quarta-feira, 22 de julho de 2015

COMEMORAÇÃO - Número 71

Capa do disco "Cinema Transcendental", de Caetano

Estou vivo!
É que venho do sol. Lá de onde o Deus de todos os deuses me escuta.
E de onde ouço as coisas de outros amores infinitos muito além da conduta solar.
No clarão vasto das estrelas a se consumirem, na grande noite maravilhada a se devorar, vivo!
E se eu encontrar, no caminho, algum outro ser com bastante sentimento pra me dar, nem pergunto sobrenome, já que é o amor universal que conduz o homem.
Estou vivo!
E não tenho mais idade pra temer a morte, ainda que a tempestade pareça um tanto forte.
Nestas horas, ando sobre o mar.
E vou dar na varanda encantada do amanhecer.
Vou, atemporal, findar-me em mim mesmo, nos meus dedos, na minha língua, na face do meu verbo ser.
Ao meio-tempo, sentado ao meio-fio da vida, inverto, sorrindo, o cenário e começo tudo outra vez.
Amo tudo outra vez.
É que estou vivo. Com os poros abertos ao mundo e um modo de ver a fundo esta comemoração.
Estou forte, intenso e decidido a seguir todo sólido e todo líquido no corpo e na calma.
Vivo nos gestos da alma.
Com o mesmo olhar e murmúrio do menino que, dentro de mim, confundia a paisagem.
Mas, ao longo dos anos, mudei o destino pra dias de estiagem.
Hoje é dia de visita!
Saio da varanda e vou à sacada sentir o cheiro da chuva que passou.
No horizonte, entardeceu.
Mudo de história, alinho ao sereno bom que toma assento em meu coração e colho liberdade na amplidão.
Vida, tempo, gratidão.

Marco Antonio Jardim

terça-feira, 9 de junho de 2015

ENTRE MAR E CÉU - PARTE II - Número 70

Cena do filme "Interestelar"


Deus?
Onde está?
Inflamo e clamo diante da morte do dia que deixou de brilhar.
Antes pecar, que amar esta noite escura.
É aqui, Senhor. Aqui é meu lar. Este cintilante ponto azul.
Daqui mesmo avisto a luz das estrelas e muito além do que seja e do que for.
Dos eventos do horizonte, além mesmo de onde vou.
Vejo ao longe, ao infinito, todo esse extenso amor, essa Criação.
Vejo os que conheço, os que ouvi falar e todo aquele que já existiu.
Reencontro o cabeludo vizinho, o vigia da bicicleta, o porteiro do prédio e o outro da esquina que viveu em linha reta.
Na poeira suspensa de um breve raio de sol, revejo o silêncio.
Vejo o hippie da pracinha, o barman com um cigarro, o mestre de yoga, a filha de Didi, a moça que passeia com o cão e o verdureiro falastrão.
Enxergo o jovem rapaz com a Bíblia nas mãos, a menina do andar de baixo e meu gato persa à espera no portão.
É aqui, neste mundo solitário, que amo.
E avisto nossa ilusão premeditada de que somos privilegiados na imensidão.
Nós, homens das estrelas.
Destas que nascem e morrem e, quando fenecem, emitem raios ultravioletas.
Ah, as tais estrelas.
Quase todas elas cadentes, brilhando atrás das nuvens cinzas em seus pontos finais e quentes.
Pontos iluminados de esperanças tardias.
E nós, homens falíveis, estacionados nos segundos do tempo a observá-las vazias, quiescentes.
E, por entre as estrelas, ele, o espaço sideral, descerrando seu próprio véu.
Um perfeito horizonte tão completo em sua dimensão que deram-lhe, em estupor, o encantador nome de céu.
E uma segunda alcunha no vácuo deste oceano invertido: Universo.
Eis que verso único sobre este caos infindável.
Força monumental da natureza, desprovida de gravidade.
Eu e minha pequena e infundada verdade.
Mas é daqui, Senhor, deste mundo habitado que tergiverso sobre outras tantas e singulares moradas dos sistemas estelares.
Deixe-me, por favor, nesta fronteira do espaço-tempo.
Porque é aqui que elevo meu pensamento a Ti.
Ergo muito acima das teorias, lá onde tudo se resume.
Sim, eu sei, muito menor é este juízo que a mais silenciosa sinfonia das leis que regem as galáxias, mas é um louvor à Sua direção.
A esta combinação solícita e perfeita que nos faz, dia após dia, pousar felizes sobre as nebulosas espirais.
Sou um flanair das massas astrais, Senhor.
Não deixe, portanto, eu ir tão desencanto à noite escura.
Meu coração ainda bate em órbita.
Ainda vivo! Ainda perdura.
Cheio de poeiras cósmicas, buracos negros e desconhecimentos, mas, na alta noite que se faz, tão enlevado e agradecido vivo.
Permita-me notar, com olhos marejados, esta noite pontilhada das velhas estrelas de Sua infinita casa.
Deixe-me contemplá-las, as estrelas, daqui mesmo, Senhor.
Assim, encerro-me por inteiro num breve poema de amor.

Marco Antonio Jardim

(inspirado no filme "Inrestelar", dirigido por Cristopher Nolan, no vídeo "Pálido Ponto Azul", de Carl Sagan, e no livro "O Grande Enigma", de Léon Denis)

sábado, 2 de maio de 2015

ENTRE MAR E CÉU - PARTE I - Número 69

Cena do filme "Interestelar"

Não. Não se vá tão precipitadamente ao encontro da noite escura.
Depois de febre, dor, náusea, indisposição, há soro, sangue e abstração.
Antibiótico, antitérmico, antídoto à dúvida sem cura.
Viver, insistentemente, é mais que ternura.
Não. Não se vá tão facilmente ao abismo da noite escura.
Tudo que vem agora é mar. E dias de brandura.
Às vezes ar, noutras brisa que esbofeteia a face.
Eu respiraria.
Antes da curva da colina, do crepúsculo da tarde ao alvorecer, há mar.
Aquela imensidão que voga sobre suas próprias águas que não absorvem azul.
Água salina próspera de vida em ouro refletido do sol nu.
Uma visão ao mesmo tempo tão leve e esmagadora quanto a respiração do iogue contemplativo.
Como numa oração celta, eu estava ali para recordar que havia sol. E era vivo.
Ali, na claridade, me vi. Te vi.
Calmo, claro, embevecido de fé, tocando os pés nos sete mares de força estranha.
Tempo, espaço e essa beleza rara de infinito azul profundo.
Um pouco à esquerda do mundo, pensamentos estrangeiros desbotados, cabelos enrodilhados atrás da nuca clara, descompromissados do calor
Vestiam colares de couro e silêncio.
Dias e marés trazendo bons companheiros, sombra, água fresca, risos e incensos.
Não. Não se vá tão apressadamente à noite escura.
Vista branco, pra iluminar as sombras da areia em reverência às urdiduras dos deuses.
Bem pode ser uma camiseta branca qualquer, com imagem gráfica de Radharani, pedindo licença à devoção.
E um pote de barro com água, também branca, a pousar em suas mãos.
Dobre as barras da bermuda alva, para que respingue água salgada de mar nas pernas nuas.
Amarre no tornozelo uma peça de cordas trançadas, de cor musgo, com uma pedra reluzente.
Perto do dia nascer, olhe, na direção do indizível, aquela cor ilimitada do horizonte.
Chore, se quiser.
Lágrima que derrama à fronte é o mesmo que sal comum à extensão de água tão imponderável que mais parece a completa ausência do ruído do mundo.
Eu, como um navio enferrujado beijando a areia, ponho-me ao seu lado, conspirando os fios da praia a esta ventura.
Não, Deus. Não se lance tão amavelmente ao curso da noite escura.

Marco Antonio Jardim

(inspirado no poema "Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura", de Dylan Thomas) 

domingo, 15 de março de 2015

ANTES DE MORRER - Número 68

Ilustração de Franciso J. Olea

Às vezes, se determinado alguém nos priva a presença, o mundo esvazia, perde a verdade e a crença.
Deixa saudade, uma recordação quase extinta, como a que sinto das velhas tias de Salvador.
Do bonsai agora seco e da orquídea em flor.
Saudade, companheira de quarto e dos gorgulhos que infestam meu andor.
Tal qual a morte, que não temo tanto assim.
Quem sabe, antes de morrer, eu sinta saudade, sabendo que já me vou, das dúvidas que se assistem em mim?
Será, a morte, ventura ou fim?
Antes de morrer, então, deixe-me despedir, como num presságio, revirando a caixa de poemas, fotografias e pertences envelhecidos.
Te encontrando na estação Wien Westbahnhof e anunciando sua chegada.
Ela, a cápsula mundi, a morte desejada.
A  moça de sapatilha lilás com lacinho prateado, acenando à sorte, aos meus pensamentos, à minha passagem pela vida, aos amores que não se explicam, antes se sentem.
Vi pelas frestas de claridade dos dias que não mentem, num instante de solidão e cansaço, por um quadro torto de madeira nas paredes riscadas do quarto de Marissa, aquela esquina do mundo.
Vi quando ela se revelou em inglês: brain, conclusion, idea.
E meu espírito, invisível, observaria suas reações de estupor.
Renderia uma vista pela janela, no dia entreaberto, meio claro.
A morte. Um princípio de engulho, meio escuro.
Este cavalo solitário numa elevação, numa ilha flutuante, indizível.
Espaço imanente quase incompreensível.
A morte da mãe, da casa demolida, da rua João Pessoa perdida, do ator e do outro que se jogou.
A morte. A névoa, aquosa e espessa.
O forte odor nauseante de ranço à margem dos desaguadouros.
Um silêncio que muito diz.
E ainda uma estreita brecha de sol por entre as folhas da mangueira da casa vizinha.
A morte vinha.
Mas, antes de morrer, vou eu à Via Láctea fazer as cinco orações, uma peregrinação, e dedicar meu olhar à Meca, não por terror, por devoção.
Eis que ela insiste se esgueirando pelas charges, sem muita explicação.
A morte. Agonia, religião torta, inquietação.
Como na fotografia da década de 40, em que se lia no cartaz: o mundo em suas mãos.
Antes de morrer, porém, vou deitar e olhar o velho teto revestido por pano estampado de algodão.
Vou me abster de pronunciar qualquer som, parar de respirar e me deixar perder.
Antes de morrer, tomo um Liberté.
Vou voar, talvez contente, nessa embriaguez inconsciente.
É doce o gosto da morte.
Taciturno, dou-me o aporte, antes de morrer, de brevemente sonhar.
E esse tempo que passa com tanto vagar?
Em sonho, disseram-me: "nenhuma falta fará".
Curioso...despertei com batidas na porta.
Abri os olhos. Não morri!
Morrer ainda é aqui.

Marco Antonio Jardim

(inspirado na canção "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, e nas reações de apoio ao Charlie Hebdo)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A ARTE DE PERDOAR - Número 67


Não há mistério algum na arte de perdoar. Se não há mais o que mirar na linha do horizonte daquele mar frio, há, pois, novo lance de vista.
Nada há de mais imortal que a vida por inteiro. Nem espíritos santos nem orixás o são mais eternos que a vida. Também sequer seria possível matar um coração acalentado de rancor.
Na remissão das penas, a vista há de largar a costa e descobrir outras terras, paisagens, extensão.
Perdão. 
Antes eram linhas e sombras de uma face só, ou um pretexto qualquer para se ver. Antes eram as horas perdidas do profundo anoitecer.
Perder-se, hoje, só nas horas de prima, às nove da manhã de sábado. Ao lado seu, perdendo-me nas tatuagens. Um tanto a cada dia.
Nelas que me perco, pra que não me esqueça mais de quem sou. Pra que na aparência ou realidade, não me tome o siberiano por labrador, a fumaça cinza do cigarro por outra cor.
Pra que eu não sufoque meu menino interior.
Por isso, as desculpas.
Caminhei à sombra dos muros caiados, no reflexo dos olhares desviados, dos meio-sorrisos, sempre num semblante que se impunha numa alcunha em diminutivo. Desculpa, findaram os donativos destas horas.
As de hoje são ainda mais belas que as de outrora.
Das perdas do caminho que fazíamos a pé, sobraram risos.
Como os que ofertei pela manhã. 
Aceite-os, indulgente. Gaste seus últimos minutos ao meu lado. É o indulto que te dou simplesmente. O breve gesto de uma memória futura, uma recordação. Uma gratidão qualquer. 
Não há mesmo mistério na arte de perdoar.
A música que ouço agora não é mais secreta.
Se não colho mais pitangas, nem recordo nítidos os lugares e nomes de antes, perdoe-me, então, você. Porque algo acontece no quando de agora, sim.
Não há mistério: hoje amo outra vez em mim.
São outras caras, outras capas de discos, outros olhos (mais singulares e apertados, castanhos-esverdeados), outro morro da Cebola, cidades, mares. Outros cinco continentes a amanhecer distante do fim.
Porque não há grande segredo em perdoar. É dia novo, recomeço, outra dança de salão.
É tal qual fechar os olhos e abrir na amplidão.
Outra voz, outro sorriso etéreo, outra claridade do dia que desprendo das cortinas da manhã.
Sim, mistério sempre há de irromper por aí. Pelo portão.
De ontem, no entanto, não tenho mais saudade deles. Daqueles.
Perdão.
Não há mistério algum na arte de desculpar. É, talvez, minha forma de oração.

Marco Antonio Jardim

(inspirado em "A Arte de Esquecer", de Elizabeth Bishop)