tag:blogger.com,1999:blog-74392238388760763582024-03-05T00:06:33.613-08:00Tome Sua PílulaMarco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.comBlogger71125tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-25442489557780521122015-07-22T19:19:00.002-07:002015-07-22T20:02:11.178-07:00COMEMORAÇÃO - Número 71<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhYXmSAdGVy2S_6s7U8sdwU407SJ2FBrxuWmfzF1fj2q6lwrUdJtpy-CnFMZcGIlb7lSj1MYqDgfUTYSV6v-L5qmsF78ukGqY6YuGRPVAHq_bSgVUxoC6EAgk9DN0mC3RTUGm28Brt2iZFn/s1600/2015-07-19+22.26.25.png" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhYXmSAdGVy2S_6s7U8sdwU407SJ2FBrxuWmfzF1fj2q6lwrUdJtpy-CnFMZcGIlb7lSj1MYqDgfUTYSV6v-L5qmsF78ukGqY6YuGRPVAHq_bSgVUxoC6EAgk9DN0mC3RTUGm28Brt2iZFn/s400/2015-07-19+22.26.25.png" width="333" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-size: xx-small;">Capa do disco "Cinema Transcendental", de Caetano</span></td></tr>
</tbody></table>
<br />
Estou vivo!<br />
É que venho do sol. Lá de onde o Deus de todos os deuses me escuta.<br />
E de onde ouço as coisas de outros amores infinitos muito além da conduta solar.<br />
No clarão vasto das estrelas a se consumirem, na grande noite maravilhada a se devorar, vivo!<br />
E se eu encontrar, no caminho, algum outro ser com bastante sentimento pra me dar, nem pergunto sobrenome, já que é o amor universal que conduz o homem.<br />
Estou vivo!<br />
E não tenho mais idade pra temer a morte, ainda que a tempestade pareça um tanto forte.<br />
Nestas horas, ando sobre o mar.<br />
E vou dar na varanda encantada do amanhecer.<br />
Vou, atemporal, findar-me em mim mesmo, nos meus dedos, na minha língua, na face do meu verbo ser.<br />
Ao meio-tempo, sentado ao meio-fio da vida, inverto, sorrindo, o cenário e começo tudo outra vez.<br />
Amo tudo outra vez.<br />
É que estou vivo. Com os poros abertos ao mundo e um modo de ver a fundo esta comemoração.<br />
Estou forte, intenso e decidido a seguir todo sólido e todo líquido no corpo e na calma.<br />
Vivo nos gestos da alma.<br />
Com o mesmo olhar e murmúrio do menino que, dentro de mim, confundia a paisagem.<br />
Mas, ao longo dos anos, mudei o destino pra dias de estiagem.<br />
Hoje é dia de visita!<br />
Saio da varanda e vou à sacada sentir o cheiro da chuva que passou.<br />
No horizonte, entardeceu.<br />
Mudo de história, alinho ao sereno bom que toma assento em meu coração e colho liberdade na amplidão.<br />
Vida, tempo, gratidão.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b><span style="color: red;">Marco Antonio Jardim</span></b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-36033527271466973282015-06-09T20:09:00.002-07:002015-06-09T20:09:52.935-07:00ENTRE MAR E CÉU - PARTE II - Número 70<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj-qT8d_UoIeMaD9lhQAtdzqGAmExwggPD7m0NnLbQzNB8IWZX8R95jVcW5m9PZsKcegd_SfgsII4HNtu28oPHKcNwhqz1pPRwtJqXr5V7P7tSx5K5hkWvIverruRMadOCFD0zglf-j-MC9/s1600/interstellar.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="250" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj-qT8d_UoIeMaD9lhQAtdzqGAmExwggPD7m0NnLbQzNB8IWZX8R95jVcW5m9PZsKcegd_SfgsII4HNtu28oPHKcNwhqz1pPRwtJqXr5V7P7tSx5K5hkWvIverruRMadOCFD0zglf-j-MC9/s400/interstellar.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Cena do filme "Interestelar"</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<br />
Deus?<br />
Onde está?<br />
Inflamo e clamo diante da morte do dia que deixou de brilhar.<br />
Antes pecar, que amar esta noite escura.<br />
É aqui, Senhor. Aqui é meu lar. Este cintilante ponto azul.<br />
Daqui mesmo avisto a luz das estrelas e muito além do que seja e do que for.<br />
Dos eventos do horizonte, além mesmo de onde vou.<br />
Vejo ao longe, ao infinito, todo esse extenso amor, essa Criação.<br />
Vejo os que conheço, os que ouvi falar e todo aquele que já existiu.<br />
Reencontro o cabeludo vizinho, o vigia da bicicleta, o porteiro do prédio e o outro da esquina que viveu em linha reta.<br />
Na poeira suspensa de um breve raio de sol, revejo o silêncio.<br />
Vejo o hippie da pracinha, o barman com um cigarro, o mestre de yoga, a filha de Didi, a moça que passeia com o cão e o verdureiro falastrão.<br />
Enxergo o jovem rapaz com a Bíblia nas mãos, a menina do andar de baixo e meu gato persa à espera no portão.<br />
É aqui, neste mundo solitário, que amo.<br />
E avisto nossa ilusão premeditada de que somos privilegiados na imensidão.<br />
Nós, homens das estrelas.<br />
Destas que nascem e morrem e, quando fenecem, emitem raios ultravioletas.<br />
Ah, as tais estrelas.<br />
Quase todas elas cadentes, brilhando atrás das nuvens cinzas em seus pontos finais e quentes.<br />
Pontos iluminados de esperanças tardias.<br />
E nós, homens falíveis, estacionados nos segundos do tempo a observá-las vazias, quiescentes.<br />
E, por entre as estrelas, ele, o espaço sideral, descerrando seu próprio véu.<br />
Um perfeito horizonte tão completo em sua dimensão que deram-lhe, em estupor, o encantador nome de céu.<br />
E uma segunda alcunha no vácuo deste oceano invertido: Universo.<br />
Eis que verso único sobre este caos infindável.<br />
Força monumental da natureza, desprovida de gravidade.<br />
Eu e minha pequena e infundada verdade.<br />
Mas é daqui, Senhor, deste mundo habitado que tergiverso sobre outras tantas e singulares moradas dos sistemas estelares.<br />
Deixe-me, por favor, nesta fronteira do espaço-tempo.<br />
Porque é aqui que elevo meu pensamento a Ti.<br />
Ergo muito acima das teorias, lá onde tudo se resume.<br />
Sim, eu sei, muito menor é este juízo que a mais silenciosa sinfonia das leis que regem as galáxias, mas é um louvor à Sua direção.<br />
A esta combinação solícita e perfeita que nos faz, dia após dia, pousar felizes sobre as nebulosas espirais.<br />
Sou um flanair das massas astrais, Senhor.<br />
Não deixe, portanto, eu ir tão desencanto à noite escura.<br />
Meu coração ainda bate em órbita.<br />
Ainda vivo! Ainda perdura.<br />
Cheio de poeiras cósmicas, buracos negros e desconhecimentos, mas, na alta noite que se faz, tão enlevado e agradecido vivo.<br />
Permita-me notar, com olhos marejados, esta noite pontilhada das velhas estrelas de Sua infinita casa.<br />
Deixe-me contemplá-las, as estrelas, daqui mesmo, Senhor.<br />
Assim, encerro-me por inteiro num breve poema de amor.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="color: red;"><b>Marco Antonio Jardim</b></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="color: red;"><b><br /></b></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;">(inspirado no filme "Inrestelar", dirigido por Cristopher Nolan, no vídeo "Pálido Ponto Azul", de Carl Sagan, e no livro "O Grande Enigma", de Léon Denis)</span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-68157176648114037072015-05-02T12:57:00.002-07:002015-05-02T12:57:43.668-07:00ENTRE MAR E CÉU - PARTE I - Número 69<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXa4xmVDPGOzyzKVDez965lqRDWI1-uEpuD9FLoEeXBED_OIrHPnhyqtElxa-K1TqYQyTyUKRbEtl6t7Ur8j7JbGZWePKzras2FaYjcATl3CNF9-KfYDYDSUHu23CRYDQqAOKu6hCG9t7I/s1600/azcy9pmveshmriezm6w4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXa4xmVDPGOzyzKVDez965lqRDWI1-uEpuD9FLoEeXBED_OIrHPnhyqtElxa-K1TqYQyTyUKRbEtl6t7Ur8j7JbGZWePKzras2FaYjcATl3CNF9-KfYDYDSUHu23CRYDQqAOKu6hCG9t7I/s1600/azcy9pmveshmriezm6w4.jpg" height="207" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Cena do filme "Interestelar"</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Não. Não se vá tão precipitadamente ao encontro da noite escura.<br />
Depois de febre, dor, náusea, indisposição, há soro, sangue e abstração.<br />
Antibiótico, antitérmico, antídoto à dúvida sem cura.<br />
Viver, insistentemente, é mais que ternura.<br />
Não. Não se vá tão facilmente ao abismo da noite escura.<br />
Tudo que vem agora é mar. E dias de brandura.<br />
Às vezes ar, noutras brisa que esbofeteia a face.<br />
Eu respiraria.<br />
Antes da curva da colina, do crepúsculo da tarde ao alvorecer, há mar.<br />
Aquela imensidão que voga sobre suas próprias águas que não absorvem azul.<br />
Água salina próspera de vida em ouro refletido do sol nu.<br />
Uma visão ao mesmo tempo tão leve e esmagadora quanto a respiração do iogue contemplativo.<br />
Como numa oração celta, eu estava ali para recordar que havia sol. E era vivo.<br />
Ali, na claridade, me vi. Te vi.<br />
Calmo, claro, embevecido de fé, tocando os pés nos sete mares de força estranha.<br />
Tempo, espaço e essa beleza rara de infinito azul profundo.<br />
Um pouco à esquerda do mundo, pensamentos estrangeiros desbotados, cabelos enrodilhados atrás da nuca clara, descompromissados do calor<br />
Vestiam colares de couro e silêncio.<br />
Dias e marés trazendo bons companheiros, sombra, água fresca, risos e incensos.<br />
Não. Não se vá tão apressadamente à noite escura.<br />
Vista branco, pra iluminar as sombras da areia em reverência às urdiduras dos deuses.<br />
Bem pode ser uma camiseta branca qualquer, com imagem gráfica de Radharani, pedindo licença à devoção.<br />
E um pote de barro com água, também branca, a pousar em suas mãos.<br />
Dobre as barras da bermuda alva, para que respingue água salgada de mar nas pernas nuas.<br />
Amarre no tornozelo uma peça de cordas trançadas, de cor musgo, com uma pedra reluzente.<br />
Perto do dia nascer, olhe, na direção do indizível, aquela cor ilimitada do horizonte.<br />
Chore, se quiser.<br />
Lágrima que derrama à fronte é o mesmo que sal comum à extensão de água tão imponderável que mais parece a completa ausência do ruído do mundo.<br />
Eu, como um navio enferrujado beijando a areia, ponho-me ao seu lado, conspirando os fios da praia a esta ventura.<br />
Não, Deus. Não se lance tão amavelmente ao curso da noite escura.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="color: red;"><b>Marco Antonio Jardim</b></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="color: red;"><b><br /></b></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;">(inspirado no poema "Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura", de Dylan Thomas) </span></div>
<div>
<br /></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com13tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-82938115904684203932015-03-15T22:13:00.001-07:002015-03-15T22:15:16.341-07:00ANTES DE MORRER - Número 68<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhue0eHOTzNWE1U5ZN05CcZv9SWvM3NwWsOV2R7egrjhKPRKf_cYFVZX-WqzmEsAUtsNNIe9tMBObKQp_4xn1Zh1mtSQHWZo2ZniJk6leQXRhl7r6ub53jyIljdIS-AE5tu-Zc5MAW_sfJl/s1600/20150316_020827.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhue0eHOTzNWE1U5ZN05CcZv9SWvM3NwWsOV2R7egrjhKPRKf_cYFVZX-WqzmEsAUtsNNIe9tMBObKQp_4xn1Zh1mtSQHWZo2ZniJk6leQXRhl7r6ub53jyIljdIS-AE5tu-Zc5MAW_sfJl/s1600/20150316_020827.jpg" height="191" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-size: xx-small;">Ilustração de Franciso J. Olea</span></td></tr>
</tbody></table>
<br />
Às vezes, se determinado alguém nos priva a presença, o mundo esvazia, perde a verdade e a crença.<br />
Deixa saudade, uma recordação quase extinta, como a que sinto das velhas tias de Salvador.<br />
Do bonsai agora seco e da orquídea em flor.<br />
Saudade, companheira de quarto e dos gorgulhos que infestam meu andor.<br />
Tal qual a morte, que não temo tanto assim.<br />
Quem sabe, antes de morrer, eu sinta saudade, sabendo que já me vou, das dúvidas que se assistem em mim?<br />
Será, a morte, ventura ou fim?<br />
Antes de morrer, então, deixe-me despedir, como num presságio, revirando a caixa de poemas, fotografias e pertences envelhecidos.<br />
Te encontrando na estação Wien Westbahnhof e anunciando sua chegada.<br />
Ela, a cápsula mundi, a morte desejada.<br />
A moça de sapatilha lilás com lacinho prateado, acenando à sorte, aos meus pensamentos, à minha passagem pela vida, aos amores que não se explicam, antes se sentem.<br />
Vi pelas frestas de claridade dos dias que não mentem, num instante de solidão e cansaço, por um quadro torto de madeira nas paredes riscadas do quarto de Marissa, aquela esquina do mundo.<br />
Vi quando ela se revelou em inglês: brain, conclusion, idea.<br />
E meu espírito, invisível, observaria suas reações de estupor.<br />
Renderia uma vista pela janela, no dia entreaberto, meio claro.<br />
A morte. Um princípio de engulho, meio escuro.<br />
Este cavalo solitário numa elevação, numa ilha flutuante, indizível.<br />
Espaço imanente quase incompreensível.<br />
A morte da mãe, da casa demolida, da rua João Pessoa perdida, do ator e do outro que se jogou.<br />
A morte. A névoa, aquosa e espessa.<br />
O forte odor nauseante de ranço à margem dos desaguadouros.<br />
Um silêncio que muito diz.<br />
E ainda uma estreita brecha de sol por entre as folhas da mangueira da casa vizinha.<br />
A morte vinha.<br />
Mas, antes de morrer, vou eu à Via Láctea fazer as cinco orações, uma peregrinação, e dedicar meu olhar à Meca, não por terror, por devoção.<br />
Eis que ela insiste se esgueirando pelas charges, sem muita explicação.<br />
A morte. Agonia, religião torta, inquietação.<br />
Como na fotografia da década de 40, em que se lia no cartaz: o mundo em suas mãos.<br />
Antes de morrer, porém, vou deitar e olhar o velho teto revestido por pano estampado de algodão.<br />
Vou me abster de pronunciar qualquer som, parar de respirar e me deixar perder.<br />
Antes de morrer, tomo um Liberté.<br />
Vou voar, talvez contente, nessa embriaguez inconsciente.<br />
É doce o gosto da morte.<br />
Taciturno, dou-me o aporte, antes de morrer, de brevemente sonhar.<br />
E esse tempo que passa com tanto vagar?<br />
Em sonho, disseram-me: "nenhuma falta fará".<br />
Curioso...despertei com batidas na porta.<br />
Abri os olhos. Não morri!<br />
Morrer ainda é aqui.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b><span style="color: red;">Marco Antonio Jardim</span></b></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;"><br /></span></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;">(inspirado na canção "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, e nas reações de apoio ao Charlie Hebdo)</span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-38075616286364620132015-02-21T06:55:00.000-08:002015-03-09T19:09:39.406-07:00A ARTE DE PERDOAR - Número 67<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXM75k1NmFNvlD1dZLfVFHAex3WZ-kHBZj_a5p4IIQ4ASsAV0xdSXKepFzbDLaL4y6vfM4NTyZ6cj3SUEYsUuEq6aoLN1k7v3I1ywcN0_-riJQwUsRZruUu7UhGjjLbFSp7gbY-xR29pCG/s1600/11006432_783608841724898_2240819670768312329_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXM75k1NmFNvlD1dZLfVFHAex3WZ-kHBZj_a5p4IIQ4ASsAV0xdSXKepFzbDLaL4y6vfM4NTyZ6cj3SUEYsUuEq6aoLN1k7v3I1ywcN0_-riJQwUsRZruUu7UhGjjLbFSp7gbY-xR29pCG/s1600/11006432_783608841724898_2240819670768312329_n.jpg" height="297" width="400" /></a></div>
<div>
<br /></div>
<div>
Não há mistério algum na arte de perdoar. Se não há mais o que mirar na linha do horizonte daquele mar frio, há, pois, novo lance de vista.</div>
<div>
Nada há de mais imortal que a vida por inteiro. Nem espíritos santos nem orixás o são mais eternos que a vida. Também sequer seria possível matar um coração acalentado de rancor.</div>
<div>
Na remissão das penas, a vista há de largar a costa e descobrir outras terras, paisagens, extensão.</div>
<div>
Perdão. </div>
<div>
Antes eram linhas e sombras de uma face só, ou um pretexto qualquer para se ver. Antes eram as horas perdidas do profundo anoitecer.</div>
<div>
Perder-se, hoje, só nas horas de prima, às nove da manhã de sábado. Ao lado seu, perdendo-me nas tatuagens. Um tanto a cada dia.</div>
<div>
Nelas que me perco, pra que não me esqueça mais de quem sou. Pra que na aparência ou realidade, não me tome o siberiano por labrador, a fumaça cinza do cigarro por outra cor.</div>
<div>
Pra que eu não sufoque meu menino interior.</div>
<div>
Por isso, as desculpas.</div>
<div>
Caminhei à sombra dos muros caiados, no reflexo dos olhares desviados, dos meio-sorrisos, sempre num semblante que se impunha numa alcunha em diminutivo. Desculpa, findaram os donativos destas horas.</div>
<div>
As de hoje são ainda mais belas que as de outrora.</div>
<div>
Das perdas do caminho que fazíamos a pé, sobraram risos.</div>
<div>
Como os que ofertei pela manhã. </div>
<div>
Aceite-os, indulgente. Gaste seus últimos minutos ao meu lado. É o indulto que te dou simplesmente. O breve gesto de uma memória futura, uma recordação. Uma gratidão qualquer. </div>
<div>
Não há mesmo mistério na arte de perdoar.</div>
<div>
A música que ouço agora não é mais secreta.</div>
<div>
Se não colho mais pitangas, nem recordo nítidos os lugares e nomes de antes, perdoe-me, então, você. Porque algo acontece no quando de agora, sim.</div>
<div>
Não há mistério: hoje amo outra vez em mim.</div>
<div>
São outras caras, outras capas de discos, outros olhos (mais singulares e apertados, castanhos-esverdeados), outro morro da Cebola, cidades, mares. Outros cinco continentes a amanhecer distante do fim.</div>
<div>
Porque não há grande segredo em perdoar. É dia novo, recomeço, outra dança de salão.</div>
<div>
É tal qual fechar os olhos e abrir na amplidão.</div>
<div>
Outra voz, outro sorriso etéreo, outra claridade do dia que desprendo das cortinas da manhã.</div>
<div>
Sim, mistério sempre há de irromper por aí. Pelo portão.</div>
<div>
De ontem, no entanto, não tenho mais saudade deles. Daqueles.</div>
<div>
Perdão.</div>
<div>
Não há mistério algum na arte de desculpar. É, talvez, minha forma de oração.</div>
<div>
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<b><span style="color: red;">Marco Antonio Jardim</span></b></div>
<div>
<br /></div>
<div style="text-align: right;">
<span style="font-size: x-small;">(inspirado em "A Arte de Esquecer", de Elizabeth Bishop)</span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-69753954110729047962014-04-21T15:45:00.001-07:002015-03-16T07:37:08.892-07:00GRATIDÃO - Número 66<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjejuFJB_Wc99F2xUjeBUdvagIgTTVJT-pBFzGxrC7iEDE6KlHbqqIsnSLF2rY2BypdI9dzD_ByToPTVJ2mFpt_Pn7dDTw6Bg_VzHh9Ng6LGnhBBDAQS4-rGGodJkiOrhzrTPwkTmNO0ML7/s1600/2014-03-01_16.04.03%5B1%5D.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjejuFJB_Wc99F2xUjeBUdvagIgTTVJT-pBFzGxrC7iEDE6KlHbqqIsnSLF2rY2BypdI9dzD_ByToPTVJ2mFpt_Pn7dDTw6Bg_VzHh9Ng6LGnhBBDAQS4-rGGodJkiOrhzrTPwkTmNO0ML7/s1600/2014-03-01_16.04.03%5B1%5D.jpg" height="225" width="400" /></a></div>
<br />
Gratidão.<br />
Diz a canção que saudade é pra quem tem. Gratidão também.<br />
Esse reconhecimento de uma pessoa por um tempo por conta de uma reciprocidade, uma sintonia quase inexplicável.<br />
Da janela do avião, visto pela inflexão do vidro, parece cinza amarelado o matiz dessa expressão. Eu esperava ver azul. Mas vi uma gradação difusa, feito fotografia gasta.<br />
Vi até chuva, martelando a serra lá embaixo.<br />
Tudo morno e molhado, em curso d'água quase impetuoso.<br />
Um tanto antes, na cidade que não volta, vi marchinha de Carnaval.<br />
Vi a menina linda com uma pena multicor numa das orelhas transitando o terminal, enquanto que eu, iogue no chão, lia.<br />
De lá, de cima, no entanto, não vi o mar. Não vi resposta. Não vi sinal. Porém, gratidão.<br />
Meus olhos, finalmente, descansavam os dias pesarosos ao prescrever a chuva cumprir seus desígnios.<br />
Em Campinas, vi uma senhora sob guarda-chuva escuro e um rapaz de camiseta. Moviam-se ao mesmo tempo, mas com vagar, no saguão do aeroporto.<br />
Horas que não passavam e eu gostava.<br />
Saudade.<br />
Do santo espírito, ainda ao amanhecer, vi chegada e berço. Fé e esperança. Os frutos de lá eram todos bem-vindos, pareciam dizer.<br />
Agora, sim, sol em abundância, sucessivo de muitas coisas que eu veria mais. Gratidão, pois.<br />
Decidi, então, já que ia de táxi até a velha vila, ficar um pouco mais. Ver deitar o sol sobre os braços deste primeiro eterno dia. E fazer dos sorrisos todos um abrigo de alegria. Depois partir, francamente feliz, abrindo a janela pra ver, sobre a terceira ponte, o horizonte cantando pra mim qualquer coisa assim sobre eu chegar.<br />
Saudade.<br />
Meus olhos, pousados numa esquina, aguardavam sossegados na brisa.<br />
Via o burburinho da feira livre, debaixo da ponte, cheiro de frutas, pastel, morangos e caldo de cana. De uma porta um pouco além, ao lado de um bar festivo, surgiu todo aquele mistério. Até os fatos seriam assim, um tanto quanto misteriosos.<br />
Então, eu vi. O mundo, eu sei. Carregando minha mochila nas costas.<br />
Fui lá, andei ao lado, reconheci, olhei, abracei e segui um caminho só, buscando alguém que estava em minha memória há mais de um tempo.<br />
Gratidão por aquele eterno amplexo.<br />
Subi um lance de escadas, entrei numa porta à esquerda, senti o cheiro de casa limpa, peguei um travesseiro de fronha branca e coloquei sob a cabeça. Um outro, de fronha roxa, coloquei entre as pernas. Respirei aquele cheiro inesquecível e dormi.<br />
Possivelmente, esse foi o primeiro sono leve do ano.<br />
E acordei saudade.<br />
Tudo aquilo que eu desejava ver estava no cômodo. Os calçados atrás da porta, a bagagem no chão, a cama baixa, o cachorro quase empalhado na estante, os gnomos guardados, o tempo.<br />
O amanhã eu nem queria ver ou dizer.<br />
Meu coração teimava em bater e sorrir a esmo, clareando minha vida nesse olhar.<br />
Levantei, tomei um banho demorado, coloquei roupa leve e colorida e saí pra ver o sol. Tudo tão cheio de sol, que não fiz esforço pra acertar as esquinas. Me deixei guiar pelo cheiro do mar.<br />
Um universo azul se abrindo sob o efeito de cada espuma que morria devagar na areia.<br />
Gratidão ao horizonte.<br />
Ao longe, navios cargueiros. Por perto, a água e o sal do mar gelado.<br />
Como há muito não fazia, tornei a inventar meu tempo, sem viver do mesmo arranjo.<br />
Saudade da costa da praia. Foi como nomeei meu jeito novo de sentir que estava ali, com a alma em bem-estar, com um princípio genuíno de vida, um riso e o olhar de pleno vigor.<br />
Peguei uma cerveja e fui me deixando ir pelos caminhos.<br />
E via crianças, cachorros, bicicletas, triciclos, prédios com varandas de vidro marinho, afetos e um sopro quente passageiro de fim de verão.<br />
Sem notar, era noite.<br />
Gratidão, de um lado a outro, pelo fim da tarde e era noite.<br />
Eu podia ouvir o vento passar, podia ver a onda branda bater, eu podia ver morrer, acordado, aquele tempo parado. Eu podia ver um pórtico, uma escultura de Iaramar, um quase píer, uma casa sobre as rochas, um cheiro de cravo, um torpor na mente e o prazer de conhecer esse gosto sem igual.<br />
A tal felicidade, sombreada na areia noturna, agora chama saudade.<br />
Sentei, conversei, andei de encontro ao vento, respirei o mesmo ar, olhei de canto de olhos e vi outra vez, sorrindo, como um dia de domingo.<br />
E acordei ao som de sinos.<br />
Profunda gratidão àqueles sons marcando os dias.<br />
De onde vinha aquela calma? Aquele jeito tão sem defeito do tempo.<br />
Fotografei a saudade e segurei na mão dela. E, assim, calado, fui coroado com um sonho se exibindo pra minha solidão.<br />
É preciso força pra sonhar e ver uma estrada que vai além do próprio ver. Vai até a madrugada. À casa mal-assombrada, ao teatro da praça, à escola da Marinha, à casa dos padres, à outra com os sete anões.<br />
Os braços do tempo tocando nos meus.<br />
Dentro dessa madrugada estiveram os olhos, as minúcias, o afeto, a verdade.<br />
Então, abri meu coração pra um novo dia amanhecer e, atrás de um sonho, correr.<br />
Além da praia, sem data pra voltar, deixando o tempo levar, havia um solitário pescador e sua pequena embarcação. Ele, o barco, o céu, os pássaros, o mar da cidade, o horizonte e o oceano em seu olhar a navegar. E as rochas dividindo uma enseada em outra, em níveis distintos.<br />
Saudade dessa hora que ainda sinto.<br />
Do cheiro de comida caseira, tempero, frigideira, suflê, mesa posta, ritual.<br />
Isso que senti quando vi o tempo por trás da janela, dormindo, de pernas cruzadas. Um cheiro umedecido e embriagado de bom dia do ano.<br />
Dia de fazer recordar algum triunfo. De se deixar encantar no exato lugar onde se está. De chamar um sentimento bom. De executar aquela ideia de fazermos um mundo inteiro, feito ele de calor e suor. Saudade destes minutos tão físicos, tão cheios de poros, sabores, gestos, movimentos e o corpo do tempo mapeado, tirado partido, sem quadradismo, só com o coração como expressão.<br />
Não sei fazer poema de outra coisa que não fale senão de amor incondicional. Portanto, gratidão.<br />
E quem diria não?<br />
Subi um morro inteiro, sem tabela de preço, com sorriso largo e profundo, parte descalço, além de qualquer cansaço, buscando uma foto de cartão-postal colorido.<br />
Aquela vastidão tão acima do moreno morro. Tão perto do céu, aquele estupor. E tanto mar.<br />
Um presente infinito, um silêncio e, de novo, aquela voz do tempo que não quero perder.<br />
Saudade.<br />
Acenei pra quem me acompanhou com os olhos do outro lado da cidade, além da ponte principal, dos cargueiros, da avenida de nome estranho.<br />
Pena de quem nunca esteve lá e depois, em cada despedida, saudando o sol, no caminho das pedras, até a Penha e sua romaria.<br />
Saudade da presença de Sofia, a avó dos tempos todos.<br />
Do cheiro de flor e de amoras. Dos retratos, das imagens fugidias, da vista e das pistas no trajeto, da orquídea, das caranguejeiras, da meditação na rocha, do terço e de todo o restante de lugar, do sagrado à escadaria.<br />
Do píer, da marina, da restinga, da prainha com ondas breves, de molhar os pés no cais.<br />
Da orla iluminada e do píer de Camburi.<br />
Das tartarugas que não vi, dos patins e até da Cebola que só vislumbrei pelo portão.<br />
Não há tempo como este que volte, então...gratidão.<br />
Eu vim de longe, do outro lado desta terra, além das missões, por isso a falta que sinto deste mar vasto.<br />
Da pesca, dos siris e até da noite chuvosa de verão.<br />
Às vezes eu só queria descansar, deitar no ombro deste tempo, entrelaçar os dedos, morder meus próprios lábios, receber um tagaté, ser quase um.<br />
E, assim, ia vendo o céu se pondo vermelho de sol, filho eu da eternidade, com vento sobre os pés, perdendo a hora e o lugar. Sem destino, um tanto sozinho, dançando com a solidão e acordando noutro instante da imensidão.<br />
Tomei banho de phebo, raspei os pelos com navalha, juntei as frutas, o biscoito, o olho grego, calcei os tênis, vesti a primeira camiseta puída que encontrei na mochila de viagem, botei a calça clara e segurei o agasalho com o cheiro de sempre.<br />
No dia último, nenhum alento, nenhum sopro, nenhuma declaração universal.<br />
Da janela do ônibus, uma constatação final, cheia de soluço, saudade e gratidão: despedida eu vim. Bem se diz que todo Carnaval tem seu fim.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">Marco Antonio Jardim Melo</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-27070523752265372012014-02-15T05:56:00.001-08:002015-03-16T08:01:44.881-07:00OS SINAIS - Número 65<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEin_pa-AZS_RjhLm0UbaZDOs36FdJK0uIwAwjuWerM8q9w1MPUhvL5pTbweiukXQseOHXBSFoCikGVBXN2mTzu4jw95YDbgK-fKHdkJI3UYHrB1UcbPLwSVDtm9NCGhpvtzRtbdyulUGD6f/s1600/6104_436096276476158_1858303913_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEin_pa-AZS_RjhLm0UbaZDOs36FdJK0uIwAwjuWerM8q9w1MPUhvL5pTbweiukXQseOHXBSFoCikGVBXN2mTzu4jw95YDbgK-fKHdkJI3UYHrB1UcbPLwSVDtm9NCGhpvtzRtbdyulUGD6f/s1600/6104_436096276476158_1858303913_n.jpg" height="281" width="400" /></a></div>
<br />
De quando tive a consciência despertada para o sentido da espiritualidade, até hoje, mesmo que estacionado em algumas práticas, percebo sinais. E eles me percebem também.<br />
É um fenômeno presente, um vestígio do que se pensa, do que se quer, um artigo de fé.<br />
Uma mancha na pele, uma cicatriz. Um aceno, um gesto.<br />
Uma etiqueta para fora na camisa do principesco, uma assinatura cursiva.<br />
Ou qualquer outra manifestação que pareça presságio, prenúncio.<br />
É também o futuro. "O futuro não é um lugar que se chega. É um lugar que se constroi", alguém disse, como um sinal.<br />
Estes lugares são como postes de luz e advertências para mim.<br />
Um gato na porta do meu quarto. Uma borboleta na ponta do guarda-roupa. A estranha deferência com que minha mãe arruma meus pertences. Um agasalho que não perde o cheiro, deixando as coisas visíveis. Uma sensação sentida ao mesmo tempo em dois lugares diferentes por duas pessoas que se amam.<br />
As mensagens do dia que me aparecem em trechos de revista, páginas de agenda, pedacinhos de papel.<br />
O mundo inteiramente meu criado nos sonhos, nos desdobramentos, com vozes sussurrando: "tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais".<br />
E eu não duvido, apesar de, por hora, quase esquecer.<br />
É como o nascer do sol no horizonte de uma manhã de domingo, ou mesmo o pôr do sol fotografado da janela do corredor (fotografia perdida no celular assaltado, mas memória em sinal permanente).<br />
O deus Sol egípcio, Amon-Rá. Diz-se que ele abria as pálpebras, o dia despertava e se espreguiçava. Daí ele se vestia, ia para a barca de ouro e seguia, silencioso, pelo oceano, distribuindo luz e calor. Mesmo que ele chorasse, suas lágrimas eram sinais de boa sorte aos homens, ao mundo.<br />
O dia amanhecendo é uma bela marca e um meio para sorrir. E para trasladar em palavras, como fez Leminski: "Uma semana, um mês, um ano não dão para a saída. Nada passa igual a um dia".<br />
Nesta soma de dias (ou os últimos cinco meses, pra ser mais preciso), de sinais, como o dobre dos sinos ainda não finado, caiu a chuva, caíram pitangas, e, agora mesmo, enquanto escrevo, é um sinal que eu tenha encontrado uma imagem em que minhas mãos se juntam em oração.<br />
É o verão que ainda não se encerrou.<br />
Espero eu, com serenidade, que tais indícios, permitam-se fechar este estio no Espírito Santo (vide o nome, já um sinal).<br />
Lembro que, há alguns dias, estive caminhando sobre os paralelepípedos de uma rua mais estreita da minha cidade, carregando minha mochila e minha saudade, sob chuva fina misturada às lágrimas.<br />
Eu era um átomo no átimo do tempo.<br />
Sabia que a chuva passaria, então me enchi de poder, conhecimento, certeza e simplicidade.<br />
Era um sinal vindo dos céus a me lembrar que eu sempre passei por ali.<br />
Algumas pessoas também passavam por mim, cheias de vapor d'água, sorrindo com os olhos. Talvez, elas, compreendendo que aquele caminho que eu seguia tinha, ele próprio, uma história madrugal para contar.<br />
Eu vivi os últimos meses em rede, como uma inteligência autônoma, livre, caminhando livre, conectado ao mundo por um simples aparelho de mãos.<br />
Vivi interligado e, sobretudo, em sintonia fina com uma das pessoas que mais amo e que reconhecia, em tempo real, todo passo meu dado, mesmo em meio à maior confusão funcional do mundo, mesmo num apagão.<br />
Eu via, e vejo, pelo celular, ou não, pela música escutada no fone de ouvido (canções que, cada uma delas, tem uma recordação afetiva), pelo folhetim, pelo próprio olhar dedicado às pessoas em volta, de variadas cores e línguas, e dizia para mim mesmo: "eu sou livre".<br />
Então, derepente, fui agredido impetuosamente e de surpresa. Fui perseguido, fui assaltado, fui violentado na alma, refletida agora em marcas feridas no corpo.<br />
Sinal.<br />
Pareço oco (louco) nesta autoafirmação? Mas é que ainda tenho centro.<br />
Levaram-me uma das máquinas mais fabulosas da humanidade no estágio atual (a dizer: um iPhone 5), mas ainda me oriento pelas estrelas.<br />
Pelo mapa de Guimarães Rosa. "Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando".<br />
E amando.<br />
Este sentimento que empurra as criaturas, mas que nem sempre elas se dão conta, como o vento a impelir uma embarcação.<br />
Naquele instante, eu estava pensando em viajar (se, de fato, eu for), já ansioso para ver o mar (e para abraçar por longos minutos abrindo a represa da saudade), e estive, por volta das 22 horas, com um companheiro na saída da academia. Não convivemos nos mesmos círculos, mas, em sintonia, ficamos a conversar por alguns minutos sobre o tom da vida, sobre a importância que damos ao dia de hoje. E logo nos despedimos com a frase "carpe diem". Ele ainda me ofereceu uma carona, um sinal. Virei a esquina sozinho e...agora estou onde estou.<br />
Vivo.<br />
Amor é isso, não é? Um pouquinho de qualquer coisa sem nome que dá um descanso, um respiro à loucura.<br />
Fico pensando se "o outro lado" tão retratado pela angústia de Diane Arbus não fosse a figura principal. Se fosse apenas o dia em sua Rolleiflex, ou se ela tivesse uma máquina digital.<br />
Pra mim, o sujeito de uma fotografia é a possibilidade de ver tudo nos mínimos detalhes, no dia. Dos pedacinhos de tafetá dos enfeites à cor azul do céu e âmbar da areia, do mar, do coração no asfalto, da expressão do meu corpo em evolução, do cactus que agora cuido delicadamente, da tentativa de registrar minha alma e das manifestações divinas.<br />
O que me dói (e muito) é, com o assalto, eu ter perdido este álbum de recortes dos meus dias e um tiquinho da sensação de acreditar ser livre.<br />
Rastreamos, identificamos, ativamos um barulho, choramos até.<br />
Mas, numa clara mensagem de resignação, os dispositivos desta pequena pérola estão offline.<br />
Quero ser, então, eu mesmo, editor das coisas que acesso, das pessoas que sigo, das redes que crio, do conteúdo que sorvo.<br />
E você, Deus, vem chegando para brincar em meu quintal. Sim, eu já escuto os Teus sinais.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="background-color: red;"><b>Marco Antonio Jardim</b></span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-84684952412805678992014-01-25T10:08:00.003-08:002015-04-21T18:45:59.365-07:00AIXTERUH - Número 64<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwbcY9rqOUZkKqb1k8nQWOepU_SNs62XqfoE_dhbXf61d8CYPrpHiSnHu1ZDzbReZCSrN2ke6hWaB7AgzAWS7HiF7ME3VFZUvEpyKAtwhH89hw7B7RlgY-AoXWODTDmnl5yF_9w_Jom4XE/s1600/1472872_547855121966939_2100558516_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwbcY9rqOUZkKqb1k8nQWOepU_SNs62XqfoE_dhbXf61d8CYPrpHiSnHu1ZDzbReZCSrN2ke6hWaB7AgzAWS7HiF7ME3VFZUvEpyKAtwhH89hw7B7RlgY-AoXWODTDmnl5yF_9w_Jom4XE/s1600/1472872_547855121966939_2100558516_n.jpg" height="400" width="300" /></a></div>
<br />
Depois de meses, passando por inverno, outono e solstício de verão, volto atrás pra pensar o caminho trilhado.<br />
Antes disso, vou buscar o significado literal de amor, pra distinguir dos incômodos alheios.<br />
Amar, até onde penso, não tem nada de patético, nem é tão ridículo quanto as cartas de Pessoa e soa muito maior que simplesmente comover.<br />
Não amar me parece reflexo de um mundo febril.<br />
E não dizer a este mundo que há amor, se há amor, me parece, aí sim, um tanto quanto trágico, pra não dizer desleal.<br />
Pois que amo. A Deus, amo alguém, e o próximo de alguém, ao meu gato persa, e ao chão que piso quando acordo dia após dia, ao tempo, ao vento, à liberdade, ora aqui por perto, ora perdida na esquina do meu coração.<br />
Eu amo e grito, adoravelmente brando, suave, mas sem qualquer tempo ajustado. E - por que não? - grito no Facebook!<br />
Eu subo a serra, mesmo que num olhar distanciado, vejo o horizonte azul, os parapentes flexíveis e suspensos no ar, o mar invertido, plácido, ladeado pelas rochas, cactus, flores, e grito: amo! E fotografo esse aceno e esse som com exclamação.<br />
Não há como refutar, entende? Amar é uma inclinação ditada pela lei universal. É um gosto vivo. E também os cheiros no ar, de misto duplo ou de pitangas, de batata doce, de pão, de torta de limão, de trufas, de pizza até.<br />
Amar é uma mesa posta, uma afeição inteira, do tamanho de um abraço demorado. "Você me abre os braços e a gente faz um país". Amar é isso!<br />
Via de regra, os capítulos de minha vida giram, assim. Iguarias tratadas como, talvez, um bem comum. Uma verdade que bate à minha porta de quando em quando. Ou quando eu mesmo bato à porta alheia.<br />
Uma parada no Posto da Solidão pra tomar um suco industrializado (afetuosamente apelidado de stricnina), uma ocasional latinha de cerveja num banquinho de uma praça, chocolates na loja de departamentos ou um saquinho de doces secretamente (ou nem tanto) deixado numa varanda.<br />
São, sim, intenções veladas (quase bobas, de tão belas) de determinar meu sentimento, minha orientação. Meu amor.<br />
À boca miúda, afirmam que estou delimitado ao drama. Uma ou duas pessoas. Não tem importância. Penso que é choque de quereres.<br />
Minha resposta a esse prenúncio chuvoso? Quem define os outros, se limita. Melhor mesmo é demarcar o caminho.<br />
Começa na ladeira da academia, passa pelo asfalto onde tem um desenho semelhante a giz em formato de coração, desce pela praça onde os cachorros ficam soltos, segue pela rua da árvore de pitangas, dobra à esquerda atravessando a placa sinalizadora de "Pare!" e não para ao meio-fio onde costumeiramente sentava, culminando no muro antes vermelho, no portão e naquele chão que era de cimento cru. Deitar ali dá saudade, irmã do tal amor.<br />
Pareço um estrangeiro impróprio? Um extra-terrestre? Ah, seu moço aí do alto, do disco voador. Me leve com você, seja pra onde for. Ao sabor da brisa, me leve. Num respiro profundo, num pranayama, me leve. De dentro pra fora, de fora pra dentro, apurando o instrumento, leve, leve, leve.<br />
E, se ainda assim eu não tiver inspiração, faço como minha geração: remixo. Mas continuo a amar declaradamente.<br />
Se gostam, ou não, "whatever, forever", mudem a faixa.<br />
"You don't know me. Bet you'll never get to know me". Na minha trilha sonora de malhação, também tem canção de amor! E na piscina, presto atenção nas conversas da raia ao lado. Foi assim que tudo de eterno começou.<br />
E na meditação, na posição de lótus ou na invertida, felicidade, perdão, abundância, gratidão e amor. Destas coisas, sim, tenho infinita saudade. E dos abraços apertados (raros, mas vivos), dos afetos e cócegas e risos inesquecíveis, do agasalho dado, da corrente de prata emprestada, do presente eterno que não abro mão de ter sustentado quase ao peito numa oração permanente, dos gnomos, das amenidades dos dias.<br />
Se, por hora, é pra eu me obrigar a ficar em silêncio, eu fico. Por amor, diga a todos que fico.<br />
Se é pra eu derramar uma lágrima aqui ou ali, choro. Não tenho vergonha de ser.<br />
Mas sigo pisando no passeio de cada rua que faz parte daquele caminho, como que num tapete de flores vermelhas e amarelas, e finjo que nem é comigo, que é só com a vida.<br />
Minha gratidão a este silêncio, pois. E quando bate a saudade, nem vou pro mar. Eu só fecho os olhos e sinto um braço e uma mão tocando os meus. Deve ser o vento.<br />
Pois que reafirmo aqui o amor, sabe? Um outro mundo assim é possível.<br />
E se faço algo errado, eu peço desculpas, e reinicio o computador do mundo (mesmo que não funcione a webcam).<br />
O mundo também toma forma no pensamento. Eu sou ainda muito jovem de corpo e muito mais de espírito. Santo? Não. Mas sou de duração indefinida.<br />
Sou astrólogo, acredite! Ou macumbeiro, como graciosamente se diz.<br />
Mas eu não sou drama! Sou só fama e nada mais.<br />
Adoro subjetivar o que é naturalmente sem graça.<br />
Se deve ser da idade? Não. É intensidade. É saudade. É coisa fácil e leve, na alma do meu paladar. Então, por obséquio, deixa eu amar.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b><span style="color: red;">Marco Antonio Jardim</span></b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-64066118089040220272013-07-22T19:08:00.002-07:002015-04-23T20:04:32.210-07:0035 VERÕES - Número 63<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgs847NAm2qbhbC2khedBY6ZmFMvLACkhaQ8zIn5NOPPy8AQdmUmcKfH7CDKbtXfi-qaWNEty6usIVY19xN2pCvaeIkdMIj__HXxQbBkyZ0I8YCgJCgKThduujJ7I44qGhV_bE31W1b0_Z5/s1600/1069997_486303594788759_1526747985_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgs847NAm2qbhbC2khedBY6ZmFMvLACkhaQ8zIn5NOPPy8AQdmUmcKfH7CDKbtXfi-qaWNEty6usIVY19xN2pCvaeIkdMIj__HXxQbBkyZ0I8YCgJCgKThduujJ7I44qGhV_bE31W1b0_Z5/s400/1069997_486303594788759_1526747985_n.jpg" height="400" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><br /></td></tr>
</tbody></table>
Adoro começo e meio. Fim não há. Mas tão-somente alguns fatos (não factoides) são infinitos. "O universo e a estupidez humana", diria Einstein. Todo o resto se escreve em tirinhas de papel para jogar aos ventos, tais quais as boas esperanças.<br />
Adoro oxitocina. É o direito de amar que o corpo propõe em tramas, fotografias em matizes combinados, arte imitada de alguma cena clássica de cinema. E o mais luminoso amor. Aquele que eu ainda não consegui viver.<br />
Creio que tudo se resume ao fato de que precisamos de amor. E de mais crepúsculos de verão.<br />
Há um ritual ali sob o céu, um gestual sob medida, ao som de Etta James, ou The Cinematic Orchestra.<br />
Penso sobre o silêncio, as emoções todas silenciadas.<br />
Tenho, nesta hora, um desejo, um pedido universal. Que eu dê sentido à minha vida, que me sinta importante pra alguém, que eu tenha afeto e, outra vez, amor.<br />
Pedidos de aniversário.<br />
Expressões que dizem, pelo menos, metade. É minha adorável distração. Solicitar, orar pela manhã. Transgredir a ordem da mediocridade em vez de me manter distraído na morte das ideias e das práticas.<br />
Estado isento de restrição, de não estar sujeito. De ser inteiramente livre.<br />
E que fossem comigo as pessoas que escolho a dedo.<br />
Não tenho filmes de família em super-8, não guardo muitas fotos, o Instagram ainda é um recurso poético tão pouco definido, mas, do que disponho em imagens, sorrio.<br />
Trinta e cinco anos sorrindo.<br />
Trinta e cinco anos de memórias. Como aquela de quando eu comia melancia no quintal. Ou a de falar com os gênios dos garrafões. Ou ainda a de comer miolos de pão.<br />
Não vivi tão intensamente, não amei por longo tempo, não viajei, mordi mais do que mastiguei, mas muito mais ri que chorei. E com palavras e sonhos dou um significado maior a tudo.<br />
É quando faço do mundo um lugar transbordante. Livre.<br />
Está aí, no exercício da liberdade de expressão, o significado de breve.<br />
Uma árvore de galhos recurvados, a luz do poste refletida, flores da cor do sol sobre o gramado iluminado, pólens de julho e a cena de súbito cessou.<br />
Na casa, um velho sobrado, minha mãe ao piano, depois averiguando portas e janelas bem fechadas, mesmo todas elas sem trancas. Tudo tão lacônico quanto as minhas sensações de desconforto, temor, estranheza e a dicotomia da morte iminente.<br />
Outra vez, esperanças.<br />
Outra vez, crepúsculos.<br />
O sol se perdendo do dia em vermelho, laranja e lilás. Um dos mais belos e infinitos efeitos a oeste da Terra.<br />
Da eternidade após a morte, de vestir uma roupa nova depois que o dia amanhecer, de viver.<br />
O reflexo da luz passando pelo vitrô produz uma subjetiva combinação na parede branca do corredor. Saí dia e noite por trinta e cinco anos.<br />
"I love the dance floor", gritam os hedonistas no The Guardian, no Le Monde, no Herald Tribune, no New York Times, no Japão.<br />
Ao lado, prefiro apenas calar e escutar "Clair The Lune". Ali, entre Copacabana, Leblon e a Lagoa. "Da iluminada vela na mesa velha de reunião antiga. O lugar cheira úmido, lembrando jornadas. Um dia, um dia".<br />
Dei um meio sorriso ao tempo ao longo destes dias todos. Senti o gosto da simplicidade cheia de alma, a iguaria da viagem no tempo.<br />
Do todo, um dos símbolos mais palpáveis da minha saudade é a minha mãe, e o piano. E o banho quente depois de ler os jornais, ou poesia.<br />
O gosto é sempre este, de saudade, de otimismo e jazz. Todos filhos da criatividade.<br />
Adoraria, nesta passagem, estar num Belo Horizonte, ou no são da cidade de Salvador. Entretanto, estou aqui, no porto meu da solidão. Dotado de razão suficiente pra distinguir o bom do mal crente, mas, caso não consiga, passo o tempo matando pernilongos ou pincelando sobre as unhas uma límpida camada de cor.<br />
Este é o tempo do ócio torturante, um dos reflexos da autoadoração desmedida.<br />
O fato é que eu e minha letra em post-it estão me bastando.<br />
Talvez pareça uma horrível doença, esta que me obrigou a me tornar invisível. Mas, de resto, disponho a paisagem de outro modo.<br />
Cancelo contratos noturnos, termino as noites sozinho.<br />
Escrevo, reescrevo, e o mundo lá fora a me aguardar a hora, a palavra, o olhar.<br />
Tudo, absolutamente tudo, depende do olhar. De como se vê sem nada ver, do quanto se tem a maravilhar.<br />
Depois de trinta e cinco anos, eu fico com o duplo sentido e sua repercussão.<br />
Fico sob a inspiração de Hormindo Barros, outro dos arautos do fitar: “Use primeiro os olhos. Num segundo momento, use a cabeça. Só depois use as mãos".<br />
Meus textos, minha vida, livres assim, são minha varinha de condão. Faço pra encantar e até catequizar.<br />
É minha política, lógica e coerente, meu cartão de presente.<br />
Trinta e cinco verões de céu azul.<br />
Declaro meu voto publicamente, meu aniversário de todo santo, exponho o ensaio e eis que saio a tempo da apreciação. Ou do escárnio.<br />
De toda forma, adoro quando chego em casa seguramente no horário.<br />
Estou aguardando já o meu instante da retirada, mas, por hora sagrada, melhor recomeçar os dias. Então, no final, tudo há de dar certo. Se ainda não deu, é porque o verão não findou.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">Marco Antonio Jardim</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-5182173996116945192013-06-08T07:09:00.001-07:002015-05-02T13:23:53.713-07:00QUE DÊ CERTO - Número 62<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKuWFKywLlcK_mY1mH57eC-pSQob6vggmiUklK06Tw_jxLctshoQ1qdcKje9NSIQn_D3rD2SggUExN7YOPA7YUa0wLc-nogeGozNbzLaVvEXuGiC79K2r-mnRX2EO__GkwyEoddLXHhwKg/s1600/COMETA-HALLEY-003.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKuWFKywLlcK_mY1mH57eC-pSQob6vggmiUklK06Tw_jxLctshoQ1qdcKje9NSIQn_D3rD2SggUExN7YOPA7YUa0wLc-nogeGozNbzLaVvEXuGiC79K2r-mnRX2EO__GkwyEoddLXHhwKg/s400/COMETA-HALLEY-003.jpg" height="272" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Cometa Halley</td></tr>
</tbody></table>
Não tornei a ver Floh desde que ele voltou pra Alemanha. De lá, enviou-me mensagens e fotografias.<br />
Dizia: "Querido, muito tranquilo e saudável. Lembranças a todos".<br />
Inesperadamente, na esquina de uma alameda, a das Borboletas, eis que vejo Floh outra vez. Abraçamo-nos sob a luz do sol no calçadão.<br />
Floh está tão bonito. Os mesmos fios de cabelo genuinamente claros, jogados de lado despretensiosamente, os olhos verdes profundos, a pele rosada de tão alva, os trajes tipicamente europeus.<br />
Mas havia algo que o tornava mais maduro. Talvez a barba espessa, os óculos com armação estruturada, ou os pensamentos e desejos, como ele mesmo afirma.<br />
Sentamos na parte mais alta da praça, em frente às casas antigas ainda preservadas, e conversamos por algumas horas.<br />
Ele me falou sobre Hamburgo e Berlim, sobre a festa de São Nicolau, o Parque das Águas, a Lapinha, sobre minha irmã.<br />
Eu só tinha a falar do passado e do presente. Nada mais.<br />
Levei-o para ver as fotografias de Vinícius e depois nos despedimos.<br />
Talvez eu devesse tê-lo chamado à minha casa para um vinho, um brinde, um conto, mas não o fiz.<br />
A gente sempre deseja que alguma coisa dê certo. O novo círculo de amigos, as grandes reviravoltas da vida, os compromissos com o tempo, algum casamento, outros filhos, as aventuras, as coisas seguras.<br />
Os planos do ano, da vida, do além. Aquela pessoa querida, reverenciada.<br />
O amor, a extremidade do amor.<br />
O gostar muito e o venerar de fato atestado. Como bem fazem os pinguins.<br />
A gente gosta, ou naufraga.<br />
A gente sobrevive à morte, ou se morre de alma.<br />
Portanto, desejo que dê certo. Os braços que fazem um país, a dona democracia, a afamada qualidade de vida, o estilo bem viver, a real dignidade de ser.<br />
Que dê certo o gosto do finito ao infinito.<br />
Do passageiro ao mesmo do eterno, do livre e do estritamente necessário.<br />
Que dê certo o cubo mágico. E o chá de pêssego gelado.<br />
Tudo há de dar certo, desejam-me. "A visão acaba, a audição acaba, o sexo acaba, o poder acaba, mas a fome continua".<br />
Que dê certo, sem poeira, o livro de Luís Fernando Veríssimo na cabeceira. E os outros projetos possíveis.<br />
Que recebamos as cartas de gentes supercompetentes, as pílulas preparadas na farmácia da vida, as fórmulas consistentes.<br />
Que preguem os botões, que sirvam os agasalhos, e os abraços, e que os bons jornais sejam postos embaixo dos braços.<br />
Que sejam lidas as páginas do Die Fackel no trem, no bonde, na caminhada a esmo. As letras controversas do poeta Karl Kraus. "Não tinha a mínima paciência com as pessoas que, no bonde, no trem ou na mesa do café, davam início a diálogos inanes sobre o tempo".<br />
O resto é o que faz parte de ser humano. Por isso mesmo, que deem certo até assuntos requentados. E aforismos. E caras de paisagem.<br />
Só não há lugar para lugares-comuns, clichês, ideias prontas ou opiniões fáceis.<br />
Por isso mesmo que deem certo os botecos de minha rua. As mulheres da vida, os jovens cafajestes, a polícia e o cheiro de gordura.<br />
E o mar. Ah, o mar. A manhãzinha ali se esgueirando pelos escritos de Virginia Woolf, pela areia e pelo humor de Mark Twain. "Um mínimo de som para um máximo de sentido", escreveu.<br />
Pois que se adorem uma coisa e outra. Coisa nenhuma é que não é permitido desejar.<br />
Caso haja hesitação, que se tome um copo d'água natural.<br />
Que se veja o retrato desvanecido de Liu, vestida aos moldes dos anos 50, com enormes óculos em degradê, vestido de bolinhas, fazendo crochê na praça do orégano em Miami. Ou nylon, malha, algodão e tactel.<br />
Que se experimente, que se esteja a par e se tenha noção.<br />
Que se vá quando o sol ainda não foi. O sol a gente mesmo inventa, tais quais as canções de amor.<br />
Que deem certo estes livros de receitas. Com capa de couro e cheiro de mogno fresco. Com gosto de lombo suíno grelhado ao molho de mel. Arroz com aroma de hortelã.<br />
Bordão, bom dia, bonança.<br />
Que se cantem "Caramel" por si mesmos.<br />
E que não tenham receio de olhar nos olhos. Como faz meu gato persa, O Branco, que me fita e parece interrogar: "Por que chamam Guerra Mundial, se nem todo mundo participa?".<br />
Sejam distraídos, queridos. Menos graves, menos rígidos. Voltem às origens.<br />
Que deem certo os números. Eles também servem pra alguma coisa. Até para versos.<br />
Há de se perceber poesia em qualquer lugar, mesmo sob os umbrais da porta. Basta mudar o jeito de olhar.<br />
Voltem atrás, então.<br />
Sejam francos, expostos, compartilhados, e até patenteadas sejam suas vidas públicas.<br />
Para se ter um estilo absolutamente pessoal é só virarem os olhos ao céu, ao cosmos.<br />
Que dê certo, por fim, esta imensa língua divina que fala a verdade com significados tão pouco iguais e tão insistentemente brilhantes.<br />
Eu observo as estrelas e torço, apoio, espero, desejo ardentemente que dê certo.<br />
Se não for assim, que eu me vá embora com o cometa.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">Marco Antonio Jardim</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-25200932669055111442013-05-14T19:29:00.000-07:002015-05-02T13:09:47.747-07:00AS GENTES TODAS - Número 61<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzDZR_6zOCpvlpJLJMKosQf6B8sotsi38No5Is5bJ7uNPbZd78xJL7ZYbrRDK2vMOIcwMPq3424giICYMa28IklfiGohkkSBwlKB9_qHRcQzpTYekQFuXb5cNZQtIcL1sWaHXZu02HBGYJ/s1600/pilula+das+gentes+todas.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzDZR_6zOCpvlpJLJMKosQf6B8sotsi38No5Is5bJ7uNPbZd78xJL7ZYbrRDK2vMOIcwMPq3424giICYMa28IklfiGohkkSBwlKB9_qHRcQzpTYekQFuXb5cNZQtIcL1sWaHXZu02HBGYJ/s400/pilula+das+gentes+todas.jpg" height="266" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Fotografia de Vinícius Gil (Purki)</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Se tem algo que inventaram que é, de todo, instigante, intenso e emocionante, é gente.<br />
"Gente olha pro céu", cantou Caetano.<br />
A gente daquela terra do lado de lá, cantou a pedra do dicionário.<br />
"Você é cômico", desdenhou Diego da minha filosofia humanitária.<br />
"O que sou é mítico, quase um ícone", respondi atrevido.<br />
Sou um barato, ainda que, por vezes, seja também um chato.<br />
"Sou um moderno intelectual que vai ser rememorado", autoironizei minha chatice lúcida. "Megalomaníaco!", disse em tom mais alto.<br />
"Sou um otimista, com autoestima na medida", tentei amenizar.<br />
"Tomara, então, que você seja o que, afinal, pensa ser", concordou com certo sarcasmo.<br />
"Eu não penso ser, Diego. Eu sou", respondi, mantendo a serenidade.<br />
"Oui, oui", riu.<br />
"Je peux vos aider à être comme moi", finalizei à francesa.<br />
Gente é assim, quer saber o um, o lugar, e qual rio deságua no mar.<br />
Escrevi para Manno num pedaço de papel, em meio aos seus rugidos pernambucanos e as batidas do esqueleto negro baiano, e só não declamei porque havia tanta gente, e tão perto de mim.<br />
Dos escritos, eu dizia assim...<br />
No todo que escuto e reverbera, no todo que se faz eco, no todo que há um.<br />
No único que diz veementemente aos ventos todos que circulam aos todos, sim, há um.<br />
Nos números que se contam em palavras tão incontáveis quanto as estrelas se perguntam quantas são, há o tamanho do universo em expansão.<br />
O um.<br />
Nas reticências de qualquer pensamento difundido, defendido, vamos todos nós, e os outros, gentes, os que se resumem num.<br />
Do concebido algo pobre do expressado, cor de cobre também se rima rico o tal do ziriguidum. Manno, gente é muito bom. Só com gente, e sons-imagens, pra vida ser inteira.<br />
Gente, às vezes, é mais de um plural. Tal qual Pessoa, "nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo".<br />
E ainda que a vida minha se divida entre o cômodo dos dias e a gaveta das utopias, quero me fazer presente, franco, sem restrições (e até ser venerado, por que não?).<br />
Quero Bárbara um dia desses, e ser disposto num porta-retrato de alcova ao piano-adágio da expressão solitária de Anderson.<br />
Um dia desses, quero ser fotografado divindade por Purki. Com o rosto rasgado, dilacerado, delgado, apaixonado em verbo de larga escala.<br />
Quero um nu assinado, descolorido a lápis por Alex num quarto de hotel desativado.<br />
Quero Di. Na parede do meu próprio quarto.<br />
Eu, gente de coração vagabundo, acautelando o mundo em mim.<br />
Qual gente, em qualquer idade, não quereria ser um emblema adesivado, um Vitor Hugo abravanado na janela do museu-moldura da verdade, publicado na história?<br />
Quem não quereria receber uma ligação de alguém que há tempos não vê, só pra escutar: "De repente, saudade"?<br />
Gente assim pintaria até os cabelos e deixaria a barba por fazer. Faria qualquer reverência de sagração. Um autoreflexo. Um não.<br />
Gente quer comer. Matheus, o rotulado, letrado, profeta profano, quer comer e beijar em público.<br />
Satisfação. Meu gato persa quer comer. E eu quero ser comido, cozido vivo, por Nara, Marina, Jamille, Ellinha, Bethânia, Selma, Renata, Cecília, Leilinha, Vandet, Suzana, Luiza, Marcela e Didi.<br />
Gente que brilha por aqui. Bem ao lado da Tenda, no Beco, de pernas cruzadas, pedindo um isqueiro que acenda.<br />
Você precisa andar com a gente, Vitor.<br />
Aqui bem pode ser a melhor cidade da América do Sul.<br />
O Xamps Elisées em véspera de feriado.<br />
A alta madrugada, o meu mirante autodenominado.<br />
Se oriente, rapaz. Sua barba correta, seu agasalho escuro, seu olhar semipuxado, tudo tão bem pensado como o sopro do seu riso de cigarro.<br />
Passam uns, ficam outros.<br />
Fica um tino de ansiedade não comedida.<br />
No afã desta incoerência, passa, ao seu lado, a vida, como os hebreus atravessando o Jordão.<br />
Passa a madrugada e nem um olhar seu encontrando, do meu, um vão.<br />
Num impulso irrefletido, brusco e inesperado, eu o segui. Em noite de uma estrela só, o marcador sinalizando treze graus.<br />
Gente só quer ser feliz, Vitor.<br />
Depois de meio-dia, em dia agora raro de sol, Iguarias.<br />
À minha frente, fios de cabelo cortados sem afilada simetria.<br />
Vontade que havia de tatear. Pelos espessos no rosto delgado, pelo mundo, pela porta afora, pelo canto do olhar.<br />
Vi, do cristalino, fitado em mim, gente, estudando, talvez contemplando.<br />
Daí chegou Macário, e Tina, e Saldanha, e todo o gesto-poema-inteiro de Luiza outra vez.<br />
Toda aquela gente pensando, dançando, lavando roupa, batendo o Tambores e amassando o pão.<br />
Sorri, vertendo meu melhor encanto. Indaguei se era alguém especial um tanto e, de novo, sorri.<br />
E, se não conservei imagens de outrora, é que fico com esta hora de idas, vindas, da realidade de agora, dos escritos sinais em números numa nota de dois reais.<br />
Meu mais novo talismã guardado no bolso.<br />
E segui, caminhando a esmo.<br />
É assim mesmo, gente quer sempre prosseguir. Em meio à turba cantando em coro, procurando aquela entidade.<br />
Sem oscilar, eu vi.<br />
Gal. De 74 e dos anos 90.<br />
Tínhamos planos, eu e Gal.<br />
Na mesma afluência, ela também me viu. Buscamo-nos. Eu, num abrigo púrpura. Ela, acetinando. E fomos.<br />
Porque só sei viver mesmo se for assim, intenso, em noite que não tem fim.<br />
Roupa azul espalhada no chão, corpo inclinado, habituado em demasia ao outro, aberto, plano como a palma da mão irreprimível. Ou da língua em francês, com gosto de Amarula, crível, sussurrando "ma langue dans votre tatouage, mon petit".<br />
Uma sardanisca correndo próxima ao ventre frio. E o líquido seminal rente ao meu peito se reproduziu.<br />
Ah, aquela luz no cio da manhã invadindo.<br />
Gente, como usurpou o meu tempo aquela luz!<br />
"Baby, why you look so sad?", cantou baixinho Cibelle, ou teria sido Ayade?<br />
"Porque vim-me embora", respondi. Vesti meu agasalho com marca de cigarro uma última vez. Porque uma hora a gente tem mesmo que sair, despedir.<br />
"Um dia a gente pega a mala. Dia, caminho, sol, ânimo, medo. Na noite seguinte, risco, faísca, estrada, o nada. O sol, o sol, o sol". Ofuscando a vida dos outros, levando-a embora feito onda salgada de mar.<br />
Faz tempo que o dia não se rasgava assim.<br />
Estamos em maio e faz tempo que não saio de mim.<br />
Esse espetáculo das ruas. Das gentes todas que querem luzir.<br />
Depois que inventaram o tempo e todas estas pessoas do mundo para o passar das horas, só mesmo silêncio, segredo.<br />
Minha diáspora agora é solidão, sério! E lá estava eu me abraçando.<br />
Gente, quanto doce mistério.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">M. A. J.</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-69991689371767769532013-04-21T17:17:00.004-07:002015-06-19T14:34:18.232-07:00CASTELOS DE AREIA - Número 60<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRrqrwRAXxJ2yQqKGgv_2YsNJQR7EFbGt2tVIQ_Hy9YiO_VkaOuZaaH-K_Eg3_j7xtp4lBH5LA5vImYzk9Nksh9WcNXt0iuLRBjA20lsN6m5B1zucvcErl_-VDojlz1Q4_P-UupCCaCwNN/s1600/tumblr_maeeadNTiq1qiig9to1_500.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="261" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRrqrwRAXxJ2yQqKGgv_2YsNJQR7EFbGt2tVIQ_Hy9YiO_VkaOuZaaH-K_Eg3_j7xtp4lBH5LA5vImYzk9Nksh9WcNXt0iuLRBjA20lsN6m5B1zucvcErl_-VDojlz1Q4_P-UupCCaCwNN/s400/tumblr_maeeadNTiq1qiig9to1_500.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
Esse mundo não é meu, nem seu, mas um dia hei de construir castelos nele.<br />
Marcus ligou, tirando-me dos devaneios do meio-dia em que, sentado no sofá da ante-sala, sob a luz morta que vinha da janela do meu quarto e refletia na mesinha empoeirada, eu lia sobre a Holanda.<br />
Marcus pediu urgência no envio do modem. Ele viajaria às 21h30 para Salvador e, de lá, para Nova York.<br />
Acreditei que ele não esqueceria de repetir o pedido, mas partiu sem levar a peça. Deixou-a guardada numa gaveta, sob papéis.<br />
Liguei e os telefones, inexplicavelmente, deixaram de funcionar. Consegui um número de uma vizinha, duas casas abaixo da minha, e passei a mensagem.<br />
Notei que minha rua estava silenciosa nesse dia de frio cortante. Até aguardei na porta, fumando um cigarro, já que era sábado.<br />
Marcus não veio.<br />
A porta, então, bateu. Minhas chaves ficaram dentro. Os telefones continuavam sem funcionar. Fui atrás de chaveiros ali pela Gerson Sales. Encontrei um que precisaria de transporte. Ele demorou a descer as escadas do apartamento mal projetado.<br />
O tempo passava, mas eu estava estranhamente calmo. Alheio, talvez.<br />
Conheço bem esta sensação de defesa. Algo estava pra acontecer.<br />
Segui numa outra direção, num cruzamento entre uma feira livre e pontos comerciais.<br />
Num átimo de segundo, um motociclista em alta velocidade se chocou com o carro.<br />
"O homem é o homem e a sua circunstância", me veio à mente em flash. Pensei em Deus.<br />
Deus? Meus olhos fecharam. Não sei de onde surgiram tantas pessoas. Aquela rua parecia escura e abandonada, minutos antes. Os burburinhos todos estavam me incomodando. As luzes também.<br />
Eu só conseguia olhar o todo, a dinâmica da vida e sua concepção. E meu corpo só sentia os permanentes processos de mudança. Um por um.<br />
Mesmo no termo da existência, sou um poeta à moda antiga. Com amor à vida, ainda por cima.<br />
"O amor que está vivo nunca está pronto. O amor que está vivo está sempre em movimento". Onde mesmo li este trecho? Eu forçava algum gesto, como se algo me impelisse para o que me afigura belo e grandioso.<br />
Entrecortadas, pessoas e cenas iam e vinham, feito sombras. A noite de aniversário de Diego; sons de uma garrafa de vinho à deriva no bagageiro; Marcelo interpelando transeuntes numa rodoviária em madrugada plena; um bilhetinho dirigido a Leo, o companheiro de Cecye, e sua expressão, sua silhueta inteira à meia-luz; as incitantes conversas com Yves e Manú; as vitórias de minha mãe; e o intimismo da casa de Rachel.<br />
Ah, como aqueles cômodos me fazem recordar Jhonathan. Lucas chorando. Di chorando. Trechos de voz de Janelle. Palavras esparsas, como sienista. Uma vontade inexplicável de estar numa piscina, mergulhado por inteiro, batendo cinquenta metros na água azul.<br />
De novo, a voz de Jhon ao telefone dizendo "Ei, rapaz!". Uma inscrição de camiseta: "às vezes eu tento ser normal". O gato mesclado que deitou ao meu lado e o meu filhote J., mordiscando meu queixo, pedindo carinho. E Lana, numa esquina.<br />
Nós nos parecemos. Sempre estamos com um livro embaixo do braço. Por hora, Ernest Hemingway comigo e alguma coisa de Pessoa com Lana.<br />
Lembro de termos ido ao Boliviano. Tomamos capuccino no balcão. Adoro balcões de bares e cafés.<br />
Por vezes, no entanto, sentamos em mesinhas redondas e passamos o tempo a rir de nós mesmos. Por três vezes nos encontramos lá num mesmo dia. Ela não parece se importar quando chegam amigos ou conhecidos e roubam minha atenção.<br />
Às vezes, vou sentar-me num banco acolchoado, ao fundo do salão de piso em mosaico antigo, e fico a trocar ideias e tempo com a enteada do meu irmão e sua animada filha, Renata.<br />
Ou passeio pelas gôndolas de doces com Gau e Cleiton, que sempre me observam com olhares inquiridores.<br />
Outra vezes, vou para um canto mais discreto, à meia-luz, com minha irmã, seu belo companheiro barbado, e outros amigos.<br />
Sempre bebemos Bourbon com papaya, preparando-nos para alguma festa.<br />
E lá está Lana, no balcão do Boliviano, com seu livro aberto.<br />
Engraçado que, em alguns momentos, eu via, ao seu lado, um menino. Parecia um pequeno jornaleiro, vestido com boina xadrez, suspensórios, camisa muito polida, posta por dentro da bermuda curta, e sapatinhos lustrados da mesma cor das meias.<br />
Sempre que eu aparentava cansaço ou tristeza, lá vinha o menino, afastando-se de Lana, a me cumprimentar.<br />
Eu o vi me observando ali, no cruzamento. Era um menino de rosto magro, mas afilado, impossível de esquecer.<br />
Eu o vi também passando por uma borboleta de ônibus e um velho o examinava.<br />
Vi meu passado completo e os reflexos de um futuro impreciso.<br />
Vi Caio falando sem parar. Suas frases volvendo repetidas. "Sim, eu acredito. Sim, eu acredito. Sim, eu acredito".<br />
Havia gosto de sangue em minha boca. E de Cosmopolitan.<br />
Alguém, que não lembro, gritava censuras injuriosas ao motociclista. Era um conhecido. Não recordo mesmo quem foi, mas sussurrou: "Você é a única companhia agradável para esta noite. Por favor, fique!".<br />
Senti minhas costas marcadas, doídas. Meu irmão veio ao meu encontro. Eu estava no intermédio entre o céu e o inferno. Eu e minhas loucuras sãs, no limbo, decidindo meu destino.<br />
Com os olhos ainda fechados, nestes segundos intermináveis, vi uma placa de mármore numa porta descascada. "Docere, delectare, movere", estava escrito em letra cursiva.<br />
Na iminência do tempo que se encerrava, respirei.<br />
Eu havia escutado a batida. Olhei para o lado inverso e vi o corpo imóvel do motociclista no chão. Saí do carro e corri em sua direção. Peguei em seu ombro e perguntei se estava bem. O mesmo conhecido o chamava de louco. "A culpa é minha", respondeu o homem. Suspirei, serenado. "Aqui está minha vida - esta areia - tão clara, com desenhos de mudar dedicados ao vento".<br />
O chaveiro, enfim, abriu a porta.<br />
Um dia ainda hei de fazer castelos.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">M.A.J.</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-78872154885903193862013-03-24T14:29:00.005-07:002015-07-27T14:53:50.838-07:00EXTREMA UNÇÃO - Número 59<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOEz-NXLpzYX5jItNTKoIDHI0rvJZuilSzBWRvR3d-atNgQj7RhWZNGFfHEk2t4bzKcmZzASHlh5F_K0OCCyi5NETP6B8jS5a7KbTVtMeG8hECx-fea9xfS508qLU4t4aSltSTwQ4Pt6yI/s1600/ora%C3%A7%C3%A3o2.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="282" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOEz-NXLpzYX5jItNTKoIDHI0rvJZuilSzBWRvR3d-atNgQj7RhWZNGFfHEk2t4bzKcmZzASHlh5F_K0OCCyi5NETP6B8jS5a7KbTVtMeG8hECx-fea9xfS508qLU4t4aSltSTwQ4Pt6yI/s400/ora%C3%A7%C3%A3o2.png" width="400" /></a></div>
<br />
"Descarta os conceitos. Esquece o que você já viu, ouviu, cheirou e passou a língua - nada mais está selado".<br />
Nem o banho que tomo todo eleito dia parece ter uma síntese.<br />
Nem o banho de J., meu gato persa branco.<br />
Nem a desinformação dos direitos do homem, quando, por omissão, escolhe seus votos.<br />
Escolho os preparados de beleza, a depender do dia ou noite. Distribuo ordenadamente sobre a bacia de louça. Experimento, no tato, a água quente do regador. Respiro o vapor. Ligo o rádio cipó. Toco o corpo, a mente, o entendimento.<br />
Deixo a forma molhar, da nuca ao dorso, das costas duradouras ao derrière, da parte interna das coxas à planta dos pés.<br />
De tudo escorre lágrima, sorriso, gozo e dança.<br />
Meu banho não é liturgia. Mas tem oração contida.<br />
Ainda que reflita certa falta de lucidez, por parecer futilidade, meu banho é simplicidade.<br />
Bênção, como a de Francisco, o papa. Ou a da freira que recebi em dia de domingo.<br />
É uma embriaguez umedecida sem cerimônia.<br />
Uma sentença nua de júbilo sobre os membros com gosto de azeite, ou vinho, ou sangue.<br />
Gosto de jambu e tucupi. De mangue. Tomate seco temperado, castanhas e leite condensado.<br />
Gosto de transgressão da ordem imperativa da mediocridade.<br />
Gosto de azeviche de chocolate.<br />
Meu corpo é todo gosto. Muito além da extrema unção.<br />
Parte de uma charada que define uma inteira palavra.<br />
É uma ideia abstrata para os demais e tão concreta para mim quanto o ar que seca os fios de cabelo.<br />
Não a ideia distraída na morte de outras práticas. Por hora, os fios dessa são macios. Caindo corredios sobre o rosto de poros abertos e de silêncios.<br />
Sim, emoções beatíficas, que se abstêm de falar.<br />
Daí borrifo um crisma de aroma penetrante e altivo no ar.<br />
Notas de lima, bergamota, limão e mandarina.<br />
Visto-me ao estilo très chic comedido. Argolas, boina de abas curtas, cachecol de listras, cardigã, calça reta de alfaiataria e uma roupa de baixo moldada para ressaltar o maço e outras ausências.<br />
"Você é um rapaz de sorte", disse alguém à boca que beijei nesta noite.<br />
Senti, no reflexo do ósculo, o sabor do meu hálito ungido. Parecia água doce, benta, com um vento morno soprando insistente aquela missa.<br />
Minha língua parando o tempo, penetrando a outra ilha deserta, mergulhada em saliva, por entre os lábios, pelas faces internas, percorrendo o véu palatino.<br />
Amor incondicional? Eu até posso compreender afetos, permitir quinze dias de encontros às escondidas, até concordar em pagar por sexo numa madrugada ébria, mas não consigo mais entender histórias de amor.<br />
Blasfêmia? Perdoem-me João, Marcos, Crist, Cristo, e outros profetas, mesmo aqueles dos quais me proíbo escrever o nome ou os que nada teriam a dizer.<br />
Vinícius se aproxima e pergunta ao pé do ouvido: "Esta boca que você beija é a mesma da semana anterior?".<br />
Meu beijo é um chamado ao ócio de um ato solene, uma graça divina.<br />
Uma febre, um suor, um delírio, uma ideia esgotada.<br />
Meu beijo não tem tempo demarcado (até ganhei concurso assim).<br />
É como uma virtude, uma nova idade, sem medida de duração.<br />
E é claro que sou sujeito a mudanças sucessivas de substância interior.<br />
Por hora faça-se luz, faça-se algo, mas que se desfaça logo depois. Como as cigarras em fim de tarde.<br />
Só aprecia quem também tem sentidos despertos assim, e não aqueles que desacreditam ou criam personagens de mim.<br />
Como os que fizeram uma ceia. Serviram uma quiche Lorraine, queijos, nozes, vinhos, Speech Debelle e alguma dose de fé.<br />
Tam me deu seu coração trôpego.<br />
Indira, uma voz baixa.<br />
Bárbara, curvas.<br />
Milly, um benzinho, uma salvação.<br />
Lu, seu fluido transparente, levemente alcalino, segregado e derramado.<br />
Meu irmão me deu um fim de noite.<br />
Leo, palavras hábeis em dia novo.<br />
O que cedi?<br />
O que desejaram escutar e um lapso de tempo futuro onde dormi sozinho, na minha casa, onde se come da minha hóstia, da minha própria comida cara.<br />
E a frase de Franca me contrariando: "Sim, é preciso tempo".<br />
Triste religião de chuva fina. Caiu a tempestade e meu espírito se quebrou. Quando notei do alto de minha cruz, era domingo. Dia de ressurreição.<br />
Ansiava, de alguém, um convite para uma casa nas montanhas, celestial, um texto corrente, um terço e alguma despretensão.<br />
Meu corpo não tolera mais excessos, nem quando beira a medida certa.<br />
Até que descobri um novo nome.<br />
Samuel, o aldeota de pele e olhos claros.<br />
Um achado no cosmos, no espaço sideral, uma reza ou mesmo uma canção de amor.<br />
Um pastor nômade. Um homem solitário.<br />
"Nobody is so queer as folk", repetiu o homem solitário no reflexo do espelho.<br />
Segurei suas mãos, que retroagiam, toquei seu rosto em desdobramento, dei-lhe um abraço forte e um beijo, mas não o vejo mais, este nome de Deus.<br />
Foi outro, um encosto, que deitou sua sombra sobre minha carne e quis um pacto, um conluio.<br />
Um terceiro, levitando, feito anjo (os anjos, de onde vêm?), levou-me a uma travessa estreita e antiga, de onde se ouvia o som de uma caixa sonora.<br />
Homem de profunda piedade. Mas o piano emudeceu, "como emudeceram as fotos de rostos conhecidos que o enfeitavam", escreveu Isis.<br />
Descarto, enfim, os conceitos.<br />
Porque meu propósito é universal, não tem uma só cor.<br />
De tudo que já cheirei, ouvi, lambi ou vi, esqueci a cor.<br />
Até mesmo o cheiro, som, gosto e textura do mangustão.<br />
Ainda assim, só ou em par, sei que serei capaz de alguma coisa realizar, de alguma redenção.<br />
Sabe qual é, afinal, meu conforto?<br />
É que, da vida, só me levarei morto.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="background-color: red;"><b>MAJ</b></span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-89054556324136534462013-02-24T09:39:00.003-08:002013-02-24T09:47:10.675-08:00PÍLULA DO RIO AZUL - Número 58<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZSTw_oYaUPWKSyiNZf_UM1goFO00O7IS0susBeodCIDfPrW3X_aRxmtBLrsyFYvacFWv6ubDKenBsz-uPSYPXKbt_ZrF_ug1Eijq7tbXMBya6F-NhPT0twsYcwYyK1Pye3tfT50-wd53u/s1600/12122012427.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZSTw_oYaUPWKSyiNZf_UM1goFO00O7IS0susBeodCIDfPrW3X_aRxmtBLrsyFYvacFWv6ubDKenBsz-uPSYPXKbt_ZrF_ug1Eijq7tbXMBya6F-NhPT0twsYcwYyK1Pye3tfT50-wd53u/s400/12122012427.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<span id="goog_1933054969"></span>
Estou, novamente, dobrando o Cabo da Boa Esperança. Vislumbrando, desta vez, minha tão almejada descoberta à Índia. Melhor dizendo, ao Rio. Aliás, esperança é um nome tão bonito, um bem tão desejado, um pedaço de qualquer bom lugar, uma cobiça maior que as estrelas sobre o mar e o marinheiro. Por ocasião, o marinheiro é o que dirige, com hospitalidade, a embarcação do táxi até Santa Teresa. Diz-se que é bairro nobre. Prefiro ver como uma parte da serra tão exclusiva quanto o encanto do rosto do atendente da padaria orgânica. Uma vista tão inteira ao entardecer, ao satisfazer a imagem do impulso do tempo. Tal qual um relógio de pulso que para pra ver o bonde chorando a cada minuto. A cada detalhe do casario quase intocado. Alguns grisalhos, cinzentos, do século XIX aos anos 40. No meio da tarde de Santa Teresa recebi um chamado de alento. Não foram os ecos do convento, nem dos imigrantes, muito menos dos hipsters. Subindo as ruas Joaquim Murtinho e Almirante Alexandrino, no imaginado bonde amarelo tracionado por muares, recebi o chamamento dos que residem ali. Dos bons e maus sob o sol que brilha independente. Minha descendência parecia estar ali naquela tarde. E minha consequência era de estupor. Ou mesmo expressão de carinho. Sagrada lágrima do bondinho. No Cafecito, dizem que sagrado é o que se sente. Eu, ali, era só um homem profundo, um frame de segundo. Todas as realidades e fantasias tomando forma. Da pracinha Odilo Costa Neto ao final da escadaria colorida, formei opinião. Perdi qualquer traço de glória pessoal pra dar um ar coletivo à movimentação. Pra ganhar tempo na história sem perder um certo vigor juvenil. Ainda que eu tivesse voltado ao tempo, como se meu passatempo fosse andar pelo Montmartre carioca, pelas vielas, ladeiras e ruas estreitas, meu semblante, ao fim das contas, era, sim, vivaz. Estava a dançar do mirante das ruínas ao centro do Rio. Da estação das barcas ao centro do Rio. Do Lavradinho à Lapa tão descolada no centro do Rio. Da Fornalla de Botafogo aos feitiços da feira de Ipanema. Dos risos de Tamara ao abraço de Juliano na pista black da Comuna. Das faces e forças de Madonna, feiticeira, vampira, bacante, loba, morfa, morta, viva, eterna, entre outros entes, tão perto, tão rente. O Rio é assim. Tal qual o brilho encantador de Thuthia, o vestido de Clarinha, a bolsa trespassada de Rachel ou a barba de João. O abraço do Corcovado ou as mudanças do verão. Copacabana, Ipanema, Leblon. Os corredores de árvores sombreando, outra vez, a esperança em meus ombros. O Rio que conheci de vista, de fazer passar. Como os tapetes de folhas à beira-mar. Como os móveis da lojinha mudando de lugar, ou a tinta da caneta riscando as linhas em minhas mãos e as palavras perfumadas de almíscar pelos muros, pelo chão. E o imutável curso do tempo, do então. E os óculos espelhados, quadrados. Os cabelos assimétricos ou de corte levemente militar. As bermudas de alfaiataria e as camisas retrô de botão. A Gávea, a Rocinha, a Barra e as pedras enormes nas avenidas a ladear. E, claro, o mar. Os biscoitos Globo, as águas de côco. A Praça 15 de Novembro, o Teatro Municipal, o Chafariz, os palácios Tiradentes, Duque de Caxias e o Capanema. A Biblioteca Nacional, o Brasil da Central e o impressionante Paço Imperial. A energia do Convento, do assentamento e dos bancos em frente ao Cine Odeon. As ruas imprescindíveis, as vistas inatingíveis, as esquinas novas e antigas, o estreito caminho e o chopp do Amarelinho. Do Pão de Açúcar, os garotos da praia da Tijuca, da Urca ou do Circo Voador. O Glória, a Lagoa, o Morro Dois Irmãos e aquela imensidão. O Rio de Janeiro continua azul. O Rio e suas meninas. Rio do corpo molhado de Itaipava, do berro pelo Aterro, do sorriso de Laranjeiras à beira da linha do horizonte. Rio defronte a mim, incerto. E que logo começo outro por dentro, por perto. O Rio é assim. Primeiro era a cidade, depois sol e mar. Solimar e felicidade na antiga Rua da Lama, do Leme. Ao tempo em que o espírito se enche de mansuetude, se eu tivesse mais tempo, mais alma e plenitude, eu daria, eu sorriria até as pedras do Arpoador. Ah, essa saudade torrente. Embora só pareça feliz, meu tempo presente, de fato, será sempre este verão. Este Rio que corre e não cansa. Este mar sem volta, tão azul quanto cor de esperança.<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">MAJ</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-18483725965420696952013-01-27T15:25:00.003-08:002013-02-04T14:48:12.946-08:00PÍLULA DA CIDADE-SORRISO - Número 57<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqs7CBf2pWAoxNGguXJqqnL61j683O0zn8o7hS5wGF-tFNup7H7LC_1MqHOakHK7op1fbbxp35gBADhFTxa5iE2Ck9Lc6kfa8WkGiFVHHhoq6XNCyvdj3cxwKaM0lKcpteNjilzPN7QnoH/s1600/niteroi+2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="277" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqs7CBf2pWAoxNGguXJqqnL61j683O0zn8o7hS5wGF-tFNup7H7LC_1MqHOakHK7op1fbbxp35gBADhFTxa5iE2Ck9Lc6kfa8WkGiFVHHhoq6XNCyvdj3cxwKaM0lKcpteNjilzPN7QnoH/s400/niteroi+2.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Vista de Niterói</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Onde? Na cidade-sorriso. Tudo mais se trata disso. De onde se quer estar. Comigo? Quando encontrei Ana Clarinha, de shorts, óculos gatinha, cabelos curtos não tão descoloridos, batom vermelho e sotaque rasgando o x, é que, por meio de todos os sentidos, compreendi. Ali estava o dessemelhante no semelhante. Era um teste, em plena sexta-feira de São Sebastião, o santo popular. Nos misturamos à celebração do dia, nosso excepcional solstício de verão, em reverências à vida num ônibus lotado sobre a ponte. Gaivotas pairavam no ar feito papel de seda, repletas da cor azul refletida no branco das penas. Diálogos ladeados pela entrada da baía, pelo mar. Por vezes nos abstínhamos de falar. Parecia silêncio também em volta. E ficávamos, taciturnos, a observar os tons de luz. Tudo tão azul e quase verde. Tão amarelo e quase cheio de mistério, de escapismo. De qualquer coisa que fugíamos, a busca de uma imagem padronizada continuava a ser: onde estamos? E além deste horizonte, quem somos? A linha aparente entre o céu e a terra. "Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos", diziam as linhas de um livro de Lygia fechado em minhas mãos. Não que fosse meu grito surdo, mas havia um espanto quase infantil (e mudo) ao ver aquele pico com tantos metros de altura, aquele monólito de milhões de anos, talvez feito mesmo de açúcar sobre o barro. Olhando a pedra fenomenal, a mata verdejante em volta e os corredores arborizados, descobri-me que sou mesmo um ilustre varonil tendenciado a afetos, compaixão e ternura. Sou daqueles que se encantam com um juntamento festivo no porto da enseada, nas balsas, na praça à beira-mar, que parece não estar suspenso a olhos vistos. Sou da orla que se comunica com as ruas estreitas, o tempo, os ciscos e os arabescos dos portões. Da corrente de ar fresco carregando, sobre e por entre os prédios antigos e novos, uma história esquecida que se esgueira por ali, na velha vila Niquíti. Do lado esquerdo, um bistrô, simples, de pouca largura, mas tão bonito como o próprio lugar da vida. Do outro lado, tendas de água de côco. Minha vida em poucos dias era mesmo andar guardando recordações dos velhos casarões entre edificações modernas, da velha aristocracia entre as madames e seus cães com sapatinhos. Mar, areia e pedras portuguesas no caminho. Paralelepípedos, asfalto e verão. É desta saudade que fala minha sensibilidade de estação. E das bonecas enfeitadas no resguardo das janelas mais baixas, de riso estático, vestidas de chita estampada de flor, vendo a passagem do tempo naquelas paragens ali. Quase sempre elas todas morenas, cariocas, que se almejam ardentemente só de olhar. Distante do Cristo, estava eu num refúgio, numa tarde que demorou a cair. Aquele aroma característico, de sal e vento, diante das figuras distintas do meu cotidiano, de permanente anil, mestiços de sandálias de dedo, tostados ao sol. Oscar Niemeyer, quando fez seu Caminho sobre aquela água que se esconde, deve ter tido dia como o meu, céu sem nuvem, com um balão pontilhando a cidade. O mundo invisível dos tupinambás ainda tão presente, apreciado pelo sentido da visão e do respiro quente. "Antiquíssimo, antiquíssimo!", repetia uma senhorinha que passeava por Icaraí, marejando os olhos diante de sua própria percepção daquele porto sinuoso, talvez o verdadeiro rio. Andar arrastado por ali era como uma prova de amor, um mito. O importante era manter a mente quieta, a espinha reta e o coração convicto de toda cor. De todo caqueiro das floriculturas das ruas, como borboletas a cada esquina. Dos cheiros diversos do hortifruti. Do homem lendo o jornal na banca de revistas e outro pedindo uma coleção de jazz em frente à cantina italiana. Do "Good Morning" da voz de Norah que se ouvia de um apartamento. Do menino, um alento, dos fios de cabelo loiro feito sol que arde e ao tempo do último som de Tim Maia à sombra da cidade, das construções coloniais, ao pé da serra dos sinais. Do pai que dizia ao filho: "Vai pela areia". Do equilibrista de corpo perfeito de slakline. Das amendoeiras à margem. Da jangada solitária ao longe das águas frias. Sortes e simpatias joguei às namoradeiras que eu via. E me confessei ao Santo Cristo dos Milagres assim: "Estava amando. Ele me deu por penitência que fosse continuando". E que seguisse minha trilha. Por onde, santo, a recompensa prometida? Onde, afinal, a cor do amor? Na Terra de Arariboia, onde me senti em casa. Onde se fez luz, se fez algo e sentimentos poderosos me impediriam de partir dali, da cidade que sorri.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b><span style="background-color: red;">MAJ</span></b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-67257272753920315072013-01-05T10:48:00.001-08:002013-01-05T11:05:26.753-08:00RIO DA PÍLULA - Número 56<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkA0BZcbWYifG0KMbOKLWc6A0BJh5O9YQdfe8zTf-T4YZJhwSOaxnJoFG02kka-3m5fn-2BLwxpSwZHz1XRSp3mfYFNRODaj6UZmTVSphyzsBnpYiCE30Q30tbisT8QVB5qgHkbiTqKbuR/s1600/mulher-de-azul-vermeer.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkA0BZcbWYifG0KMbOKLWc6A0BJh5O9YQdfe8zTf-T4YZJhwSOaxnJoFG02kka-3m5fn-2BLwxpSwZHz1XRSp3mfYFNRODaj6UZmTVSphyzsBnpYiCE30Q30tbisT8QVB5qgHkbiTqKbuR/s400/mulher-de-azul-vermeer.jpg" width="326" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Tela do pintor holandês Vermeer</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Acordei. O toque de alvorada me tirou de um sonho luminoso. Nem por isso estava sobressaltado. O cômodo, gentilmente emprestado a mim por Ana Clarinha, era de um tal silêncio de ouro que esfreguei os olhos pacientemente, antes de encarar a luz da manhã que invadia o quarto pelas cortinas em tom de bege. Das fisgas de luz na janela do nono andar do Casablanca, o céu manipulado do Rio. Azul, com um clarão de espanto tão intenso que parecia puro, não real. Deitado, no tempo destes poucos dias demorados, posso concordar que, sim, a solidão é azul, tal qual a tela de minha mãe, em cena de rua, com arvoredo basto como as de Niterói, mas com o solo cheio de neve. Ou azul ultramarino, como o da mulher que lê uma carta no célebre quadro de Vermeer. No quarto, até o fogo silenciaria. Levantei para me acostumar ao dia. Dessa vez, como de costume em todo o ano, o som irritante do despertador não precisou ser ativado. Despertei os sentimentos. Coloquei "Warrant", do Foster The People, pra tocar baixinho. Na sacada, acima do movimento da Gavião Peixoto, o reflexo do sol em minhas mãos. Eu parecia, não pálido, mas caucásico, límpido e jovem no Rio. Meu rosto, com os olhos ainda semicerrados, parecia mais belo, como que visto sob a névoa ensolarada do avião. Um rosto difícil de entender, mas acordado do habitual letargo dos longos meses. Em meio tempo, com um filme fotográfico do Pão de Açúcar na mão, recordei cenas da viagem de sonhos até ali. A viagem desse velho que se conta em um ano. Em Confins, franciscanos contrastando com rastafáris. Os primeiros dormindo nos cantos do saguão, os outros dormindo de olhos abertos. Ambos convergindo em sono, sotaque mineiro e leitores eletrônicos. Vi, ao vê-los, mariposas de variadas formas e cores. Levitei sobre a cidade, recobrei os sentidos e, outra vez, acordei. Esfreguei os olhos novamente, esperando outro vôo, vesti um agasalho verde-musgo e olhei em volta. "A vida muda para quem muda", pensei. Muito difícil, como os velhos hábitos impõem, não tender a recordar Jhon, à revelia da frase de banheiro: "patéticos mineiros". Decidi, em Viracopos, organizar minha alcova, meu pequeno mundo, minha mais completa zona de conforto e proteção. Lá as pessoas fumam bastante. Comumente sozinhas, sem questionar a abordagem de que cigarros são, de fato, companheiros, ainda que nem tão comezinhos quanto seu curto tempo. Lá vendem livros de esperança no hall de entrada. Foram horas de espera entre um cigarro e outro, lendo e vendo. Horas de profundo alívio, na expectativa de que os dias não passassem, ou que, pelo menos, andassem desejando parar. Só assim pude exercitar o olhar sobre encontros e desencontros das conexões no gigantesco, assombroso e algo que mal administrado aeródromo da vida que a gente tenta inventar. Foi num aeroporto que eu vi, estupefato, pela primeira vez, aquilo que eu imaginava estar distante da minha bucólica existência: uma muçulmana, vestindo um chador, acompanhada do esposo e filhinho de traços árabes bem definidos, estes vestidos ao estilo ocidental. Meu modo de observar o mundo é tão assim quanto o próprio horizonte que os olhos humanos podem alcançar, díspar e incomum. Terminada a chama do cigarro, joguei a bituca no pote de barro onde Tia Sônia costuma depositar seus próprios restos, amassei-a, machuquei-a, como, aliás, nós mesmos deveríamos fazer à morte, e voltei ao apartamento. Dobrei o cobertor azul cor da noite e guardei, junto ao travesseiro, no alto do guarda-fatos. Ajeitei a fronha do colchão, também azul. Coloquei o pinguim de pano num canto, presente de um passado que ainda não desejo remoto. Separei as peças de roupa já sujas e as empilhei no chão de tacos. Camisas estampadas, poucas pretas, outras brancas e listradas. Roupas de baixo e meias. O agasalho que só usei em Minas - porque, afinal, eu estava agora no Rio, sob o peso dos quarenta graus -, pendurei num cabide, sobre camisas de botão que não eram minhas. Bermudas e calças suspensas na estoqueira. Óculos escuros, colares, pulseiras, entre outros acessórios, além de livros, revistas, mp3 player, diário e frascos perfumados, todos em seus espaços, cedidos por Clarinha, acomodados e conciliados. Trouxe algumas fotografias e pequenas lembranças de papel em caixas coloridas, sintetizando o ano, como se eu não conseguisse esquecê-lo, tirando o sono das reminiscências. Sapatos e sandálias sob o canapé estofado de couro branco, amarelo, vermelho e azul. Fiquei de pé alguns instantes, olhando o armário de madeira de demolição, que Ana guarda pequenas esculturas de peitoril de janela. Na pequena escrivaninha adesivada, coloquei, silenciosamente, um incensório indígena ao lado do porta-canetas, do castiçal, do frade bebendo vinho, feito de gesso pintado, de um gnomo sentado num trono de madeira, de um alienígena de mármore folheando o livro da vida, um porta-retratos chinês com a imagem do irmão e sobrinho de Rachel, e revistas, marcando as páginas da leitura de mundo que ainda não fiz. Curioso...ao misturar as imagens daqueles objetos com meus próprios vestígios, parecia que eu estava em casa. Pus toda esta imaginação de acordo ao meu pensamento, harmonizei-me com a sensação de pertencimento, acendi um incenso de benjoim, ouvi o silêncio e desci para procurar um vinho. "It's a black fly in your Chardonnay", dizia a voz da canção de Alanis. Pus-me num assento de varanda da sanduicheria em frente ao prédio, numa daquelas briseadas ruas de Niterói, cruzei as pernas e fechei os olhos, completamente inebriado. Tudo em volta parecia dádiva de um universo inteirado e nunca antes visto ou sentido por mim. Todo o cosmos, toda terra habitável, todo gênero humano, e mesmo o que excede as forças da natureza, estava ali. Nesta hora quente deste dia dos fins do ano, eu estava ali sim, no Rio. Pois que ri, todo este tempo, dos meus confeitos farmacêuticos, das cartas, da duração das coisas descritas, da finitude delas e até de mim. E lá se foi um ano assim, rindo.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">MAJ</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-46102493066107115442012-11-20T15:21:00.004-08:002012-11-20T16:41:06.745-08:00PÍLULA DO BALCÃO FELINO - Número 55<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSB5PVsqfAN6sL7yrZ7fZP4Zhh3SsJE-9YdS_-bgQ4wi__Zpa0CKxyXryz_jS_WfGGkU-KWUka70AyoT9U963Ba1duJ7XnIXeRSr-9TgxvwQ_Yt3SLc7QQTk5aWqkR5nsiKLGXt_4qig8O/s1600/occ.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiSB5PVsqfAN6sL7yrZ7fZP4Zhh3SsJE-9YdS_-bgQ4wi__Zpa0CKxyXryz_jS_WfGGkU-KWUka70AyoT9U963Ba1duJ7XnIXeRSr-9TgxvwQ_Yt3SLc7QQTk5aWqkR5nsiKLGXt_4qig8O/s400/occ.jpg" width="311" /></a></div>
<br />
Reza a lenda que os gatos foram criados quando a Arca de Noé ficou infestada de ratos. Noé ordenou que os leões espirrassem. Do espirro dos leões se formou o gato. "Anjo da noite", alguém disse que sou. Observador de balcão, impassível, algo livre, minucioso no olhar apertado, nas pesadas olheiras e fixo numa direção. Explicação alguma isso requer. Ao dia, sou felis silvestris catus. Doméstico, mas não domesticado. À noite, quando desejo, sigo o dono. E abro um sorriso bobo, parecido com sussurro. Gatos também são assim, sabem a hora de rir ou chorar, ao fim do ronronar do amor imaginado. Quando não, vou ao lado oeste em madrugada de sábado, ao lado leste da mãe felídea feiticeira, blindada pelo balcão, protegida sob pelos ondulados. Vandet. Ex-mulher de pescador de ilusões, nunca quis manter gatos em casa. Mesmo pobres, mesmo livres. Nunca houve, para ela, desastres expostos ao mar. Para mim, ao final da noite, sempre houve o balcão do bar. Para ela, expressão facial impassível, coração inatingível. Entre gentes e cheiros, estou sempre ali, no Xamps-Élysées, ratos a caçar. Bufo, esbuno. Ou faço meu rumor contínuo quando contente fumo, descansando a cortina de fumaça sob olhar de um gato branco. Dio. Olhar de profundo verde castanho. Mio. Chamam-no de príncipe, felino do disco voador, daqueles que apanha o sol, a lua e o olhar binocular de Bah para si. Não me distingue, não sabe se sou outro mamífero, não olha por minha janela, não passeia nos mesmos telhados, não provou de minha ração, nem pisou meu chão. As lágrimas em meu pelo listrado não viu chorar. No entanto, noto-o tanto quanto o balcão do bar. Troco, com ele, novelos de lã, atos do madrugar. Por que não habita em minha fisiologia? Meu consolo é a persistência do fluxo das minhas sete vidas. Nelas, nunca há resposta fácil. Um dia, Dio, felino himalaio, não me reconhecerá. Porque gatos também sonham, esguicham e mudam de senhor. Gatos enxergam além do alcance, sentados num banco, com o olhar determinado, um propósito sólido. Nestas horas, à revelia do que observam, pardos, rajados de cinza ou persas, Mila, Vilson ou Kátia, mas sempre gatos. O ponto que fixo é o da alma, que depois descrevo num trechinho poético de guardanapo e nos devaneios do balcão. É ali que exponho meus agrados, meus sorrisos, meus sonhos e minha solidão. Aliás, sonhei com Jhon. O mesmo abraço, murmúrios desconexos e espaço de proteção. Bom presságio, então. No folclore americano, gato que sonha com gato é sinal de bom destino. Eu, felino, pouco caseiro, no mundo real e treteiro, conheci gatos urbanos. Alimentaram-me, acostumaram-me. Idalécio, e o riso do gato de Alice. Inácio, mais corpo que gorjeio. Israel, o gato da geladeira. Wendel, gato preto. Falcão, selvagem. Danilo, bombay fantasioso. Fillipe, de coiro. Alexandre, do bolso pelo avesso. Mazzo e Nara, iscas de peixe bem cozido, donos de Amy. E as gatas extraordinárias, Marlua e Jéssica. À luz da lua, são tantos gatos pela rua. Muitos de alma tão vazia. Será que isso me incluiria? Eu, faceiro. Predador natural de roedores, pássaros e lacertíleos. Por vezes desleal e simulado. Disseram-me, certa noite, no canto do balcão: "Você é um animal de estimação egoísta, solitário, medroso e bem disfarçado". Qual nada, sou é sagrado. No antigo Egito, mantinham-me em templos. E previam o futuro dos meus movimentos. Eis meu furo em sua veia. Na ceia noturna da procissão, por entre sacerdotes salesianos, freiras de túnica cinza, fiéis e cânticos, um alvo dinictis me examinou com atenção. Parecia um cândido marinheiro a predizer sua viagem na observação. Ébrio, tive a impressão de ver Aline, vestida de egípcia Bastet ou Freya, gata nórdica, fértil e sedutora, numa carruagem puxada por dois bengais. Eu, angorá sob a neblina, despeço-me, sumindo no sereno. Quando fecha o bar, vou indo, venerado, sagrado. Pela manhã, espreguiço, passo a língua sobre meu corpo, bebo meu próprio leite. Tal qual assegura a mitologia, saio à rua feito animal de companhia. Vejo um pequeno Miacis sobre os ombros do pai. Fez-me sentir falta do meu. Fui à sala de Chaeles, beijei o gato da família, pedi um lugar à mesa e o paguei com sal. Se olham ao lado, lá estou eu de volta ao balcão, feito garboso siamês, contra o âmbar do portão. Eu e meu estranho coração. Há tempos não sei o que é um bom prato. No fundo, no fundo, eu sou um negro gato.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="background-color: red;"><b>Marco Antonio Jardim</b></span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-54165140446873252992012-10-16T16:35:00.001-07:002012-10-16T16:54:57.969-07:00PÍLULA CINZA - Número 54<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHBTEvqRGJssqCCej105Ke0-6HYa6J7Uodt-zv7UlOMjrqP9Rqbn4i3y3tL4ygiMp292YYpsX_yKjTfMk1nGSCM-AJRUGa8R3WsoQTjSwmkxjP6b_SvSl9C38ya9-JQC4_4yFcP_yKrw6k/s1600/sao-paulo-21-rec.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="285" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHBTEvqRGJssqCCej105Ke0-6HYa6J7Uodt-zv7UlOMjrqP9Rqbn4i3y3tL4ygiMp292YYpsX_yKjTfMk1nGSCM-AJRUGa8R3WsoQTjSwmkxjP6b_SvSl9C38ya9-JQC4_4yFcP_yKrw6k/s400/sao-paulo-21-rec.jpeg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">SP</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Oscilações positivas no universo. Pela primeira vez, estou em meio e acima das nuvens. Observo e anoto, da janela do avião, para loucos que são felizes. Que escutem os desordenados, amotinados, criadores de caso. Os de corpo leve, harmônico e sensível. Corpos redondos em espaços quadrados. Mas, para mim, só leveza nesse espaço aéreo, e torpor na aterrissagem dos pensamentos. Nuvens, para mim. Agora mesmo, escrevo, etéreo, sobre elas. Montanhas de neve flutuantes que nunca antes vi. Mar de espumas em reflexo ao céu. Matizes de branco num convite ao mergulho das ideias todas. Um mar tão sem tempo ordenado que parece estacionado. Tão imenso e alvo que meus olhos fecham e marejam sob azul. Aqui estou eu no céu. Neste tempo, perdoem-me os céticos, a ordem é Deus. Não preciso findar para ver Deus. Confesso que pareço bobo, como todas as crianças que ainda sabem ser. Ainda que definam tempo determinado, melhor é o som e o silêncio que passam por mim. Deixo, no ar rarefeito, minha caligrafia em rimas simples e versos soltos. Como um haikai de beleza contida que, do céu, olha todo o mundo, mas, no fundo, está só. Soltos estão meus braços, pernas, tronco e cabeça. Respiro. Suspiro aliviado e afundo meu corpo ao teto do chão. Fecho os olhos para ver a imensidão das coisas límpidas de um jeito diferente. E penso distinto, porque, agora, sou o passageiro da galáxia. E, como tal, não sou tão fã de regras. Sou fã do amor líquido, mensageiro. Em meio ao festim das nuvens, amo por inteiro. Nessa atmosfera menos espessa, as pessoas e memórias me escapam às mãos. As devolvo ao tempo, troco-as por mercadorias de afeto, mas só porque estou suspenso. Quando pouso, entretanto, ainda amo. Escuto "got to be there, got to be there in the morning" no aeroporto e meu sonho volta a bater na antiga porta de Delfos, sob placa de seiva bruta. Furta-me o ar, agora denso, e a cor é cinza. "Hello, world", ainda ouço. Sim, estou em São Paulo. Vista do alto é quase chumbo. "Mergulhe no oceano de si mesmo em São Paulo", li no devaneio bêbado de Guarulhos à Marginal Pinheiros. O verde das árvores tem tons prateados. Apenas algumas flores de figueiras, chichás e copaíbas quebram a monotonia do concreto. Abro os olhos, feito asas de borboleta, e vejo a fauna paulista a louvar, destoar e imitar o meu próprio olhar. Meu gesto de mãos e boca é aspirina, o indefectível cigarro e o exercício do senso de observação. Black powers com headphones, peruas estilizadas, workaholics de terno slim, piriguetes urbanas, street artists, ciclistas, taxistas judeus, um batalhão de orientais, usuários de crack, gays de enormes óculos escuros, hare krishnas, línguas estrangeiras, hordas de expressões distantes, corriqueiras, paulistas. Todos entre branco e preto, sob chuva interminável. Antes da tempestade, uma lacuna de tempo. Mente quieta, corpo aquecido, sou, fora de mim, pertencente a esta tribo tártara, povo nômade. Estou longe de Atitlán, o local onde o arco-íris ganha tardes gris. Alô Paulista, eis meu amores. Porque são eles que mudam as cores vistas de mim no miolo da cidade que não tem fim. Gestos magnéticos, simbólicos, até criam, inspiram e curam. Minhas mãos sobrepostas sobre eles. Porque são eles que impelem minha força à frente até o coração do Ibirapuera. Uma cidade dentro de um parque e meu coração recipiente, pleno e profundo, em estado de yoga, em oferenda de energia, feito arranha-céu de concreto e vidro na capitania. Tão alto que minha aura pode até andar. Numa das mãos, um escudo antitristeza. Noutra, uma tela em branco, uma obra de arte do Masp, uma energia criativa, um mantra da paz. Eu, inteiramente templo de silêncio, ouvindo uma canção que nunca antes foi composta. Om Shanti Om na Avenida São João. Meus dedos logo tocando os raros lapsos de céu azul em resposta. Ali entre as antigas igrejas, estações, pontes, túneis escuros, grafites, pop art, velhos sobrados e a Pinacoteca do Estado. Há cheiro de poesia e comida tailandesa no ar do labirinto místico. Apesar do pesar, meu olhar vigia São Paulo. Do nono andar do Quality ou do subterrâneo do Metrô. Da esquina da Augusta à Consolação. Do Eldorado da Faria Lima ao posto da solidão. Contemplando a beleza tardia de uma das maiores cidades do mundo, sei que o sol, um dia, há de morrer. Existe amor em SP? Na lápide da efeméride da vida, jaz o sol. Em volta da opressiva paisagem sem fim é até possível ver luzes e calor, mas estou em São Paulo. Vejo cinquenta tons de cinza, mas não sou. E agora jaz o sol e o som. Jaz a soberba malha fortaleza, a quem rodeia pela parte dos Jardins e do Ocidente. Fico breves instantes em silêncio contente. O olhar marejado no físico fatigado pela poluição. Sim, São Paulo é um buquê que anseia respiração. Profunda e silenciosa. A cidade em feriado nacional. Este é meu pranayama, minha flor de lótus. Celebrando, no rio morto terroso, ladeado de heliportos, Nossa Senhora da Conceição. É a imposição das cinzas no tom da dor na margem das minhas costas. Tom maior azul celeste com pontos luminosos, subindo o dorso feito estranha saudade urbana. E do meu caminhar flutuante sobre a esteira do metrô, vendo a luz na fresta das folhas passar, o ar passa. No vasto formigueiro, cada movimento meu cria asas secas de cigarras na raiz. Cria razão e emoção. Amplia o ângulo de minha visão. Se não sou, de estilo ou referência, minha ciência do espírito está sendo sim. Non ducor, duco. Eis meu espírito compreendendo, aceitando, transformando. Oh, São Paulo, pureza do zen, sou seu humilde criado. Eu, sikh, curvo-me perante ti. E, por ser amor, toma e finda. São Paulo em mim é cinza.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="background-color: red;"><b>Marco Antonio Jardim</b></span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-55464574500349348042012-09-20T17:28:00.002-07:002012-10-16T16:36:15.746-07:00ALULÍP OD OSSEVA - Número 53<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbTdDDpy6ezOu9ZX6kn7Ph0FGBPUQkyCz2vgETg47HXK4OkVgoz4BH5DigMgux3prgHhXKdF8phM_1JEIayL93zCa6uj-cawBkOEGo6Ka8G96bvkbkEYacu7wucJjM14TMeF77p2Lbgapq/s1600/homem+lendo+o+jornal++1999+mari+lopes.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="315" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbTdDDpy6ezOu9ZX6kn7Ph0FGBPUQkyCz2vgETg47HXK4OkVgoz4BH5DigMgux3prgHhXKdF8phM_1JEIayL93zCa6uj-cawBkOEGo6Ka8G96bvkbkEYacu7wucJjM14TMeF77p2Lbgapq/s400/homem+lendo+o+jornal++1999+mari+lopes.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Tela de Mari Lopes</td></tr>
</tbody></table>
<br />
"Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e, lançando-se de joelhos a seus pés, disse: Senhor, tem piedade do meu filho que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na água". Trecho das Escrituras, do colo de Sued, que cobre minha mão como luva, como adorno para cada dedo e razão daquele que Oicélc lançou, em riste, a mim: "Você tem algo de autodestrutivo". Qual o sentido do insulto? Eu que passeio pelo mar da Galileia, sobre o rio Jordão, no deserto da Judeia ou acendo âmbar no vasto do meu coração, como permitirei, em poucas palavras escritas, que ele destrua uma inteira argumentação? O que tenho são olheiras, um corte correto de cabelo, nenhuma barba e gratidão, que nada pode contra ambição desmesurada. Daquelas de animal carnívoro, feroz, superior a qualquer homem envelhecido. Eu, por minha vez caetaneando, sou o que sou e não bronzeio pílulas. Quando eu, de fato, envelhecer, vou ler o jornal no banco da praça, vou usar terno laranja e chapéu de abas longas, que hoje não me cai bem. Quando eu envelhecer, tudo poderei fazer. Além de mim mesmo, e do resgate do meu flow, do meu fluxo, serei fêmea, sacerdotisa, monja, mãe ou menina, "minha e não de quem quiser", como afirmou cantando Aissác. Na verdade, nem importa tanto a madrugada que sou. Ainda hei de escrever cartas de amor, mesmo que tenha de inventar um. E que eu dê nome a ele. Senegóid. Que gosta de chuva, de milhares de estrelas caindo do chão do céu. E o que preciso agora? Dormir, para sonhar com alguma fé espelhada na faca afiada. Confiar para desconstruir, deslocar montanhas. E regular o tempo desta cidade de frio cortante e desumano calor. Eis que Ozne nasceu neste mundo de belezas e enfrentamentos, enquanto Ilekim passeava de bicicleta no centro da cidade, enquanto meu corpo não se adaptava nem mais a lenços de papel. Quiçá a resistências e má vontade, rotinas, egoísmo e cegueiras de toda ordem. O que há, de repente, é nascer do sol batendo da janela pro meu rosto. Não é prenúncio de verão, mas é o sol. É um sonho de origem. Nele, há sempre um céu oriental, de azul quase noturno, limpo. Eu levito, as vezes com auxílio de asas, as vezes segurando balões a gás. Estou sempre sem sandálias. Encontro seres estranhos, de variados matizes. Deslizo por tubos diáfanos. Vejo pétalas ou estrelas caindo devagar. Acordo completo, sem princípio e sem fim. Muito mais sinto o gosto de viver. De respirar pela alma, como se houvesse só isso para notar. Isso é que é matéria esculpida em fé robusta, nas pequenas ou grandes coisas, na saúde ou doença, alegria ou tristeza, pobreza ou riqueza, até a morte e depois. Prometo, então, respeitar-me, ser fiel a mim e a Sued, que soprou no mundo que tudo se move, "inclusive o centro". Ainda que iguais a mim, como maldisse Amles, existam cinquenta mil. Só sei que eu mesmo não maldirei do meu destino. Engana-se quem pensa que tive dias assentados, silenciosos ou convencionais. Fizeram questão de me presentear com o tempo. A camiseta, antes panfletária, agora tem listras e botão. Em lugar dos cigarros franceses, chocolates meio amargos. Antes eram os braceletes fluor, agora é kit de barbear. Não ganho mais vodka e, sim, prosecco argentino. Se antes faziam festas-surpresa, agora me convidam para um chá. O avesso do avesso ao que deve ser. Continua a prevalecer a fé aos sete ventos e à saudade de Aleafar, incrédula às inversões do mundo, dos nomes, das pessoas de alma bem pequena, convicção vacilante, incerteza e hesitação. Saudade de Ledraj e seu olhar. Assim também é Ikrup. Asséptico, dorme em berço de falso ouro, numa cela artificial, rodeado de fotografias distorcidas e que, entre um cigarro e outro, cospe palavras impensadas. De outro extremo, Id, filho de escravos, nascido depois da lei de emancipação, ingênuo e perplexo, perdeu o rumo das próprias histórias e se encerrou como o escritor de um livro só. E eu, enfim, Okram, um marco de fé raciocinada e calma, sem tantas palmas a esperar. Minha única curiosidade é ver onde o sol se esconde. Caminho até o espelho mais próximo e inverto as alcunhas no reflexo. Lavo o rosto, passo as mãos, tiro as roupas usadas, faço um batismo de água e perco o fim de tarde sozinho, no entreposto da solidão. Eis o avesso do avesso ao que deve ser, senão. Sem nome ou sobrenome e que, pelo menos, mente a ordem do que sente sem sentir. Assim, do jeito exato e contrário que o seu nome escrevi.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="background-color: red;"><b>Marco Antonio Jardim</b></span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-9070285647517671002012-08-30T18:03:00.001-07:002012-09-12T21:13:00.873-07:00A PÍLULA DE MRS. DALLOWAY - Número 52<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6vY5DYV7Dlqs1azflKj2hvCQfbtXp6GkhjwElopksNFT0fE6EmqXfXXZPD2Oz332OIONIcrjORDLiQAkVdouvPLv1hcRWReTD4SMiEEwpsUeBq9PMYtPUb8rr2AoKXFfp1w_R6Ou2FSlh/s1600/Julien+Pacaud+2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="292" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6vY5DYV7Dlqs1azflKj2hvCQfbtXp6GkhjwElopksNFT0fE6EmqXfXXZPD2Oz332OIONIcrjORDLiQAkVdouvPLv1hcRWReTD4SMiEEwpsUeBq9PMYtPUb8rr2AoKXFfp1w_R6Ou2FSlh/s400/Julien+Pacaud+2.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Ilustração de Julien Pacaud</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Tenho já a primeira frase, a primeira expressão: "Mrs. Dalloway disse, ela mesma, que iria comprar as flores". Talvez esteja estalando língua distinta da minha, mas parece refletir certa proximidade com o mundo. Escutar outras vozes, em outros idiomas, outros gemidos mais fundos. Ter também outros casos. Em todo caso, aconteça o que acontecer, o quanto antes ela quer ser. Neste conjunto de espaços, corpos e seres habitados, que não é mais o mesmo, que há pouco tempo mudou, quer existir. Ter as imperfeições apontadas por si mesma, não por olhos alheios. Não quer união legítima, constituída e simplificada por um elo de metal dourado. Quer amor em excesso. Não quer nenhum destino deslumbrante para celebrações privadas. Este é o sonho de Marcela, não dela. Nada, a ela, é pouco espaço. Ainda que passe o passo de um para outro, ela quer a universalidade, a totalidade de coisas e pessoas. "Então, num fim de tarde qualquer, poderíamos tomar café", convidou Lara, uma amiga. Ela não quer. Sua vontade é fechar alçapão, cortar luz e ar e anular a irritante voz da velha vizinha e seu desventurado gato. Que se afastem os que não partilham dessa filosofia. Vazia é a que não se sabe o rosto, nem cor de pele, mas se agasta, deplorável, com o berro de suas palavras. Ela quer é que se complete, que se transborde sua voz escrita. No fundo quer é momento, espaço-tempo, pessoas. Prefere a sineta do moço dos picolés. "Coco, goiaba e creme! Tangerina, tapioca e doce de leite!", grita sempre, entre pilhérias e momices. A doce festeira Diane chegou a descrevê-la, certa vez, turvando a visão: "Você encanta". Ledo engano. A verdade é que ela se dobra sobre si mesma, servindo tão-somente de imitação da vida. Como mariposas e libélulas que por agora vêm surgidas. Num instante é nuvem. Noutro é praga e partida. Ela endossa que vai encher os bolsos de pedra, mergulhar o leito de um rio e morrer aos 40. Não cabe mais em si. Deixa-se romper. Cai em si só chuva fina no feitio de confissão. Ela? Solidão. Poesia que mapeia chão e mundo, alívio, triunfo, revolução. Alimenta a alma com alpiste, num jeito explosivo e esquivo de quem, no fundo, nada quer. Ela é a vida inteira em um único dia. Vai a festas para abafar o silêncio, escreve a totalidade das coisas, vai de mulheres e homens, pega pelas mãos crianças e velhos, doendo solidão insistente. "Quem dera pudesse a dor que entristece fazer compreender os fracos de alma, sem paz e sem calma", cantou-lhe Ângela. Sua irmã mais velha oferece ameixas frescas e sabonete de cacau no disfarce de refrescar sua alma. Sua mãe prepara o almoço de domingo. Seu sobrinho nota que ela escuta canções de outrora, mostra-lhe um pássaro morto e pergunta: "O que acontece depois que se morre?". "Retornamos ao lugar de onde viemos", responde ela, alheia. Alguns homens insistem no ato ou efeito de parecerem próximos. Bruno, de longe, vem vê-la. Flávio persevera uma visita íntima. Seu primo Tarlyson a tem por incomum. Um homenzinho giboso a convida para o teatro. Um outro, quase em torcicolo, a devora com os olhos. Um terceiro, anônimo, num gestual lascivo, a aguarda numa esquina escura. Nem mesmo os mais moços e nobres lhe parecem apetecíveis em formosura, como aquele enfermeiro sisudo de todas as noites na estação. "Sua vida é tão banal", aparenta ele, julgando-a na expressão. Até de quem ela almeja apregoar o nome nos classificados ou nos locais públicos, não se faz justo, antes comprometedor. Ela só lê, dos pequenos aos maiores gestos, interpretando os ingênuos pensamentos dos homens. E, observe, seu encantamento de mundo só se faz maior assim. Todos os seus sentidos ali na coluna vertebral meio arqueada, anunciados e falidos, onde se lê, sob ironia mordaz, "Visionary. A tributy to creativity". Ela é como o sol que cobra caminhada rápida depois da escuridão. O mar brando, de maré baixa, que exige saudade do sertão. É, outra vez, chuva fina que dança, reza, moe e lamenta antes de cair. É estrela que só se alcança quando sonham com ela. É pôr-do-sol só para quem sabe ver. É vento para quem vira sua esquina. Para Núbia é cheiro de mato, para ela é tão pequenina que - se cresce - se esquece. É ar fresco arrepiado em corpo molhado. Essência, porque pouco se pensa. Desses sentidos, Núbia, nada ela é porque não é de graça. É simples, comum, mas escrava da culpa moral e do tempo porque, ainda por cima, tem de enfrentar as horas prestando contas pelo ponteiro a "um mundo atento a não perdoar". Ela se despede, então, num exaustivo fluxo de consciência, das pessoas que mais amara na vida. Escreve, antes, duas cartas. Na primeira, conta que sente não conseguir passar por novos tempos difíceis. E que não quer revivê-los. Na outra, nem sequer consegue escrever ou ler. Livre do peso das obrigações e num desfrute pessoal de além carne, já tenho, dedicada a ela, a última frase, a última expressão: Mrs. Dalloway sou eu.<br />
<span style="background-color: red;"><br /></span>
<br />
<div style="text-align: right;">
<span style="background-color: red;"><b>Marco Antonio J. Melo</b></span></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-18429087823224489542012-08-15T13:43:00.003-07:002012-08-21T13:49:08.106-07:00PÍLULA PELO RECOMEÇO - Número 51<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_GRneCbF1B7ZooMXzUs4k-M7NTXgPd8EkboYmrdQnTnXjU7FpmxiiXaIIr6WmZ2ZcHS1mPS-vgpBR2pDCj5yY4jF-Pl43AZKp24nVwawNJxjZ64Z-YVCtKFJT0tZEZqGvpzKGLJNM2T7Y/s1600/VanGogh_Bedroom_Arles1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="312" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_GRneCbF1B7ZooMXzUs4k-M7NTXgPd8EkboYmrdQnTnXjU7FpmxiiXaIIr6WmZ2ZcHS1mPS-vgpBR2pDCj5yY4jF-Pl43AZKp24nVwawNJxjZ64Z-YVCtKFJT0tZEZqGvpzKGLJNM2T7Y/s400/VanGogh_Bedroom_Arles1.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Tela impressionista de Van Gogh</td></tr>
</tbody></table>
No toque da alvorada, depois da perda das horas, acordei de sonho luminoso. Um reencontro com meu irmão Breno, na Chapada. Avivei o texto de sua voz em pensamento, enquanto a luz invadia o quarto. Olhei-me no espelho e vi constelação em minhas costas. Muito próxima do Polo Sul Celeste. Despertei e, sob neblina, eu não estava só. Mulheres campesinas me cercavam, segurando balaios de palha, derramando pétalas em mim. Senti o cheiro, afundando no chão. Cheiro também de pão. Eu vestia o traje menos amarrotado. Vestia minha vida simples. Ainda sonolento, caminhei sob o eco da voz de uma ninfa grega consumida por amor a Narciso. De tudo, ele lhe deixou a voz. "Confesso que eu gostaria que você não fosse o que é", disse pelo fim. Passaram por mim os últimos boêmios e os primeiros operários. Tirei da bolsa o maço de cigarros que não trago mais, joguei ao chão, juntamente com a resposta de não lembro quem, de cor marrom. "Meus olhos marejaram, preciso digerir o que li", divagou o homem sem rosto pelo fim. Tocava James Newton Howard, temas de filmes. Passava o tempo por meu rosto, meus jardins, minha cidade de interior. Refletia meu espírito margeado pela sombra da cerca do Poço Escuro. O clima estava impreciso, entre o frio e o ameno. Sons de folhas secas de milho ao vento. Segui suave, vivo após alguma morte, sem temer que me enxergassem. Naquela rua, no alto de um dos novos prédios, tem uma imensa estátua de anjo. Normalmente brilha ao sol. Sentei num banco da Virgílio Ferraz, por onde, submerso, passa o Rio Verruga, paisagem sem definição. Algum tempo eu tinha, então abri o diário para rever as impressões de Odilon. "Tenho saudade da Cíntia. Às vezes a vejo e a acho linda. Parece pessoa que não vou mais ver", lembrou pelo fim. Ri sozinho, onde meus pés fincaram alma. É que recordei a visita das minhas tias. Sempre carrego a sensação de que será a última vez. É que evoquei o abraço de Kenio. Onde me perco e me acho. Onde para o tempo no mar do coração. Onde me volto às origens, fora de quartos e salas, refugiado em tempo real. É a construção social da realidade, diriam Peter e Thommas pelo fim. Ou falariam de amor. E por discorrer em candura, Adla me procurou. Pomos à vista nosso perdão. A neblina ainda deixava o horizonte um tanto indefinido. Levantei do banco e segui a manhã do meu novo caminho. Passei em frente à Câmara. Gosto de observar aquele velho casarão restaurado, amarelo, a fachada secular, os passos de assombração. Desci pela esquina do hotel desativado, no beco do Candelabro. "Qual de vocês não acha belo quando ele desce, quando deixa tudo translúcido?", ouvi alguém sussurrar pelo fim da lojinha de artesanato. Deixei-me guiar pela avenida, entre estabelecimentos de roupa e de frutos do mar, por cima de folhas caídas, até achar outra praça. Numa das mãos, eu carregava um livro de Isabel Allende, e noutra, uma bebida gelada. Percorrer o caminho assim é como um convescote de manhã cedo. É a tradução de meu universo em algumas boas palavras, a essência do meu entendimento de mundo. Viver manhã assim tem certo sabor. De beijo leve, como o que Duh desejou dar. "I Think, I Love", eu escutava, pelo fim. Pensei que, talvez, Guilherme pudesse estar na sacada da janela. E estava. Semblante grave, analista. Horas mais tarde o vi tão absorto, dormindo no sofá de Ana. Quando acordou eu queria ter dito "Olá, estranho". Pelo fim da voz calada, eu não disse. O céu, já a esta hora, não se achava nublado. Há tempos que não ficava assim. Subi as escadas. Ana que me recebeu. Numa parede da sala, uma réplica impressionista. A cor da luz ali anunciava o passar do meio dia. Raquel me ofereceu uma taça de Cabernet Sauvignon rosado. Na copa, falava-se do Rio. Sérgio lembrou o mármore de Carrara, as construções históricas, o bonde, o burburinho do Santa Teresa, o Montmartre carioca. Renata, de Minas, ensaiou um sotaque peculiar. "Vou te escrever uma lista para você sentir", disse Raquel, sorrindo pelo fim do corredor, apertando os olhos claros. Relembrei o quanto é delicado viver, de uma forma ou de outra, em cada esquina, em cada rua estreita. Luc anunciou o pôr-do-sol. Fomos todos à sacada. Tinha um cheiro de magnólia no ar. Cheiro de nova estação. Já era quase noite, quase frio. Tempos depois, num quarto de hotel, ouvíamos um fonograma e Di confiava singelas histórias. Leandro, o de olhos cor de mel, abraçou-me, deu um beijo em meu rosto e se despediu. "Cuide-se", falou, pelo fim, como um clarão. Voltei à minha casa, ao meu quarto, ao meu tempo de então. No toque do ocaso, entreguei-me de novo ao sono. "Devagar a gente se acostuma a tudo", quase ouvi de Camus, pelo fim da impressão do dia. Afinal, de onde mais vem inspiração?<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">Marco Antonio Jardim</b></div>
Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-10683214673683318642012-07-15T18:16:00.003-07:002012-07-15T18:17:05.818-07:00PÍLULA DE FIM DE CENA - Número 50<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiLykowgsyD79FlXogD4_8oWUvDIyOVCXgcR-9LlVI_xdMscdbNM2QSTN06g7eRH5PfjjR890pWDbImJk0EyABH6VhsZQiuq_GPeOmiplEJJhpIDY5fmtnhHBcyJ1W0FhhWRbVJwL0KDTFi/s1600/Bruce+Holwerda1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiLykowgsyD79FlXogD4_8oWUvDIyOVCXgcR-9LlVI_xdMscdbNM2QSTN06g7eRH5PfjjR890pWDbImJk0EyABH6VhsZQiuq_GPeOmiplEJJhpIDY5fmtnhHBcyJ1W0FhhWRbVJwL0KDTFi/s640/Bruce+Holwerda1.jpg" width="439" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Pintura de Bruce Holwerda</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Perdi uma poesia escrita num papel pautado. Desmarquei uma reunião de decoração e arte. Deixei de ser no mundo a parte da mudança que eu quis ver do mundo. Não fui ao velório de Miguel. O bom e jovem homem Miguel. Perdi uma cena. E a orquídea abrindo em flor. Não sei mais se a vida segue o curso da criação eterna à morte de todas as afeições, da vida interior às relações de amor. Não sei. Não fui ao sacramento de Bianca e Danilo. Não por serem efebos, mas por eu mesmo ainda não ter acreditado no estado inspirado de paixão permanente. Descumpri o prazo do projeto de alto valor de densidade. O projeto da verdade. Trocando em miúdos, ainda uso os mesmos sapatos. Vivo imprimindo listas de pautas atrasadas. O que será que será, então? Deve ser meu cansado querer um jeito novo de reinvenção. Daí escrevi um texto sobre, sei lá, aquecimento global (e o que se poderia instituir como mudança individual). Mas todo mundo já escreveu todas as letras. Tenho, pois, travado essa luta cotidiana com palavras e inspiração. Luta vã, diria Drummond. Recolho-me ao anonimato. Até os suecos do jj o fazem! E os carecas ingleses também. E Ana Luisa quando na província argentina. De toda forma, eles são mais humanistas e sonhadores do que eu. As minhas ideias têm nascido mortas. E por mais que eu anseie por novas verdades, as eternas já estão aí. O celular não para de tocar. Deixei de atender. Deixei de marcar, orientar e assessorar entrevistas. Calei os verbos revisados. Só sento quieto numa cadeira se for para minúcias. Para coisas miúdas. Ainda que, na química do tempo e da alma, nada é tão infalível assim. Nem os diamantes. Chamem de autoironia, falsa modéstia ou o nome que quiserem dar. "A ordem das árvores não altera os passarinhos", cantou Tulipa. Não entendo mais a parte técnica das inscrições. Minha figura tardia está esculpida tão-somente no panteão dos insones febris. Meu epitáfio: breve elogio a um morto-vivo. Visto o costume, ponho o chapéu e caminho sob o guarda-chuva escuro feito fotografia esmaecida. Não fui à exposição das histórias que contam histórias das várzeas. Está tudo apagado em mim, tudo ardendo, e há suor nas têmporas. Se há crise, perco a cor, sinto o ar gélido passando pela espinha, soldo o sangue e as perturbações. Tudo parece assim...uniforme. Até a luz do sol. E as impressões de Túlio ao fim do texto. Fim de cena. "Dizem", foi como ele designou meu egoísmo cotidiano. Um expiro, eis o que sou. Claro que acredito que há amor em algum lugar, mas nada que valha uma manchete, um vestido de noiva. O tráfego da peça que preciso julgar é o mesmo da faculdade de pensar. E até deste direito pouco sei exercer. Na adversidade, até que me ponho à prova, mas desfaço as ligações. Enquanto isso, na justiça da sala, a celebridade bebe um Pinot Grigio. E eu fico a contar o tempo em lapsos de memória. Delongas, adiamentos, prazos estourados. Primeiro turno, segundo turno, descuidos, faltas, erros. Já se faz noite e a enfadonha agenda da vida não se encerrou. Está sentindo? É o cheiro da manteiga de karité da África nos meus pés e aqueles mesmos sapatos. Salivei a boca seca, escutei Joni Mitchell, mas, quando olhei o espaço sideral até onde minhas vistas conseguiram, lembrei outra vez da minha pequenez. Lá vem o vice-prefeito, o secretário global, a especialista em consciência, o marketing da Coca-Cola. Tem sempre gente importante querendo ir e vir. Esquivei-me deles pelas sombras do corredor. Meu nome está em digressão no expediente do folder. Divaguei, errante, e vou desmontar as mesas. É o papel que me cabe. Oito parafusos e a falta de um instante. Olhe que nem apontei o dedo para as alterações da arte. Picasso no Met, meço o espaço. Outro dos meus pobres afazeres. Quatro metros, quase passos. Descartei o mapa porque não há tempo hábil. O que há é erupção no Eyjafjallajokull, aumento das marés do mar Adriático e o fim de Veneza. A inexorável transformação explorando as angústias do tempo de então. Parece até poética, se não fosse ingênua essa política de vida, essa teologia da modernização. Cumprimentei jornalistas em horário de almoço. Lobby. Mato formigas enquanto eles enviam e-mails. Convenci o fotógrafo na escolha do ângulo errado. O agudo, o côncavo e o conjugado. Reuni a equipe no meio-fio, evitando amenidades. Arestas, cantos, esquinas, cidades. A rede está entrando em pane. Descartei os colunistas, não atendi a paisagista, não contei fábulas. Não fiz amém a ninguém. Não há condescendência nem solidariedade. Nada de melhor na vida é de graça. O tempo, meu bem, só passa. Desci as escadas carregando caixas, encaixotando Helenas, degrau por degrau, manual por manual. Estou queimando em mim, fazendo tudo de novo todo dia, do jeito moroso de sempre. Até chorei num canto, cansado, mas sou como Kafka, literatura fugidia. Um feito fake por dia, desviado do destino. Agora mesmo sou todo dor, um fingidor. E tenho febre. Do mar ou do amor? A gente é feito mesmo pra acabar.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red; color: black;">Marco Antonio Jardim</b></div>Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-3371935464220837272012-06-29T16:56:00.002-07:002012-07-10T16:03:00.328-07:00PÍLULA A CAIO F. - Número 49<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5q3XJogUXDFVJ7F1TEOQSZ-bTqdj9SPV3dvnlmpwXwfBgYMg8czbqIuNjAmTFSAk2KtPNN2h5hjZs2dpG8zU_ioTMtE-rj5lnUV0adpDghWZyFdL_TIGiSssanj1bd1K2Y5BIVybz5g0U/s1600/Antony-Gormley-Sculptures-13.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi5q3XJogUXDFVJ7F1TEOQSZ-bTqdj9SPV3dvnlmpwXwfBgYMg8czbqIuNjAmTFSAk2KtPNN2h5hjZs2dpG8zU_ioTMtE-rj5lnUV0adpDghWZyFdL_TIGiSssanj1bd1K2Y5BIVybz5g0U/s1600/Antony-Gormley-Sculptures-13.jpg" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Escultura de Antony Gormley</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Tomara que a cidade possa ver a cara alegre, a cor do som distinta no gosto do prazer. Parecia prévia de festejo, Caio. Eram, no entanto, lábios secos, seca no coração de outros, racionamento no regime de Assad. Dizem que é preciso que se suporte lagartas antes de conhecer borboletas. É como uma solenidade colorida, efeito da cachaça jararaca, cheia do chocalho da ébria vida. Depois de alguns copos, outras mulheres e um mesmo desejo fêmeo da vulva ao útero, as melhores histórias surgem aqui e ali, como uma infinidade de possibilidades, como nas esculturas de Antony Gormley. Vi culminância na arte ruge, Caio. Auge na órbita do corpo do garoto de programa. Alterego. Mergulho cultural e estético, afeto sexual. Muito depois da vigília destes satélites artificiais, eu vi um arco-irís. Celeste, de alianças, sem chuva, feito bandeira num circuito da cara, coragem e altivez. Um espectro contínuo que brilhou vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta e anil. Uma parada que não viu desordem, só se viu feliz, com gentes, gêneros, orientações, idades, verdades. Gente alegre, Caio. E todo o sentido da continuidade. Da mulher que cortou um broto alheio para o próprio jardim ao tenente valente que se vestiu com o short carmim. Das poc poc às barbies do Chuí. Das caminhoneiras às femininas. Do (fe)menino bem mais porto alegre que seguro. Dos curiosos aos que usavam brincos rosa-choque escuro. Das duas faces de Eva e "um certo sorriso de quem nada quer", você riu. Do senhorinho esguio subindo a ladeira com seu paletó largo e seu tempo sem pressa ao garoto de sandálias gastas empurrando a galinhota de verduras. O que vi, Caio, foi histórico escapismo, encantamento e ilusão. Vi uma prece ao infinito. Das estradas olhei aos lados por costume e por gosto. As estradas do entreposto do passado, sob sol e vento. Da montação à celebração, foi o que vi. Noutro tempo, via meu pai. Guardava filmes na geladeira. Eu, por vez, colecionava os carretéis. No teto da cozinha sem forro, um imenso montículo de cupim que descia das telhas até onde eu pudesse alcançar com as mãos. Nas tardes de sábado, como esta de agora, cheias de sol, meu pai levava melancia e jaca ao quintal para reunir a família. A nossa rua não tinha tanto comércio e a casa era caiada de amarelo, gasta pelo tempo. Ficava vazia também aos domingos, sem veneração. Ah, Caio, eram estes os velhos e bons sonhos. Nem todos se concretizaram, mas foi bom tê-los. O tempo é este processo profundo de adaptação, descoberta e sobrevivência, sem miopias, sem vassalagens. Morrer, hoje, não basta. Morrer é que é o mal-estar do século. Talvez por isso não tenha me despedido de Elvira. Sei que vou reencontrar sua discrição. Não é conformismo nem princípio de incertezas. Não é nem sequer o pensar em me pensar demais, Caio. É só o imaginar do sentido e do fazer da vida. Pois quando me vi embaixo daquele gigantesco tecido multicor, daquele estandarte simbólico, fiquei com vontade de gritar o que sou ou de chorar em despedida, como fez Clarinha. Só sorri e pensei no quanto as coisas da vida parecem fulgazes, fantásticas e inatingíveis. Eu sou mesmo um clichê ambulante, Caio. Um heure bleu, um azul intenso da França ou, por Alain Bergala, sou o aprendizado do amor incondicional. Em outras vezes sou só impressão. Vez em quando toco pandeiro como Rayza. Toco violão como Massumi, Duh ou João. Fotografo como Purki. Ou desenho rabiscos iguais aos de Xande. Ou me faço jovem ator, como Dani. Geralmente, Caio, escrevo. Cartas. Ou escrevo para velhos, como gritou Sônia nos mesmos sonhos adiados. "Quando escrevo pra você, é como se escrevesse pra mim mesmo", você costuma dizer. Em algumas horas sigo os dez mandamentos desse espírito livre, em outras envelheço. Tenho um pensamento móvel por demais ou o que tenho é culpa. Peço sua desculpa, Caio. Peço pra ver a remissão da minha dívida. Faço agora minha romaria bretã, no afã de dizer que meus dias não eram assim. "E quando passarem a limpo, façam a festa por mim", completa você. Onde fui acostumar meu olhar, hein? Naqueles dois? Marejei os olhos ali, no jogo de cena, nas memórias, na poesia, no cinema de Almodóvar, na música da minha cara lavada, na repartição, para pedir perdão por minha língua incompreensível, por minha letra morta. Eu estava, sim, "num deserto de almas também desertas". E vendo Raul ou Saul, lembrei de Jhon. A calça jeans meio caída, o jeito de cruzar as pernas, a cabeça um tanto baixa, o olhar apertado, oriental, o sorriso inesperado, a fala mansa, mineira, a profunda beleza de pele branca, o abraço eterno e o jeito de pedir um cigarro. Lindo, sempre assim, feito luz natural. Não foi um dia de calma o que vi, Caio. Mas dormi nu, como um arco-íris na cartola. E acordei me perguntando se sou, de fato, imortal.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">Marco Antonio J. Melo</b></div>Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-72260382644838620222012-06-13T19:42:00.003-07:002012-06-14T14:13:29.823-07:00PÍLULA DO MAR SEM FIM - Número 48<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjn0bz83hv03VLQqucNhs0c7JVwfxmS6_nEx9lISuZH6qxB1tzEpxFlPz9K5lfm9kGp6_Mgy8AJiUPQDd7YmwcsWwhNPCKKpPHKAXhvYg7nuE467WU5iB3nZuaF0Y2KvfA-okCGVlDDlN83/s1600/Kathryn+Lynch.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="333" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjn0bz83hv03VLQqucNhs0c7JVwfxmS6_nEx9lISuZH6qxB1tzEpxFlPz9K5lfm9kGp6_Mgy8AJiUPQDd7YmwcsWwhNPCKKpPHKAXhvYg7nuE467WU5iB3nZuaF0Y2KvfA-okCGVlDDlN83/s400/Kathryn+Lynch.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Tela de Kathryn Lynch</td></tr>
</tbody></table>
<br />
Domingo de decisão, considerando, sobretudo, que é dia de desorientação, que vem depois de outrora, rumando para inumerável infinito. Talvez dilema, embaraçosa situação, como chamar o diminutivo de alguém, passar os minutos pensando se fui correto e o errado se impor. Depois de vir embora, expulso do templo do tempo, melhor assumir domingueiro o espírito encarnado e matreiro com alguma elegância. Ponho os santos indianos de barro dourado de costas à porta, como reza a história de Ariany, e vou. "Seu perfil parece argentino", disse Ed. Um rioplatense à moda antiga, talvez, mas tão malandro e poeta quanto o Brasil ou "bola japonesa no céu do sertão". Tai diz que assobio autoajuda, ou qualquer religião. Digo a ele quê o que escuto e vejo é menos que alienação. "O infinito é tão-somente fantasia", completou. Sentei no banco de alvenaria da praça Nossa Senhora da Luz, olhei a fonte um instante, tentei ler um artigo sobre a tendência do homem natural, acendi um cigarro mansamente, segurei a coleira do cão, e nada respondi. Um vestígio de homem diluído pelo sol parou e afirmou: "É distinto até com o maço de cigarros". Artur, ao contrário, costuma dizer que tenho cheiro de brechó. Lucas apela ao viço da pele. Eu, por minha altiva tez, digo mesmo que não tenho limites nem fim. Tal qual o espaço, infinito. Como quando eu caminhava pela varanda da casa de Tia Zorilda. Um cheiro de quando a vida tarda a passar, da pausa para o sorvete, do jovem casal tatuado passando ao tabique com sua criança de vestido rosa. De quando eu corria pelos cômodos antigos até o quintal de azulejos, ladeando a quixabeira. Ia às pressas à pia de louça talhada para o rosto banhar. Corria a água no rosto como que lavando as rusgas de opinião, as expressões viciadas, os pensamentos vãos. Olhava pela moldura decorada do espelho e pensava: por que justo a mim cabe a obrigação de ser eu? Assim, com princípio, menos infinito do que Deus. Movia-me então, feito síndrome de Mafalda, ao parapeito da janela. Via passar Sussuarana, Pau da Lima, Doron, até a igrejinha. Comprei meu bilhete de passagem ao futuro sem horizonte definido. Na passarela, filipetas propagandeavam cartomantes de óculos escuros. Bruscamente, numa esquina, uma moça chorava agarrada aos seus murmúrios e um homem, com arma em punho, ordenava que outro deitasse ao chão. É o mundo, sem perdão. Tudo que existe, e nem sempre se pensa, é assim...urgência, ansiando por renovada inteligência. Lentamente, sem nenhum traço de pressa, voltei pra casa e dormi, como barco a circum-navegar pelo raio do sol. Chamaram-no de Tûranor. E a tarde foi caindo ali em tom cinza-outono. Em meu sonho, uma bela mulher deu-me pimenta de cheiro, abacaxi e melaço. Um homem, de alcunha Canadá, deu-me carona de volta em sua própria barca de mar. Viagem gratuita de infinitas ondas de alegrias é dormir. "Larguei meus sonhos em alto-mar. Meu peso em ouro para quem encontrar", cantou Luiza de pé sobre a embarcação. Verso esses elementos ilimitados porque nós, poetas do sono, acertamos quando rimamos. Não fosse assim, o trecho deserto da praia do acordar seria só areia com histórias aqui e acolá. Coloquei, última vez, meus pés na água. Vi uma tábua, uma tartaruga, um cão uivando, um rapaz se equilibrando na cerca do tempo infinito e um corpo azul-dourado correndo seminu. Sustentei o olhar em rochedos não muito distantes. Pescaria de fim de tarde. Homens jogavam e puxavam a rede. Outros içavam a isca na linha do anzol e atiravam ao mar. Das canoas ou das pedras, o tempo era o da espera, o da imortal humanidade. "Homens de azul com seus peixes que brilhavam", sussurrou Coco. Despedi-me para despertar. Nuvem na baixa, sol que já não racha. Nuvem na serra, sol que já não terra. Fitei o horizonte e fechei os olhos de brisa e de fronte. Fiz amor com o tempo permanente. Se tudo em movimento é tão consagração e profundo, meus pensamentos também são. Sãos do mundo. Acordei, os olhos em júbilo, superiores a todo limite, muito além da luz do farol. Bem cabia uma profecia, cantarolei baixinho, sozinho. É que sempre que sonho com o mar, parece ser também sempre a primeira vez que o vejo, sem cessar, sem interrupção, como que o coração na maré, vestindo a fé de nunca partir. O mar, quando vejo aos domingos, é coisa que, dentro de mim, não pode ter fim.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b><span style="background-color: red;">Marco Antonio Jardim</span></b></div>Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-7439223838876076358.post-81096252149681488842012-05-24T19:23:00.002-07:002012-05-24T19:45:29.871-07:00PÍLULA DA MARÉ BAIXA - Número 47<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlTlbkKEWNMYaVbmVA-B0W3GwmG8Ftieg8ZFhIvbdVzg4CWBdotgMTU-wvYK2XFoVcNFEijZul_cv1DN2I9pDU8JfgQ-iCkkSmVnwC6iwiKdS0fh5_JLlRvkLSDI29tM8kyuFFTkxG5nxt/s1600/reading-the-newspaper-in-the-dead-sea_1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlTlbkKEWNMYaVbmVA-B0W3GwmG8Ftieg8ZFhIvbdVzg4CWBdotgMTU-wvYK2XFoVcNFEijZul_cv1DN2I9pDU8JfgQ-iCkkSmVnwC6iwiKdS0fh5_JLlRvkLSDI29tM8kyuFFTkxG5nxt/s400/reading-the-newspaper-in-the-dead-sea_1.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
Diante de certo caos, retorne ao olhar interior, ainda que seja frio, inquietante, quase entediante, mas sempre vestido de acolhedor. Minha alma pode até estar meio perdida numa esquina, no Rio Vermelho, mas nunca silenciosa como os depoimentos da comissão parlamentar. Se alguém encontrar, seja Dànskï ou Policarpo Quaresma, que envie pelos correios, mas não ria. É que se a política se apresenta a mim, sobretudo a que fala língua tupiniquim, não rio. Existe quem o faça, mas espere só a maré baixar. A que foi vista entre Ondina e Amaralina, sozinha, encostada nas tendas de Cira e Dinha. Pescadores afirmaram que viram a maré dando presentes a Iemanjá, rainha do mar. Numa estreita via, passando pelo Beco do França, a bolsa vazia de burburinho. Bem ao meio do caminho, no Largo de Santana, bebericando vinho. Em outro logradouro, descendo a Alagoinhas, próxima às cinzas do Imortal, foi vista minha força vital, minha maré. Até no mercado do Largo da Mariquita, trocando olhares com o repórter da multidão. "Pensando em jamelão no Rio Vermelho", onde o Rio é mais baiano. Meu princípio sensitivo estava Caetano, nu, rondando o fantasma de Caramuru. Minha alma e seu quilombo. Banhos de sal nas estátuas de bronze de Colombo. Cheiro de especiarias no tango do Café & Cognac. À vista, Confraria das Ostras, MidiaLouca, Sushi Deli e, depois do fim, Postudo. Minha ópera do malandro nada mudo, imaterial e boêmio. Meu coração tropicália, quase obsceno. Um pouco de café com emoção. Conhaque, mel e limão. Languidez, papos eróticos, cigarro e caipirosca de morango na mão, resumiu Daisy em seu vestido de crochê multicolorido e colar de cerâmica plástica araçá-azul. Da Roma negra mais brasileira, Mônica. Do riso de lantejoulas, Ana F. Do feitiço, Joline. Da vida real, sonho. Do cinema, Rafa em folhetim. Do teatro de saquê, Hebe Alves. Do lado do mar, areia do Buracão. Se o dia amanheceu ou não, minha foz desembocou ali, rubra e devota. "Os arredores são encantadores e um forte muito arruinado contribui para o pitoresco da paisagem", havia escrito Tollenare, afanado visitante francês. Será que me convence a tentar, novamente, um amor adolescente? Veja, não creio não. Meu sentimento tem sabor de fruta madura, ou isto é. Que cai do coqueiro sobre a taba do globo na praia da frente, virada pro sol em urdidura. "No meio da taba tem muito amor, candomblé, ijexá" e o leite da vaca negra e profana, derramado na farofa de banana das próprias tetas dessa época. Pois que jorre o leite bom na minha cara, feito a folha da Bahia, do Rio, de São Paulo, dos Santos de qualquer maré. "E o leite mau na cara dos caretas", ouvi cantar na barraca do vendedor de fumo de giz. "Sua cabeça vive em brainstorm?", perguntou Jonny. Cabeças feitas feito imprensa de pele marrom, no observatório da Baía já escura. Distintas na cor, iguais na doçura, Nabila, Sayonara e esta "Bahia onipresentemente", vista do MAM, com meu clã. Crente aqueduto e chafariz. Senzala, alambique e a oração que fiz a todos os santos. Do jazz à Buena Vista no Porto da Barra pelos cantos. Tantas bandeiras, tantos dreads, tantas gentes lusitanas, tanta informação extra-oficial, que nem notei a sombra ansiada do Graal desse estadão. Talvez tenha se desfeito no único lugar que o horizonte do mar recebe o por do sol na maré. Mas "eu respeito muito minhas lágrimas e ainda mais minha risada". Aquela que não dei. Segui, portanto, minha entoada, caí no gosto da moçada e soube, pela mídia, que Julia me procurou. Do Baile Esquema Novo, no sotaque da língua do povo, é assim que escrevo minhas palavras publicadas em jornal. "Simbolismo clichê e enfadonho", criticou o blog da esquerda. Que seja, mas não rio. Perto do mar, minha alma é sonho (e o jornalismo crítico diz que é vazio). Da balaustrada, em despedida, saudade doída deste mar. Diante de certo caos, o cais interior. Afora isso, nessa política (nacionalista, eufemista, jornalista?), nesse marisco mal passado, encho o pote de palavras-arsênico e sirvo chá às cinco da manhã. Sob neblina espessa, esse fardo de alteração do nível das águas de baixa maré. Chamam de artigo de má-fé. Quer publicar?<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b style="background-color: red;">Marco Antonio Jardim</b></div>Marco Antoniohttp://www.blogger.com/profile/11467859520102403615noreply@blogger.com7