cintura aos pés. Antes de confundir as horas, pareceu-me ter visto minha avó Nita. Lembro ainda de uma enfermeira de semblante encrespado ter colocado meu corpo numa posição inglória, que chamaram de ginecológica. Um cheiro fétido de carne humana queimada tomou conta da sala, o cirurgião ordenou que eu mantivesse a cabeça deitada, o mundo girou e nada mais vi. Acordei. Eu já estava num corredor apertado, aguardando uma troca de plantão, ao lado de uma mulher grávida de olhar perdido. Surgiu à mente, em fantasias esparsas, o fato de que nascem 213.000 crianças por dia no mundo. Meu estômago já ameaçava outros órgãos. Havia olhares mórbidos pelo vidro que separava um corredor do outro. Trouxeram-me um pão sem manteiga e leite com café. Prontamente recusei. Um dos internos perguntou o que aconteceu. Operei a alma, respondi.

Marco Antonio J. Melo

domingo, 7 de agosto de 2011

PÍLULA DA BÚSSOLA - Número 20



Inevitável pensar no futuro, mesmo sob a égide dos dias últimos em que escolhi viver presentemente. Marcus, com seu quase sempre ponderado aconselhamento, disse-me que temos de seguir em eterno estado de tensão. Alexandre, o Grande, o Magno da Macedônia, também ansiava apaixonadamente pelo que podia existir depois do horizonte, à revelia do que lhe apontava Aristóteles, apelando para a razão. Prefiro ser sereno, ainda que também tentando sintetizar, dentro de mim, ocidente e oriente. Tenho, por isso, maior afeição por Heféstion, filho de Amíntor. De toda forma, ambos pareciam muito livres ao tempo e ao amor. Sucumbiram, mas seus nomes ainda têm eco que passeia lado a lado. São a prova de que todo homem pode ser bússola. Todo homem de honra, obviamente. Eu, dedicando meu olhar ao adiante, tento forçar-me a seguir um caminho próprio. A começar pela oração na estrada da manhã. Quando oro, escolho a direção mais clara, vívida e sossegada. Como o orvalho das folhas que ladeiam a cerca do trilho. E continuo a seguir por essa direção que vai dar, como escreveram, no avarandado do amanhecer. Ou sigo até a Barra, observando pontos estranhos em meio à vegetação rasteira sob chuvisco. Na companhia de Adriana, sempre cheia de entusiasmo, Purki, ainda irascível, mas companheiro de boa alma, e a afetuosa schnauzer Nina. Aqui e ali, víamos um pilar enferrujado, uma casa rosa abandonada ou uma fila de eucaliptos. O verde palha do chão no mais completo contraste com o absurdo da paisagem, entregando a passagem do homem, e do tempo, como numa intervenção de Francis Alÿs, rompendo o cotidiano do nosso olhar. Acima de nós, um céu cinza uniforme, quase opressor. Escutávamos Rick Astley. Não seguíamos nenhum mostrador, nenhum ponto cardeal. A única orientação que nos conduziu nessa tarde foi a repentina vontade de chegar um pouco depois das ruínas de Águas do Catulé. Esqueça a cidade em si, com sua pequena rodoviária de tintas gastas, feira livre de tablados vazios e poucas curvas. Fomos direto à casa de Anderson, o pianista. Um homem de, talvez, quase meia idade, mas bonito, de pele preservada e olhar claro. Permitiu-nos fumar um cigarro, sentados em carteiras escolares que se amontoam em sua garagem, antes de nos apresentar à tia. Não lembro bem seu nome, porém ela recordou os tempos em que conheceu minha família na Rua 7 de setembro e aprendeu a datilografar na escola de meus pais. Durante todo o fim de tarde chuvoso, fiquei a observar os rumos, o vento balançando as finas folhas de erva doce, os cachos de banana no quintal e Anderson. Apesar do jeans, do agasalho de gola alta, das meias sob a sandália de couro, ele sustenta um corpo vigoroso, uma voz grave, ainda que entoada com um puxado de s e pausas típicas de quem já passou por Salvador. Afora o semblante jovem, tem um modo de se expressar muito curioso, desenhando um arco em volta da boca e franzindo a testa, como se constantemente risse das eventualidades. Não dirigiu muito a palavra a mim, mas fez-me duas observações reflexivas. "O que você faz?", perguntou-me. E completou: "Você parece calmo". Levou-nos à sala, sentou ao piano e tocou. Entre outras peças, um trecho de "Sonata Patética", de Beethoven. Anderson parece ser, portanto, um desses homens que se guiou por sua própria bússola. Escolheu um norte e se felicita nele. À noite, já de volta da Barra, detive-me mais ao leste. Sentei ao lado de Ítalo e só conversei, desfrutando sua franca companhia. Ainda tenho o hábito de tergiversar, mas ele meio que me conduz a exprimir plenamente o que sinto. Posso até olhar às minhas costas, ao sul, e ele chama minha atenção. É daqueles que me faz encontrar o caminho de volta quando viajo em outra direção. Até tive alguma saudade, por estes dias, de Belo Horizonte, do Café com Letras, da máquina fotográfica, de alguém cheirando a encanto. No entanto, cedo ao tempo futuro. Vivo mais tempo, ainda que não saiba exatamente o que fazer com ele. Cedo à minha voz, aos meus segredos e às revelações. É minha luz em propensão. Minha bússola e minha desorientação.

Marco Antonio J. Melo

domingo, 31 de julho de 2011

PÍLULA DA EPIFANIA - Número 19



Quase ao tempo, ando lendo sobre os próximos jogos de futebol, sobre as pessoas que Danuza Leão conheceu em Paris ou viu de perto em Sevilha, sobre o grupo londrino de Bloomsbury, os escritos do século XII, as avenidas vazias da Coreia do Norte, na capital, e o reencontro musical de Caetano e Gal. Em algum dos trechos, não lembro bem qual, a palavra epifania ascendeu, feito um barato total. É, das expressões, uma das quais pouco fiz, nesse eterno jeito de não me espantar. Mas qual a palavra que nunca foi dita ao ar? Diz! Epifania. Lembra uma festa litúrgica comemorada num segundo domingo especial. Sei que tenho um pé fincado num futuro legal, cheio de fé, mas agora escolho uma direção outra qualquer. Talvez o hoje. Este é o cerne dos planos que faço: o dia em que estou. Que hoje, portanto, eu prove o gosto da felicidade. Um caldo com folhas de salsa, no ponto exato do sal. Tanto faz quente ou frio. Porque não sei como será o amanhã, afinal. Porque ainda é tudo tão vazio. E quando a gente está contente e tal, tanto faz o que se passa lá fora. Ainda que possa começar agora, eu, um homem tão sozinho, quero mais é provar do gosto do meu caminho. Enquanto o de outrem, é um nem vai, nem vou. Se tenho receio do meio do tempo que já passou? Ao que leio, não há assunto final. Até me perguntaram se tenho medo de envelhecer. Como, se não vejo sentido nem em morrer? Mas aceito o convite pro chá. Compro uma roupa pra vestir, uma gravata-borboleta, um suéter, um presente pra dar, um licor. Tiro o pedaço de papel do bolso, confirmo o nome da rua, olho pro alto e pra sua. E sigo ao norte, que é pra onde aponta a sombra da sorte e o sol do fim do dia. Ao apartamento de Joana e consorte. Mas, antes, quero o mundo. Quero sair lá fora e encontrar. Meu coração, tão cheio de esperança, atônito e luminoso, atento e forte, não há de cansar nesta busca. Pode até ser um recorte do mundo, mas que seja também um instante de prazer. Com um restinho de sol pra sorver. É que ainda brilha este caminho que nunca passei. E o sol, que atravessa essa estrada, "é o sol sobre a estrada, é o sol". Que eu até esqueça do meu compromisso, com aquilo ou com isso que aconteceu horas atrás. Nestas horas, já no apartamento, com gentes ao lado, sorrindo ou vendo, sei exatamente o que quero fazer. Meu empenho, como disse, é para hoje saber que a vida é assim, com isso aqui perto de mim, e aquela canção de Tiê ou Roberto. No fim, tudo há de dar certo. Investir em transmutação? Será que pra chegar ao meu destino, preciso desse tempo que está por vir, dessa conexão? Penso que não. O horizonte do hoje é muito mais hipnótico. É uma alegria. O hoje é um domingo ao redor deste céu de tarde fria. Epifania. Hoje é meu dia, é meu dia.

Marco Antonio J. Melo

domingo, 24 de julho de 2011

PÍLULA DO 23 DE JULHO - Número 18

Amy Winehouse

Algum tempo atrás, Jhon resgatou e me enviou poesias, trechos, bilhetes de geladeira e frases esparsas que eu havia escrito para ele ao longo do ano em que estivemos juntos. Um destes recortes se chama "Lista de Supermercado". Nesta, eu pretendia "comprar" alguns bens. Óculos escuros para Jhoe, ao estilo it-sunglass Alexander McQueen; uma roupa de baixo nova, porque Jhon estava usando a minha; um chaveiro Betty Boop para Clarinha; uma tese para Nalim, acrescida de algum elemento fitoterápico; um frasco de cosmético para Loli; um beijo para Saulo; e, para mim, mais tempo, fotos e histórias de amor. No balanço geral de um ciclo completado, as indefectíveis listas têm se tornado exigência. Todas elas seguidas de trilha sonora. Jhon, ao enviar a encomenda que solicitei, esqueceu do disco "Frank", de Amy, que Lucas havia trazido da Itália para mim. Entretanto, a canção que me arrebatara, e que me fez ocasionalmente chorar, foi "Love Is A Losing Game", em que ela cantava que o amor era uma perda, em que não se podia apostar. Ainda que declarado, intenso, mas só até o encanto se quebrar. Que possa ser o amor um resignado destino, ainda assim, vivi, acima de inúteis expectativas. Amy não. Ridicularizada pelos próprios deuses, encerrou-se em sua caricatura. "Balzaquiano inteiro, sensível e amadurecido. Tranquilo nas buscas. Demore-se, pois, nos encontros", escreveu-me Joab, para celebrar meu aniversário no mesmo dia em que fizeram de Amy um mito. No mesmo dia em que me apresentaram Rafael, um garoto de 17 que não pertence à sua geração, meia-noite depois de Jamille dissecar o coração. Sabe que não me sinto um personagem de Balzac? Tenho em mim o mesmo ardor juvenil, seguido de certa leveza pueril de quando eu corria do pé da ladeira da Capelinha ao último degrau da escadaria do Amparo do Tororó. Capacidade de sentir, aí sim, tenho em sobra. Se antes eu chorava mar de lágrimas que secavam sozinhas ao por-do-sol, hoje sou rio. Ainda faço como Pessoa, invento amigos, ou, quando menos, companheiros de espírito. Fito o horizonte de buscas, nem sempre de serenas ondas, tais quais os dias invernais da semana anterior. Mas, ainda sou tão feliz quanto o vapor de minhas memórias. Tenho histórias boas pra contar. Os encontros, cada vez menos fugazes, têm sido como que eternos cartazes de cinema para colecionar. Como em "Os Incompreendidos", de François Truffaut, sob as anotações de André Bazin, tão bem recordadas por Quel, que me deu o presente de suas observações. Falou sobre missões, sobre ser mãe e de quando podemos voltar a sonhar em tom maior. Esse dom que se chama conhecimento de mundo e só. "Você fez meu dia mais alegre e profundo", disse ela, aos meus próprios pensamentos interpretar. Com o intento de me ver gracejar, ganhei uma camisa com a seguinte frase em inglês: "How good is to see you smile. At me memories of better days". Lembranças de dias melhores é bem melhor que luto oficial. É pensar que, talvez, só para mim, meus próprios dias valem para ficar na eterna narração confidencial. Eu ou Amy, a perfeita sátira da esperança em nossa alma tão humana? Amy, insana, escolheu morrer. E eu aqui estou. Continuo com esta vida insistente, algo que anônima, um tanto mais diferente do semblante comemorado anos atrás. Entretanto, só mesmo vivo e manso poderia perceber estrelas cadentes como as que vi ontem à noite. Porque morrer, de fato, é um açoite que dói. Mas viver...não.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 19 de julho de 2011

PÍLULA DO INVERNO - Número 17

Escultura gigante de Theo Jansen

Sou um retardatário. Veja bem: não falei que sou retardado. Não confunda, portanto, meu adiamento com o desenvolvimento mental abaixo do normal que outros pares meus têm. Tenho sido tardio, sim, mas, se até o inverno tem chegado fora do tempo, por que não eu? É um frio de desalento que ando sentindo. Confesso que está difícil de perceber os sinais e fazer as escolhas certas, antes do corpo ficar imolado. É um melancólico congelamento o que tenho passado em meio ao silêncio nublado, à meia-luz. Entre o outono e a primavera, quero decidir parar. Porque está faltando idealismo, sabe? E sobrando desorientação. Agora mesmo estou com os braços encolhidos, de tanto frio na alma. Sim, aqui onde vivo faz frio. Não consigo conversar e tomar uma decisão mais definitiva, porque meus lábios tremem. Respiro e, quando solto o ar, meu sopro é fumaça materializando os fantasmas que não quero encarar: tristeza, choro, desespero, preocupação, nervosismo, irritação, falta de concentração, desinteresse pela vida, falta de sono seguida de pesadelos, fadiga interminável, dores e tensões no corpo, diarreia, asma, sensação de doença constante e falta de desejo. Com pesar, porque os agasalhos têm comprovado estes dias assim, em que até os sentimentos parecem gélidos, reforçado por este clima invernal dentro e fora de mim. O suor que desce das têmporas congela. Até o esforço de minha inteligência congela. Ao tempo em que ocorre, pouco se vê a chuva da compreensão alheia. Para os outros, parece tudo normal no meu manual do cobertor. O que consigo sentir, além da privação de calor, é que preciso mudar tudo. Ou quase tudo, que seja. Mas de maneira radical, para ser, depois, real. Prestes a completar 33 invernos, preciso voltar a ter vontade de tomar sorvete, por exemplo. Ou seja, sentir o sol de novo, com ordem, com calma, com vontade. Ser uma escultura gigante de Theo Jansen, ao sabor dos ventos em praias holandesas. Você tem noção do que é ter prazer de sentir brisa? Ou lhe falta mais sensibilidade que a dos meus dedos rígidos? É o inverno, meu caro. Eu fico impassível nesta época, feito um jantar de carne fria. Fico olhando, sem muito significado, sites com listas dos melhores do ano. Bebo em excesso e me retraio em culpa. Ou tropeço num caminho e noutro, feito uma velha magra que conversa sozinha sob o guarda-chuva. Não tenho prazer nem em dançar nas ruas, às duas da manhã, como sempre faço no verão. "Walking on Sunshine", de Katrina and The Waves, era a canção que eu escutava e não ouço mais. Normalmente não faço apologia para que o tempo passe, talvez por medo inconsciente de perder a juventude, mas não desejo mais esta estação. Quero o solstício do verão, o julho do hemisfério norte. Preciso abandonar as roupas e dormir seminu, porque elas já estão tomando a forma do meu corpo. Preciso suar, entende? Feito Lélia em despedida, que parece estar sempre se desligando dos caminhos que levam aos mesmos lugares. E, no fim da festa, sair a esmo dos outros olhares, sob madrugada estrelada, tal qual Lucas, o príncipe. É este o tempo da travessia que quero. Se eu não ousar fazê-lo, serei sempre o retardatário da margem fria do inverno.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 11 de julho de 2011

PÍLULA DA PESTANA - Número 16


Minhas pálpebras movem. Não é exatamente efeito da carne dura do corpo, mas é que beiro o anseio de certa beleza pura. Não, meu corpo não é dado a obedecer as chamadas do despertador. Por outro lado, ainda é livre a vontade de minha alma soar a quem mais não acordou. Desejo, sem pestanejar, ainda que como um animal hibernante, ver milagres, acordar, comer, rugir e trepar, sob a garoa, no galho mais próximo. Tremeluzir as pálpebras e deixar passar este julho de fumaça e frio. Comentadores dizem que estou passando por um inverno entorpecido, com este olhar meio caído e a chuva que também cai por fora da pestana. Sem grana, sem impulso. Sem fama ou poder transformador. Com apneias e com ojeriza declarada a este ruído. Sem forças para remover o torpor do corpo sublimado. Nestas horas avançadas do dia, é até bom ter o contato de celular bloqueado. Porque, olhando em volta, as circunstâncias não parecem mesmo tão normais. A polícia vai na direção contrária, os carros também vão, meus olhos até estacionam no meio da cidade parada, na queda da mulher na escada e na pia espatifada no chão. Os ônibus, por hora, não passarão. Da janela, vejo, piscando para não lacrimejar, o quanto o sol é bonito. Rapte-me, camaleão. E não àquela extravagante e esquisita com visual de Madonna atropelada por um caminhão. Ofusca-me. No piscar de olhos, vai ver de mim apenas uma gota de líquido salgado, segregado do rosto ao coração. Depois disso, posso até desistir. Chega de leituras das coisas do mundo. Chega de doença social, de True Blood, de fantasia, de aquecimento global. No fundo, quero ser como os outros que vejo por aí sem pestanejar. Quero ser lindo, rico, branco, jovem, veloz, usar gloss sabor cereja e brilhar sob a luz do sol que viceja do lado de lá. Porém, quando volto ao ônibus, o máximo que sou é aquele que senta no banco de trás, que se esconde, que cochila, que perde o fim da tarde e a abdominal respiração. Quanto tédio! Peguei o caminho errado, então. Esfrego os olhos e a cara com as costas das mãos. Tento entoar alguma oração esquecida, e, depois de piscar algumas vezes mais, minha realidade está, de fato, prostituída. Meu quintal está rachando ao meio, minha mãe anda pensando em vender cachorro-quente no portão e estou recebendo doação de barras de cereal. Virei o rosto de lado, franzi a testa, semicerrei os olhinhos e tratei de encontrar outros caminhos. Vi duas meninas, assim simplezinhas, conversando com um Papai Noel. Deve ser o sol quente na cuca. Ou assumo certo ar de insanidade para ganhar comiseração, ou fecho de vez os olhos ao som de...ah, qualquer canção do Caetano. E, pra não dizer que não falei das brutas flores do querer, do vento, do bolso vazio, revi, num pensamento tardio, Hugo e as histórias mal-contadas, William com as histórias inventadas. Todos tão iguais. Na inquietude dos cílios e seus sinais, resolvi não controlar o tempo, desapegar. Alguém, no entanto, achou de passar por mim sem notar o lampejo do meu querer, provando uma pêra e minha vontade de comer. Posso saborear os frutos, mas não preciso me agarrar a todos eles. Mas, se quiser me dar um pedaço da polpa, disse eu a este alguém, vejo, pela fresta dos olhos, que devo aceitar. Sem o mais ligeiro dos movimentos, sem pestanejar. É só uma vontade de acreditar no que ainda estou vendo e no breve gosto do que estou mordendo.

Marco Antonio J. Melo

sábado, 2 de julho de 2011

PÍLULA DA ESQUINA - Número 15

Fotografia de Wim Wenders numa esquina de Londres

Observe o ângulo. São dois planos que se cortam e formam outro. Podem bem ser duas paredes de um edifício, duas ruas, duas pessoas, duas fases de um mesmo momento. É como se explicam as esquinas sob determinado fragmento de pontos de vista. De um lado, a casa do lago. De outro, a mesa posta, atrás do vidro, com a travessa de arroz com lentilhas, guisado de merluza e salada de feijão branco com passas. De Marcela, o rumor das pessoas que se deslocam. De Dai, a convulsão do rosto em repentinos sorrisos que se esforçam. De Talita, a ciência da galhardia restrita a si. Três pessoas afastadas pelo meio da mesa, mas, sob meu olhar, três esquinas em interseção. Falando em cruzamentos, em meses, aconteceu algo quase espetacularmente inédito. Um ponto em que se atravessaram duas linhas: a do fio do meu sono e a do despertar. Na última sexta, meu relógio biológico me acordou às 5h30. Não tão ao meio da noite, nem ao clarear. Abri os olhos devagar vendo a linha do horizonte se formar. Aquela esquina entre o azul do céu e do mar da parede em meu quarto. Creio que minha mente e corpo entenderam que eu faria uma viagem. Digo viagem no sentido de me deslocar de um pensamento a outro, de me afastar do que me oprime e de me arrastar da cama, porque tudo que dorme parece esquecer de que tem que nascer de novo. É como quando meus pés tocam o chão. A precisa sensação da cerâmica fria bem pode ser um espaço de razoável distância, às terras do sem fim, ou pode ser ao sul. Seja para onde for, do ponto último azul que meus olhos amanheceram até o mais próximo do travesseiro, deixei que a luz entrasse pelas frestas de casa. Fui fazendo o prazeroso e vagaroso ritual de arrumar a bagagem do tempo para pegar a estrada do vento. Partimos, então. Mona ao lado, Júlia ao outro. Tempo e vento, mãe e filha, outro encontro defrontado na trilha da esquina. Mona pelos papeis e escritos aos direitos humanos, pelas causas coletivas, o espelho refletindo a cor de um batom vermelho e um arranjo de flor. Júlia à francesa, cabelos curtos assimétricos, echarpe de vacas profanas amarelas, óculos escuros de tonalidade marrom e as páginas gastas pelos dedos de Carlos Ruiz Záfon. Do Nobel de Obama aos panetones de Brasília, da peruca da guerrilheira à liberação sexual no Islã da submissão, das fotos do pequeno Peu às simples vidas que passarão, esquinas. Das sapatilhas esquecidas na escadaria, dos espinhos aos salgadinhos roubados antes da festa, meu olhar em observação. Vi o alto da colina da cidade se ligando à madrugada, quase ao mesmo tempo e além. Júlia vestiu minha calça de alfaiataria. Cantarolei a ela, em inglês: "Metade do que digo é sem sentido, mas eu digo só para te tocar". Voltei de uma rua à outra, passando pela ponte que liga a alameda ao ar. Dobrei a esquina onde sumiram os homens e fiz um ângulo para, noutra esquina vazia, tudo outra vez começar.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 27 de junho de 2011

PÍLULA DOS LENÇÓIS - Número 14

Fotografia de James Welling


Vou dar nomes às peças de pano que cobrem minha cama. Tais alcunhas deitaram em meus lençóis e despejaram sobre mim suas correntes de água subterrânea. Enredei-me nestes finos e alvos cobertores secos (e banhados de suor) dos últimos quatro dias de retiro. Pode-se dizer que me viram seminu. Sentiram minha dor lombar, o estalo dos meus ossos, o movimento dos meus membros, o peso do dorso, os sons da respiração ofegante, os restos das roupas de antes, o sono e até o espirro de fluidos corporais. Os personagens tais, depois de passados os dias, ainda sussurram. Até então, o hálito quente e o olhar maquiado da ruiva que perguntou no que costumo crer. Eu juro, tenho também por hábito responder. E, por costume, toma-se o vestuário que adotei para esses dias: um pijama caseiro, folgado, leve e verde-musgo. Ou nada mais, a não ser uma peça que cobria das coxas à cintura, para facilitar o coito que cessou. Sendo assim, não preciso dizer nada depois. Minha mãe, admirada da minha resolução de me ligar à cama, arguiu: "Não vai ver o mundo, como sempre faz?". O maior dos mundos que vi tinha a extensão de um olhar que quase cerrou. De repente, uma mensagem que Lucas Dz não lamentou: "A coragem e a ousadia são as únicas que apontam a direção dos sonhos". No silêncio sepulcral do quarto, respondi: "Dormir e dormir são, no dia, meus únicos gestos de ousadia. Sabe o que fiz quando acordei? Dormi outra vez. Encontre-me, pois, em sonhos. Lá que sou todo coragem". Horas depois, Tam sentou ao meu lado para sugerir um lagarto. Mariana planejou ir a Belém. Lélia, de preto, sorriu seu rosto angular. Purki me deu uma caixa de Free. E, de Catherine Deneuve, inquirida sobre os cigarros, parafraseei o desejo: não sou um homem razoável quando deito. Sou a repetição não-interrompida do meu próprio nome, ressoado, quase irritante, por Lelé, para dizer que o almoço estava adiante servido. Em algum momento desses dias, olhei-me no espelho, rosto pálido, olheiras profundas, cabelos desgrenhados. Lavei o rosto, enxuguei com a própria barra da camisa e, de novo, estirei o corpo nos lençóis. Sou a fonética do longo descanso com o canal bucal semiaberto. Não, minha tia Lice, Cristopher Lee ainda vive, murmurei sonolento. Ela ficou a resmungar sozinha. Nem a espinha ereta, menos ainda a cabeça reta, sustentei. Outras três jovens deitaram comigo, peitos caídos sobre as mentes e as malhas das palavras persistentes que não escutei. Posso até contar seus milagres, mas não digo os nomes, porque, nesses dias, fui menos realista que minha própria fome. Dei volta e meia, dispensei as horas que, à revelia, passavam, e, outra vez, atirei meu corpo aos lençóis. Duduh ouviu meus discos. Vitor experimentou minhas roupas. Jardel me abraçou por longos minutos. Nada vi ou senti. Nada me envolvia tanto quanto, nesses dias, os tais lençóis. Brancos, protetores, tão amarrotados quanto apaziguadores.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 20 de junho de 2011

PÍLULA DAS BANDEIROLAS - Número 13

Bandeirolas
Registrei um sonho. Sim, eu parecia estar dormindo, com as imagens de mera fantasia se constituindo em meu espírito. Transcrevo o ato em público, para dar a ele melhor autenticidade. Era início de tarde de domingo na praça Tancredo Neves. Apesar do contínuo e agitado vento frio, a luz que apanhava a paisagem num movimento súbito, num lance de vistas, tinha um semitom que nem mesmo o sol adivinharia suas pistas. O tempo provocava alguma saudade. Creio que porque eu via me vendo nas crianças com chuvinhas nas mãos. E no senhor distinto, inconfundível em seu terno bem cortado, de alfaiataria, sustentando-se, por uma das mãos, numa bengala de junco, talvez cana-da-índia ou madeira de lei, e, em outra mão, segurando o braço de sua senhora. Os mais jovens, e mais alheios, caminhavam, de um lado a outro das aleias da praça, apressadamente, sem as sombras das bandeirolas notar. Uma sinfonia inteira de bandeirolas tomava o céu como mar, da praça ao vento, ali perto da igreja matriz, onde ergueram uma provisória vila de pau-a-pique a contento. A incomparável luz do sol derramava sua sombra de dúvida no largo e no asfalto até o piso português preservado no Jabur, onde me sentei para ler o tempo que passava entregue e nu. Aquele reflexo, da cor de um corpo em outro, fazia minha lembrança turvar. Eu ali, como numa quermesse de interior, ao lado da ciranda, da quadrilha e das fitas do pau-de-sebo. Vestido em camiseta branca, colar de cordas e tranças, calça solta, sandálias de couro, bracelete indígena, feito um vinho de cajú, da cor das ripas e do barro cru, a rememorar o quarto colorido de Marissa. Ainda que não escutássemos qualquer forrozeiro, o que vinha à mente eram os trechos de poesia de cordel, escritos a lápis nas paredes, em alemão, inglês, francês e outras línguas mortas que não mais sei lembrar. Tive apenas a sensação de que parte de minha formação moral estava lá, sob as bandeirolas. Fui chamado ao arraial para proferir um discurso. Usei de boa retórica, fiz gente rir e chorar, e terminei no jargão de que a paz do domingo começa em meu coração. Digo jargão porque tive que acordar da fala estropiada e as coisas no mundo da tarde materializadas pareciam um tanto entornadas, como a água servida da bacia aos pés do trovador. Na escadaria do casarão 116, o trovador era um sanfoneiro solitário, cego da retina, que fez da paisagem sonora minha declaração nordestina. Fiquei a conversar com Leli, que havia voltado do Canadá, e que, de lá, jamais tinha visto, em profusão, pequenas bandeiras hasteadas no ar pelas tiras de cordão. Ela me falou que as pessoas se apegam ao frio para ver o mundo se transformar. Eu já prefiro ver o sol brilhando assim, na praça, na seda do papel refletido pelas fendas. Foi este meu leilão de prendas: no lugar de pretender ver disco voador, um campo de roseiras e milhares de borboletas voavam, e a grata presença de amigos que acompanhavam a procissão. Purki e Di dividindo o saquinho de pipocas. Tam e Nai de óculos escuros. Clarinha com uma tiara de bolinhas de São João. Em lugar do Sauvignon Blanc, quentão. No cardápio, nada de fettuccine assim. Comíamos amendoim. Sem molho branco, sem noz, pimenta ou manjericão. O sabor era de infância e maçã do amor. No pouco tempo que restava, antes do cair da tarde, vi renovar e brilhar um sorriso em duas meninas gêmeas vestidas de chita, estampadas a cores inteiras, como as bandeirolas sobre as fogueiras. Cumprimentei o rabequista Daniel, que acompanhou minha vista ao céu pontilhado de aquarelas. "Quais cores você vê nestas formas que voam?", perguntou-me. Pois que vejo primeiro as bandeirolas amarelas. Tudo o mais, ao por-do-sol, pareceu ainda fantasia acalentada. Tão fora que seja dos costumes quanto, da igreja, a badalada.

Marco Antonio  J. Melo