sábado, 21 de fevereiro de 2015

A ARTE DE PERDOAR - Número 67


Não há mistério algum na arte de perdoar. Se não há mais o que mirar na linha do horizonte daquele mar frio, há, pois, novo lance de vista.
Nada há de mais imortal que a vida por inteiro. Nem espíritos santos nem orixás o são mais eternos que a vida. Também sequer seria possível matar um coração acalentado de rancor.
Na remissão das penas, a vista há de largar a costa e descobrir outras terras, paisagens, extensão.
Perdão. 
Antes eram linhas e sombras de uma face só, ou um pretexto qualquer para se ver. Antes eram as horas perdidas do profundo anoitecer.
Perder-se, hoje, só nas horas de prima, às nove da manhã de sábado. Ao lado seu, perdendo-me nas tatuagens. Um tanto a cada dia.
Nelas que me perco, pra que não me esqueça mais de quem sou. Pra que na aparência ou realidade, não me tome o siberiano por labrador, a fumaça cinza do cigarro por outra cor.
Pra que eu não sufoque meu menino interior.
Por isso, as desculpas.
Caminhei à sombra dos muros caiados, no reflexo dos olhares desviados, dos meio-sorrisos, sempre num semblante que se impunha numa alcunha em diminutivo. Desculpa, findaram os donativos destas horas.
As de hoje são ainda mais belas que as de outrora.
Das perdas do caminho que fazíamos a pé, sobraram risos.
Como os que ofertei pela manhã. 
Aceite-os, indulgente. Gaste seus últimos minutos ao meu lado. É o indulto que te dou simplesmente. O breve gesto de uma memória futura, uma recordação. Uma gratidão qualquer. 
Não há mesmo mistério na arte de perdoar.
A música que ouço agora não é mais secreta.
Se não colho mais pitangas, nem recordo nítidos os lugares e nomes de antes, perdoe-me, então, você. Porque algo acontece no quando de agora, sim.
Não há mistério: hoje amo outra vez em mim.
São outras caras, outras capas de discos, outros olhos (mais singulares e apertados, castanhos-esverdeados), outro morro da Cebola, cidades, mares. Outros cinco continentes a amanhecer distante do fim.
Porque não há grande segredo em perdoar. É dia novo, recomeço, outra dança de salão.
É tal qual fechar os olhos e abrir na amplidão.
Outra voz, outro sorriso etéreo, outra claridade do dia que desprendo das cortinas da manhã.
Sim, mistério sempre há de irromper por aí. Pelo portão.
De ontem, no entanto, não tenho mais saudade deles. Daqueles.
Perdão.
Não há mistério algum na arte de desculpar. É, talvez, minha forma de oração.

Marco Antonio Jardim

(inspirado em "A Arte de Esquecer", de Elizabeth Bishop)