domingo, 27 de janeiro de 2013

PÍLULA DA CIDADE-SORRISO - Número 57

Vista de Niterói

Onde? Na cidade-sorriso. Tudo mais se trata disso. De onde se quer estar. Comigo? Quando encontrei Ana Clarinha, de shorts, óculos gatinha, cabelos curtos não tão descoloridos, batom vermelho e sotaque rasgando o x, é que, por meio de todos os sentidos, compreendi. Ali estava o dessemelhante no semelhante. Era um teste, em plena sexta-feira de São Sebastião, o santo popular. Nos misturamos à celebração do dia, nosso excepcional solstício de verão, em reverências à vida num ônibus lotado sobre a ponte. Gaivotas pairavam no ar feito papel de seda, repletas da cor azul refletida no branco das penas. Diálogos ladeados pela entrada da baía, pelo mar. Por vezes nos abstínhamos de falar. Parecia silêncio também em volta. E ficávamos, taciturnos, a observar os tons de luz. Tudo tão azul e quase verde. Tão amarelo e quase cheio de mistério, de escapismo. De qualquer coisa que fugíamos, a busca de uma imagem padronizada continuava a ser: onde estamos? E além deste horizonte, quem somos? A linha aparente entre o céu e a terra. "Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos", diziam as linhas de um livro de Lygia fechado em minhas mãos. Não que fosse meu grito surdo, mas havia um espanto quase infantil (e mudo) ao ver aquele pico com tantos metros de altura, aquele monólito de milhões de anos, talvez feito mesmo de açúcar sobre o barro. Olhando a pedra fenomenal, a mata verdejante em volta e os corredores arborizados, descobri-me que sou mesmo um ilustre varonil tendenciado a afetos, compaixão e ternura. Sou daqueles que se encantam com um juntamento festivo no porto da enseada, nas balsas, na praça à beira-mar, que parece não estar suspenso a olhos vistos. Sou da orla que se comunica com as ruas estreitas, o tempo, os ciscos e os arabescos dos portões. Da corrente de ar fresco carregando, sobre e por entre os prédios antigos e novos, uma história esquecida que se esgueira por ali, na velha vila Niquíti. Do lado esquerdo, um bistrô, simples, de pouca largura, mas tão bonito como o próprio lugar da vida. Do outro lado, tendas de água de côco. Minha vida em poucos dias era mesmo andar guardando recordações dos velhos casarões entre edificações modernas, da velha aristocracia entre as madames e seus cães com sapatinhos. Mar, areia e pedras portuguesas no caminho. Paralelepípedos, asfalto e verão. É desta saudade que fala minha sensibilidade de estação. E das bonecas enfeitadas no resguardo das janelas mais baixas, de riso estático, vestidas de chita estampada de flor, vendo a passagem do tempo naquelas paragens ali. Quase sempre elas todas morenas, cariocas, que se almejam ardentemente só de olhar. Distante do Cristo, estava eu num refúgio, numa tarde que demorou a cair. Aquele aroma característico, de sal e vento, diante das figuras distintas do meu cotidiano, de permanente anil, mestiços de sandálias de dedo, tostados ao sol. Oscar Niemeyer, quando fez seu Caminho sobre aquela água que se esconde, deve ter tido dia como o meu, céu sem nuvem, com um balão pontilhando a cidade. O mundo invisível dos tupinambás ainda tão presente, apreciado pelo sentido da visão e do respiro quente. "Antiquíssimo, antiquíssimo!", repetia uma senhorinha que passeava por Icaraí, marejando os olhos diante de sua própria percepção daquele porto sinuoso, talvez o verdadeiro rio. Andar arrastado por ali era como uma prova de amor, um mito. O importante era manter a mente quieta, a espinha reta e o coração convicto de toda cor. De todo caqueiro das floriculturas das ruas, como borboletas a cada esquina. Dos cheiros diversos do hortifruti. Do homem lendo o jornal na banca de revistas e outro pedindo uma coleção de jazz em frente à cantina italiana. Do "Good Morning" da voz de Norah que se ouvia de um apartamento. Do menino, um alento, dos fios de cabelo loiro feito sol que arde e ao tempo do último som de Tim Maia à sombra da cidade, das construções coloniais, ao pé da serra dos sinais. Do pai que dizia ao filho: "Vai pela areia". Do equilibrista de corpo perfeito de slakline. Das amendoeiras à margem. Da jangada solitária ao longe das águas frias. Sortes e simpatias joguei às namoradeiras que eu via. E me confessei ao Santo Cristo dos Milagres assim: "Estava amando. Ele me deu por penitência que fosse continuando". E que seguisse minha trilha. Por onde, santo, a recompensa prometida? Onde, afinal, a cor do amor? Na Terra de Arariboia, onde me senti em casa. Onde se fez luz, se fez algo e sentimentos poderosos me impediriam de partir dali, da cidade que sorri.

MAJ

sábado, 5 de janeiro de 2013

RIO DA PÍLULA - Número 56

Tela do pintor holandês Vermeer

Acordei. O toque de alvorada me tirou de um sonho luminoso. Nem por isso estava sobressaltado. O cômodo, gentilmente emprestado a mim por Ana Clarinha, era de um tal silêncio de ouro que esfreguei os olhos pacientemente, antes de encarar a luz da manhã que invadia o quarto pelas cortinas em tom de bege. Das fisgas de luz na janela do nono andar do Casablanca, o céu manipulado do Rio. Azul, com um clarão de espanto tão intenso que parecia puro, não real. Deitado, no tempo destes poucos dias demorados, posso concordar que, sim, a solidão é azul, tal qual a tela de minha mãe, em cena de rua, com arvoredo basto como as de Niterói, mas com o solo cheio de neve. Ou azul ultramarino, como o da mulher que lê uma carta no célebre quadro de Vermeer. No quarto, até o fogo silenciaria. Levantei para me acostumar ao dia. Dessa vez, como de costume em todo o ano, o som irritante do despertador não precisou ser ativado. Despertei os sentimentos. Coloquei "Warrant", do Foster The People, pra tocar baixinho. Na sacada, acima do movimento da Gavião Peixoto, o reflexo do sol em minhas mãos. Eu parecia, não pálido, mas caucásico, límpido e jovem no Rio. Meu rosto, com os olhos ainda semicerrados, parecia mais belo, como que visto sob a névoa ensolarada do avião. Um rosto difícil de entender, mas acordado do habitual letargo dos longos meses. Em meio tempo, com um filme fotográfico do Pão de Açúcar na mão, recordei cenas da viagem de sonhos até ali. A viagem desse velho que se conta em um ano. Em Confins, franciscanos contrastando com rastafáris. Os primeiros dormindo nos cantos do saguão, os outros dormindo de olhos abertos. Ambos convergindo em sono, sotaque mineiro e leitores eletrônicos. Vi, ao vê-los, mariposas de variadas formas e cores. Levitei sobre a cidade, recobrei os sentidos e, outra vez, acordei. Esfreguei os olhos novamente, esperando outro vôo, vesti um agasalho verde-musgo e olhei em volta. "A vida muda para quem muda", pensei. Muito difícil, como os velhos hábitos impõem, não tender a recordar Jhon, à revelia da frase de banheiro: "patéticos mineiros". Decidi, em Viracopos, organizar minha alcova, meu pequeno mundo, minha mais completa zona de conforto e proteção. Lá as pessoas fumam bastante. Comumente sozinhas, sem questionar a abordagem de que cigarros são, de fato, companheiros, ainda que nem tão comezinhos quanto seu curto tempo. Lá vendem livros de esperança no hall de entrada. Foram horas de espera entre um cigarro e outro, lendo e vendo. Horas de profundo alívio, na expectativa de que os dias não passassem, ou que, pelo menos, andassem desejando parar. Só assim pude exercitar o olhar sobre encontros e desencontros das conexões no gigantesco, assombroso e algo que mal administrado aeródromo da vida que a gente tenta inventar. Foi num aeroporto que eu vi, estupefato, pela primeira vez, aquilo que eu imaginava estar distante da minha bucólica existência: uma muçulmana, vestindo um chador, acompanhada do esposo e filhinho de traços árabes bem definidos, estes vestidos ao estilo ocidental. Meu modo de observar o mundo é tão assim quanto o próprio horizonte que os olhos humanos podem alcançar, díspar e incomum. Terminada a chama do cigarro, joguei a bituca no pote de barro onde Tia Sônia costuma depositar seus próprios restos, amassei-a, machuquei-a, como, aliás, nós mesmos deveríamos fazer à morte, e voltei ao apartamento. Dobrei o cobertor azul cor da noite e guardei, junto ao travesseiro, no alto do guarda-fatos. Ajeitei a fronha do colchão, também azul. Coloquei o pinguim de pano num canto, presente de um passado que ainda não desejo remoto. Separei as peças de roupa já sujas e as empilhei no chão de tacos. Camisas estampadas, poucas pretas, outras brancas e listradas. Roupas de baixo e meias. O agasalho que só usei em Minas - porque, afinal, eu estava agora no Rio, sob o peso dos quarenta graus -, pendurei num cabide, sobre camisas de botão que não eram minhas. Bermudas e calças suspensas na estoqueira. Óculos escuros, colares, pulseiras, entre outros acessórios, além de livros, revistas, mp3 player, diário e frascos perfumados, todos em seus espaços, cedidos por Clarinha, acomodados e conciliados. Trouxe algumas fotografias e pequenas lembranças de papel em caixas coloridas, sintetizando o ano, como se eu não conseguisse esquecê-lo, tirando o sono das reminiscências. Sapatos e sandálias sob o canapé estofado de couro branco, amarelo, vermelho e azul. Fiquei de pé alguns instantes, olhando o armário de madeira de demolição, que Ana guarda pequenas esculturas de peitoril de janela. Na pequena escrivaninha adesivada, coloquei, silenciosamente, um incensório indígena ao lado do porta-canetas, do castiçal, do frade bebendo vinho, feito de gesso pintado, de um gnomo sentado num trono de madeira, de um alienígena de mármore folheando o livro da vida, um porta-retratos chinês com a imagem do irmão e sobrinho de Rachel, e revistas, marcando as páginas da leitura de mundo que ainda não fiz. Curioso...ao misturar as imagens daqueles objetos com meus próprios vestígios, parecia que eu estava em casa. Pus toda esta imaginação de acordo ao meu pensamento, harmonizei-me com a sensação de pertencimento, acendi um incenso de benjoim, ouvi o silêncio e desci para procurar um vinho. "It's a black fly in your Chardonnay", dizia a voz da canção de Alanis. Pus-me num assento de varanda da sanduicheria em frente ao prédio, numa daquelas briseadas ruas de Niterói, cruzei as pernas e fechei os olhos, completamente inebriado. Tudo em volta parecia dádiva de um universo inteirado e nunca antes visto ou sentido por mim. Todo o cosmos, toda terra habitável, todo gênero humano, e mesmo o que excede as forças da natureza, estava ali. Nesta hora quente deste dia dos fins do ano, eu estava ali sim, no Rio. Pois que ri, todo este tempo, dos meus confeitos farmacêuticos, das cartas, da duração das coisas descritas, da finitude delas e até de mim. E lá se foi um ano assim, rindo.

MAJ