sábado, 25 de fevereiro de 2012

PÍLULA DA DOLCE FAR NIENTE - Número 40

Cena de "Into The Wild"

O sociólogo italiano Domenico De Masi deveria voltar a ser influência dos meus dias. Destes que me disponho a responder a mandriice alheia. Se me consultam é para perguntar quem tem pé de abacate, piscina inflável ou cão sem dono. Indagações sem aparente coerência, como os riscos que faço na palma das mãos e que termino por manchar as roupas claras. Minha medida de duração de tolerância está entre passar pela ponte de casa, em dia claro, e chegar ao observatório da solidão na madrugada semivazia. De um lado a outro, a abulia tem dois mistérios: o da poesia e o daquele que a lê, com as devidas interseções. Daí começo a me vestir de pedaços de panos velhos, para alegria de Raquel. Naturalmente que não estou falando do traje Calvin Klein que vesti no casamento do meu irmão, porque este provoca certa culpa. Nem das roupas neutras dos dias de sábado, vestes que não são ácidas nem básicas. Falo é de me vestir independente, feito ócio criativo. Com um pouco de recato, claro, porque é uma questão de conservação. Dizem que ando mais careta, chupando bala soft, ouvindo Sade, soul, jazz. Outros dizem que quero ser notado, não exatamente amado. Todas notícias de botequim. O que desejo é a junção de certo ar de naturalidade e outro punhado de liberdade. Into the wild. Minha esperança é que voltem a declarar (e difundir) o saudoso hábito do bom gosto. Seria uma ideal e suave indolência, meu dolce far niente. Algumas cenas me ocorrem, corroborando esta sensação: Luan de preto na webcam, Ros vestindo uma boneca pin up, Guto elogiando as vicissitudes da vida, os sorrisos de Mila e Breno no altar, o abraço leve de Jardel, o beijo de Di em sonho e Ana Paula, às 5h, numa esquina fria, falando sobre o suíço Stephan. Saudade de certa juventude e de mim mesmo assim tão frugal. De escrever em meu velho moleskine no topo da montanha. De alguma essência entre o sopro do dia e outro do crepúsculo. De ser célebre pelo que sou, não pelo que visto. De caminhar despido. Chamam tudo isso de geração schuffle, mas estou mesmo é retirando a roupa toda, retrô ou vintage, pra caminhar cantando, pensando nas invenções dos séculos. Cinema, rádio, avião. Foguete, biquíni, psicanálise, comunicação. TV, carro, globalização. Amor. Tiro a roupa porque fico me perguntando sobre certo torpor de minha essência, bem-estar, conforto e equilíbrio. Tirei a bermuda utilitária sem grife, a camiseta verde com estampa de estêncil, a cueca de listras e ando nu. Se criarem um jeans humanizado e eu perceber que estou, de certa forma e fato, transformado, volto a me vestir. Por enquanto, vou revolvendo a memória e fico tentando entender o que aconteceu pra eu digerir. O presente soa como um país estrangeiro, muito bem postado em seu terno cortado de viés em morno tom de azul. Meu irmão casou e me perguntam se não farei o mesmo. Sorrio em canto de boca e digo que, quem sabe, um pouco mais ao sul do tempo, depois de rodar o mundo. Sou só um cara jovem, de trinta e poucos anos, em que a única extravagância é ficar nu. Minha impressão de futuro é olhar o horizonte do alto, por vezes com um cigarro aceso, sem a pretensão de ser antena do futuro. "O futuro não será dos velhos cardeais, nem dos velhos políticos, nem dos velhos magistrados, nem dos velhos policiais. O futuro pertence aos jovens", escreveu o cineasta Pasolini em 1973. Eu sou, então, esse passado desataviado e um futuro, quem sabe, desarmado, desafetado. Nu e cru: sem disfarce.

Marco Antonio Jardim

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

PÍLULA DO LEDO ENGANO À PAIXÃO - Número 39

Eu, apaixonado

"Por que morrer com a desgraça do sofrimento? É melhor morrer por envenenamento". Recordo desse posicionamento pessimista de um documentário chamado "Jogo de Cena", carregado de olhar incrédulo, de cor negra, porque me faz pensar no cessar da consciência quando alguém escolhe não se apaixonar. Os cândidos creditam, ao termo paixão, os bons, ternos e belos sentimentos. É como enamorar-se perdidamente pelo firmamento. Por um espaço tão cheio de existência que tudo parece, deveras, mudar de cor. Nada tão próximo assim dos termos do amor, mas os apaixonados guardam relíquias, devoções, lembranças e recordações das estrelas. Sensação parecida me provoca o antigo apartamento de Cecye. Aqueles cômodos têm um inteiro significado de retiro particular. O chão de tapulho arranhado, o pufe de couro, a samambaia. O mousse de maracujá com sementes, a janela de onde se via o parque, a sombra boa de Thiago e o All Star de Indhira. A figurinha gasta no guarda-roupa vazio, onde se lê, de Maryse: "Nunca mais, nem morta, não quero, não posso, não devo. Humm...Então tá". É paixão. É deixar-se de existir para escutar aqueles passos aguardados no corredor, rememorar longas conversas no sofá, vendo a luz da tarde cair num sorriso franco. Até a cor cinza-cobre no centro da cidade parece ter algum encanto. "Se esta rua, se esta rua fosse minha...", cantou, chorando, uma personagem da vida real, num pedido de perdão. Ah, as fraquezas da paixão. Já é manhã de Carnaval, sento na cama vestindo uma samba-canção com estampas, tomo um copo com leite gelado e faço anotações no diário amarelado. Afirmam que pareço ridículo assim, mas sou daqueles que foi acometido pela conjugação do verbo apaixonado. Eu ainda estava desfiando o rosário da solidão, mas...e aí? Como fugir desse clarão repentino, misto de silêncio e de um olhar demorado, embevecido? Como se qualquer coisa dita fosse, assim, uma façanha. "Faça o que você ama", gritou a sanha da propaganda do Blackberry em canal fechado. Num dia, o cheiro do capeletti tomou o vácuo, no outro, verduras grelhadas atenuaram o calor. Os sentidos parecem ficar mais apurados quando se empresta paixão até a momentos de dor. De gusto ou palatare, provo as iguarias destes dias sentimentais. Quesadilla florentina no Blanco's e pão de três queijos com almôndegas, peito de peru, bacon, cheddar, molho de cebola agridoce, rúcula, azeitona preta, pimentão e cebola roxa do Subway. E provo das largas palavras contadas por Leo na tarde inteira. E uso o coração como expressão maior da cabedeira do meu pulsar. Os apaixonados são tão assim, piegas. Veem libélulas como há anos não viam, em forma de alma ou memória. E a luz, outra vez, muda de tonalidade em meio às pessoas quaisquer apáticas que viram as esquinas, as cidades. Paixão é como fim de tarde. É o tempo eterno entre um "olá" e outro "até", e o hiato repousado entre eles. Paixão: parece mesmo ter um significado igual ao eco do som da razão. E ao único gesto exato e humano que conta uma completa história. Das quinze às três horas da manhã de domingo. Tantas outras vozes catalisadas ali, em torno de uma camiseta rosa ou da voz de Marlua. Parece uma busca vibrante, amotinada e nua pelo sentido da vida vigente. Ah, essa apaixonada gente. Por que, então, não pode ser suficiente? Por que não colocar os sonhos bons no caminho daqueles que são descrentes? Por que, então, não ficar mais tempo? Revisitar o vento com esse ar de romantismo. É só apreciar meu novo corte de cabelo, meu magnetismo, meu prazer de viver. "Sob o manto da noite que me cobre, sou o senhor do meu destino, sou o capitão da minha alma", declamou um ser apaixonado. Os críticos afirmam, roídos de inveja, que ele perdeu a individualidade de tão fascinado pela vontade de ser. Ledo engano dedicado à paixão. Na minha reticente visão, creio que é só um desejo de abrandar a alma em rigor. Vai entender se não estamos nós, os apaixonados, falando mesmo é de amor.
Marco Antonio Jardim

sábado, 4 de fevereiro de 2012

PÍLULA ONDE A carNE naDA valE - Número 38

Colagem de Bäst

Onde a carne nada vale, nada mesmo poderia ser mais transformador do que acreditar na tradução atualizada e literal desse carnaval que a gente vive. Mas nem tudo está conforme o costume geral. Tem aquela história cristã das festas regidas pelo calendário lunar, mas o fato é que ninguém olha muito pro lado de lá. Nem abrem concessão às minhas historinhas contadas, requentadas, repetidas, tão liquidificadas que parecem invenção. "Em pleno 2012 e vocês ainda dão credibilidade a Marco Antonio?", questiona Ana Clara, com sua altivez usual. E quando o usual é a única frequência, só se admite o extraordinário quando este atinge a essência. O mundo não enxerga a mim, nem a você, Ana Clara. Olha pra Berlim, Nice, New Orleans, Veneza, Toronto, Rio, Recife ou Salvador (sem policial). Seja onde for, bocas, peitos, coxas, bundas e paus. Cada vez menos, o olhar do mundo sente músculos involuntários. Um artigo na internet até perguntou se ainda existe amor. Em quartas de cinzas, o que rima com o mardi gras é sexo casual. E cheiro de frango assado, temperado ao gosto dos pernambucanos. Ao gosto dos umbus de Larissa. A outras frutas que eu desejaria chupar. No deserto da alma da cidade, o que há de sobra é paladar, depois de outros sentidos para assaltar. E os tufos no asfalto, quase Arizona. Lugar de abandono. Poucas esperanças. Algumas nos textos de Lya Luft, outras no livro que o taxista lê. Mas se a significância for a renúncia, é nesse bloco que desfilo. E determino a roupa de baixo (que já levaram), a mídia de impacto e o efeito da ilusão. Da história da doce lichia a outras fotografias, é o que danço. É o fado do carnaval. Não sou pop, não tenho clipe no Youtube, não estou no BBB, não sou convidado ao Circo Voador, nem sou amigo de Madonna. Tenho palco embaixo do chuveiro, minha bermuda é Riachuelo, faço ritual para o cabelo e não sinto a menor empatia pelo público juvenil. Mas o que melhor sei fazer, além de ser hostil, é compartilhar. Uma novidade boa, uma promoção, uma carona ou um tempo à toa pra ouvir seu coração. Não convenci? Então vou fazer carão pra ser it-boy, mostrar a cueca ao sair do carro, ser junkie ou l'enfant terrible. Vou pra festa popular, ser do universo big star. Ser iconoclasta, gênio e contestador. Ter um amigo encantador pra um dia inspirador até o fim da Rua do Alecrim. Não tenho iPad, mas ainda é tão romântico folhear um livro de papel. Não tenho apartamento, mas pago a conta de luz das minhas memórias. Minha contribuição, portanto, é muito mais que a manteiga do mês. Não faço a ponte aérea, mas tenho tempo de sobra pra planejar. Vou do Marais, ou da Liberdade ao Paraná falar de estrelas. Sem ambições de trio elétrico, eu sonho. Quase sempre sou eu mesmo nos sonhos, mas desconfio se não serei, de fato, eu mesmo pra sempre, com a respiração cansada, uma queda pelo cinema obsceno e o vício troglodita do cigarro. Minha vida é uma escola deserta e de samba vice-campeão. Nessas ruas vazias, sem fantasia ou plateia na arquibancada, posso olhar o que ninguém ainda viu. Olhar via celular. Onde mais uma louca me perguntaria qual, de fato, é minha viagem, senão aqui? Não somos extraordinários, Ana Clara? "Não somos ordinários, como toda a miopia nos leva a crer", respondeu Eliane Brum em seu lugar. Sou, mesmo sem crédito, uma colagem de um tempo deliciosamente real. Dizer que meu coração tem a idade daquilo que amo, não me soa nada mal. É o carnaval que a gente vive, afinal.

Marco Antonio Jardim