segunda-feira, 22 de julho de 2013

35 VERÕES - Número 63


Adoro começo e meio. Fim não há. Mas tão-somente alguns fatos (não factoides) são infinitos. "O universo e a estupidez humana", diria Einstein. Todo o resto se escreve em tirinhas de papel para jogar aos ventos, tais quais as boas esperanças.
Adoro oxitocina. É o direito de amar que o corpo propõe em tramas, fotografias em matizes combinados, arte imitada de alguma cena clássica de cinema. E o mais luminoso amor. Aquele que eu ainda não consegui viver.
Creio que tudo se resume ao fato de que precisamos de amor. E de mais crepúsculos de verão.
Há um ritual ali sob o céu, um gestual sob medida, ao som de Etta James, ou The Cinematic Orchestra.
Penso sobre o silêncio, as emoções todas silenciadas.
Tenho, nesta hora, um desejo, um pedido universal. Que eu dê sentido à minha vida, que me sinta importante pra alguém, que eu tenha afeto e, outra vez, amor.
Pedidos de aniversário.
Expressões que dizem, pelo menos, metade. É minha adorável distração. Solicitar, orar pela manhã. Transgredir a ordem da mediocridade em vez de me manter distraído na morte das ideias e das práticas.
Estado isento de restrição, de não estar sujeito. De ser inteiramente livre.
E que fossem comigo as pessoas que escolho a dedo.
Não tenho filmes de família em super-8, não guardo muitas fotos, o Instagram ainda é um recurso poético tão pouco definido, mas, do que disponho em imagens, sorrio.
Trinta e cinco anos sorrindo.
Trinta e cinco anos de memórias. Como aquela de quando eu comia melancia no quintal. Ou a de falar com os gênios dos garrafões. Ou ainda a de comer miolos de pão.
Não vivi tão intensamente, não amei por longo tempo, não viajei, mordi mais do que mastiguei, mas muito mais ri que chorei. E com palavras e sonhos dou um significado maior a tudo.
É quando faço do mundo um lugar transbordante. Livre.
Está aí, no exercício da liberdade de expressão, o significado de breve.
Uma árvore de galhos recurvados, a luz do poste refletida, flores da cor do sol sobre o gramado iluminado, pólens de julho e a cena de súbito cessou.
Na casa, um velho sobrado, minha mãe ao piano, depois averiguando portas e janelas bem fechadas, mesmo todas elas sem trancas. Tudo tão lacônico quanto as minhas sensações de desconforto, temor, estranheza e a dicotomia da morte iminente.
Outra vez, esperanças.
Outra vez, crepúsculos.
O sol se perdendo do dia em vermelho, laranja e lilás. Um dos mais belos e infinitos efeitos a oeste da Terra.
Da eternidade após a morte, de vestir uma roupa nova depois que o dia amanhecer, de viver.
O reflexo da luz passando pelo vitrô produz uma subjetiva combinação na parede branca do corredor. Saí dia e noite por trinta e cinco anos.
"I love the dance floor", gritam os hedonistas no The Guardian, no Le Monde, no Herald Tribune, no New York Times, no Japão.
Ao lado, prefiro apenas calar e escutar "Clair The Lune". Ali, entre Copacabana, Leblon e a Lagoa. "Da iluminada vela na mesa velha de reunião antiga. O lugar cheira úmido, lembrando jornadas. Um dia, um dia".
Dei um meio sorriso ao tempo ao longo destes dias todos. Senti o gosto da simplicidade cheia de alma, a iguaria da viagem no tempo.
Do todo, um dos símbolos mais palpáveis da minha saudade é a minha mãe, e o piano. E o banho quente depois de ler os jornais, ou poesia.
O gosto é sempre este, de saudade, de otimismo e jazz. Todos filhos da criatividade.
Adoraria, nesta passagem, estar num Belo Horizonte, ou no são da cidade de Salvador. Entretanto, estou aqui, no porto meu da solidão. Dotado de razão suficiente pra distinguir o bom do mal crente, mas, caso não consiga, passo o tempo matando pernilongos ou pincelando sobre as unhas uma límpida camada de cor.
Este é o tempo do ócio torturante, um dos reflexos da autoadoração desmedida.
O fato é que eu e minha letra em post-it estão me bastando.
Talvez pareça uma horrível doença, esta que me obrigou a me tornar invisível. Mas, de resto, disponho a paisagem de outro modo.
Cancelo contratos noturnos, termino as noites sozinho.
Escrevo, reescrevo, e o mundo lá fora a me aguardar a hora, a palavra, o olhar.
Tudo, absolutamente tudo, depende do olhar. De como se vê sem nada ver, do quanto se tem a maravilhar.
Depois de trinta e cinco anos, eu fico com o duplo sentido e sua repercussão.
Fico sob a inspiração de Hormindo Barros, outro dos arautos do fitar: “Use primeiro os olhos. Num segundo momento, use a cabeça. Só depois use as mãos".
Meus textos, minha vida, livres assim, são minha varinha de condão. Faço pra encantar e até catequizar.
É minha política, lógica e coerente, meu cartão de presente.
Trinta e cinco verões de céu azul.
Declaro meu voto publicamente, meu aniversário de todo santo, exponho o ensaio e eis que saio a tempo da apreciação. Ou do escárnio.
De toda forma, adoro quando chego em casa seguramente no horário.
Estou aguardando já o meu instante da retirada, mas, por hora sagrada, melhor recomeçar os dias. Então, no final, tudo há de dar certo. Se ainda não deu, é porque o verão não findou.

Marco Antonio Jardim

sábado, 8 de junho de 2013

QUE DÊ CERTO - Número 62

Cometa Halley
Não tornei a ver Floh desde que ele voltou pra Alemanha. De lá, enviou-me mensagens e fotografias.
Dizia: "Querido, muito tranquilo e saudável. Lembranças a todos".
Inesperadamente, na esquina de uma alameda, a das Borboletas, eis que vejo Floh outra vez. Abraçamo-nos sob a luz do sol no calçadão.
Floh está tão bonito. Os mesmos fios de cabelo genuinamente claros, jogados de lado despretensiosamente, os olhos verdes profundos, a pele rosada de tão alva, os trajes tipicamente europeus.
Mas havia algo que o tornava mais maduro. Talvez a barba espessa, os óculos com armação estruturada, ou os pensamentos e desejos, como ele mesmo afirma.
Sentamos na parte mais alta da praça, em frente às casas antigas ainda preservadas, e conversamos por algumas horas.
Ele me falou sobre Hamburgo e Berlim, sobre a festa de São Nicolau, o Parque das Águas, a Lapinha, sobre minha irmã.
Eu só tinha a falar do passado e do presente. Nada mais.
Levei-o para ver as fotografias de Vinícius e depois nos despedimos.
Talvez eu devesse tê-lo chamado à minha casa para um vinho, um brinde, um conto, mas não o fiz.
A gente sempre deseja que alguma coisa dê certo. O novo círculo de amigos, as grandes reviravoltas da vida, os compromissos com o tempo, algum casamento, outros filhos, as aventuras, as coisas seguras.
Os planos do ano, da vida, do além. Aquela pessoa querida, reverenciada.
O amor, a extremidade do amor.
O gostar muito e o venerar de fato atestado. Como bem fazem os pinguins.
A gente gosta, ou naufraga.
A gente sobrevive à morte, ou se morre de alma.
Portanto, desejo que dê certo. Os braços que fazem um país, a dona democracia, a afamada qualidade de vida, o estilo bem viver, a real dignidade de ser.
Que dê certo o gosto do finito ao infinito.
Do passageiro ao mesmo do eterno, do livre e do estritamente necessário.
Que dê certo o cubo mágico. E o chá de pêssego gelado.
Tudo há de dar certo, desejam-me. "A visão acaba, a audição acaba, o sexo acaba, o poder acaba, mas a fome continua".
Que dê certo, sem poeira, o livro de Luís Fernando Veríssimo na cabeceira. E os outros projetos possíveis.
Que recebamos as cartas de gentes supercompetentes, as pílulas preparadas na farmácia da vida, as fórmulas consistentes.
Que preguem os botões, que sirvam os agasalhos, e os abraços, e que os bons jornais sejam postos embaixo dos braços.
Que sejam lidas as páginas do Die Fackel no trem, no bonde, na caminhada a esmo. As letras controversas do poeta Karl Kraus. "Não tinha a mínima paciência com as pessoas que, no bonde, no trem ou na mesa do café, davam início a diálogos inanes sobre o tempo".
O resto é o que faz parte de ser humano. Por isso mesmo, que deem certo até assuntos requentados. E aforismos. E caras de paisagem.
Só não há lugar para lugares-comuns, clichês, ideias prontas ou opiniões fáceis.
Por isso mesmo que deem certo os botecos de minha rua. As mulheres da vida, os jovens cafajestes, a polícia e o cheiro de gordura.
E o mar. Ah, o mar. A manhãzinha ali se esgueirando pelos escritos de Virginia Woolf, pela areia e pelo humor de Mark Twain. "Um mínimo de som para um máximo de sentido", escreveu.
Pois que se adorem uma coisa e outra. Coisa nenhuma é que não é permitido desejar.
Caso haja hesitação, que se tome um copo d'água natural.
Que se veja o retrato desvanecido de Liu, vestida aos moldes dos anos 50, com enormes óculos em degradê, vestido de bolinhas, fazendo crochê na praça do orégano em Miami. Ou nylon, malha, algodão e tactel.
Que se experimente, que se esteja a par e se tenha noção.
Que se vá quando o sol ainda não foi. O sol a gente mesmo inventa, tais quais as canções de amor.
Que deem certo estes livros de receitas. Com capa de couro e cheiro de mogno fresco. Com gosto de lombo suíno grelhado ao molho de mel. Arroz com aroma de hortelã.
Bordão, bom dia, bonança.
Que se cantem "Caramel" por si mesmos.
E que não tenham receio de olhar nos olhos. Como faz meu gato persa, O Branco, que me fita e parece interrogar: "Por que chamam Guerra Mundial, se nem todo mundo participa?".
Sejam distraídos, queridos. Menos graves, menos rígidos. Voltem às origens.
Que deem certo os números. Eles também servem pra alguma coisa. Até para versos.
Há de se perceber poesia em qualquer lugar, mesmo sob os umbrais da porta. Basta mudar o jeito de olhar.
Voltem atrás, então.
Sejam francos, expostos, compartilhados, e até patenteadas sejam suas vidas públicas.
Para se ter um estilo absolutamente pessoal é só virarem os olhos ao céu, ao cosmos.
Que dê certo, por fim, esta imensa língua divina que fala a verdade com significados tão pouco iguais e tão insistentemente brilhantes.
Eu observo as estrelas e torço, apoio, espero, desejo ardentemente que dê certo.
Se não for assim, que eu me vá embora com o cometa.

Marco Antonio Jardim

terça-feira, 14 de maio de 2013

AS GENTES TODAS - Número 61

Fotografia de Vinícius Gil (Purki)

Se tem algo que inventaram que é, de todo, instigante, intenso e emocionante, é gente.
"Gente olha pro céu", cantou Caetano.
A gente daquela terra do lado de lá, cantou a pedra do dicionário.
"Você é cômico", desdenhou Diego da minha filosofia humanitária.
"O que sou é mítico, quase um ícone", respondi atrevido.
Sou um barato, ainda que, por vezes, seja também um chato.
"Sou um moderno intelectual que vai ser rememorado", autoironizei minha chatice lúcida. "Megalomaníaco!", disse em tom mais alto.
"Sou um otimista, com autoestima na medida", tentei amenizar.
"Tomara, então, que você seja o que, afinal, pensa ser", concordou com certo sarcasmo.
"Eu não penso ser, Diego. Eu sou", respondi, mantendo a serenidade.
"Oui, oui", riu.
"Je peux vos aider à être comme moi", finalizei à francesa.
Gente é assim, quer saber o um, o lugar, e qual rio deságua no mar.
Escrevi para Manno num pedaço de papel, em meio aos seus rugidos pernambucanos e as batidas do esqueleto negro baiano, e só não declamei porque havia tanta gente, e tão perto de mim.
Dos escritos, eu dizia assim...
No todo que escuto e reverbera, no todo que se faz eco, no todo que há um.
No único que diz veementemente aos ventos todos que circulam aos todos, sim, há um.
Nos números que se contam em palavras tão incontáveis quanto as estrelas se perguntam quantas são, há o tamanho do universo em expansão.
O um.
Nas reticências de qualquer pensamento difundido, defendido, vamos todos nós, e os outros, gentes, os que se resumem num.
Do concebido algo pobre do expressado, cor de cobre também se rima rico o tal do ziriguidum. Manno, gente é muito bom. Só com gente, e sons-imagens, pra vida ser inteira.
Gente, às vezes, é mais de um plural. Tal qual Pessoa, "nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo".
E ainda que a vida minha se divida entre o cômodo dos dias e a gaveta das utopias, quero me fazer presente, franco, sem restrições (e até ser venerado, por que não?).
Quero Bárbara um dia desses, e ser disposto num porta-retrato de alcova ao piano-adágio da expressão solitária de Anderson.
Um dia desses, quero ser fotografado divindade por Purki. Com o rosto rasgado, dilacerado, delgado, apaixonado em verbo de larga escala.
Quero um nu assinado, descolorido a lápis por Alex num quarto de hotel desativado.
Quero Di. Na parede do meu próprio quarto.
Eu, gente de coração vagabundo, acautelando o mundo em mim.
Qual gente, em qualquer idade, não quereria ser um emblema adesivado, um Vitor Hugo abravanado na janela do museu-moldura da verdade, publicado na história?
Quem não quereria receber uma ligação de alguém que há tempos não vê, só pra escutar: "De repente, saudade"?
Gente assim pintaria até os cabelos e deixaria a barba por fazer. Faria qualquer reverência de sagração. Um autoreflexo. Um não.
Gente quer comer. Matheus, o rotulado, letrado, profeta profano, quer comer e beijar em público.
Satisfação. Meu gato persa quer comer. E eu quero ser comido, cozido vivo, por Nara, Marina, Jamille, Ellinha, Bethânia, Selma, Renata, Cecília, Leilinha, Vandet, Suzana, Luiza, Marcela e Didi.
Gente que brilha por aqui. Bem ao lado da Tenda, no Beco, de pernas cruzadas, pedindo um isqueiro que acenda.
Você precisa andar com a gente, Vitor.
Aqui bem pode ser a melhor cidade da América do Sul.
O Xamps Elisées em véspera de feriado.
A alta madrugada, o meu mirante autodenominado.
Se oriente, rapaz. Sua barba correta, seu agasalho escuro, seu olhar semipuxado, tudo tão bem pensado como o sopro do seu riso de cigarro.
Passam uns, ficam outros.
Fica um tino de ansiedade não comedida.
No afã desta incoerência, passa, ao seu lado, a vida, como os hebreus atravessando o Jordão.
Passa a madrugada e nem um olhar seu encontrando, do meu, um vão.
Num impulso irrefletido, brusco e inesperado, eu o segui. Em noite de uma estrela só, o marcador sinalizando treze graus.
Gente só quer ser feliz, Vitor.
Depois de meio-dia, em dia agora raro de sol, Iguarias.
À minha frente, fios de cabelo cortados sem afilada simetria.
Vontade que havia de tatear. Pelos espessos no rosto delgado, pelo mundo, pela porta afora, pelo canto do olhar.
Vi, do cristalino, fitado em mim, gente, estudando, talvez contemplando.
Daí chegou Macário, e Tina, e Saldanha, e todo o gesto-poema-inteiro de Luiza outra vez.
Toda aquela gente pensando, dançando, lavando roupa, batendo o Tambores e amassando o pão.
Sorri, vertendo meu melhor encanto. Indaguei se era alguém especial um tanto e, de novo, sorri.
E, se não conservei imagens de outrora, é que fico com esta hora de idas, vindas, da realidade de agora, dos escritos sinais em números numa nota de dois reais.
Meu mais novo talismã guardado no bolso.
E segui, caminhando a esmo.
É assim mesmo, gente quer sempre prosseguir. Em meio à turba cantando em coro, procurando aquela entidade.
Sem oscilar, eu vi.
Gal. De 74 e dos anos 90.
Tínhamos planos, eu e Gal.
Na mesma afluência, ela também me viu. Buscamo-nos. Eu, num abrigo púrpura. Ela, acetinando. E fomos.
Porque só sei viver mesmo se for assim, intenso, em noite que não tem fim.
Roupa azul espalhada no chão, corpo inclinado, habituado em demasia ao outro, aberto, plano como a palma da mão irreprimível. Ou da língua em francês, com gosto de Amarula, crível, sussurrando "ma langue dans votre tatouage, mon petit".
Uma sardanisca correndo próxima ao ventre frio. E o líquido seminal rente ao meu peito se reproduziu.
Ah, aquela luz no cio da manhã invadindo.
Gente, como usurpou o meu tempo aquela luz!
"Baby, why you look so sad?", cantou baixinho Cibelle, ou teria sido Ayade?
"Porque vim-me embora", respondi. Vesti meu agasalho com marca de cigarro uma última vez. Porque uma hora a gente tem mesmo que sair, despedir.
"Um dia a gente pega a mala. Dia, caminho, sol, ânimo, medo. Na noite seguinte, risco, faísca, estrada, o nada. O sol, o sol, o sol". Ofuscando a vida dos outros, levando-a embora feito onda salgada de mar.
Faz tempo que o dia não se rasgava assim.
Estamos em maio e faz tempo que não saio de mim.
Esse espetáculo das ruas. Das gentes todas que querem luzir.
Depois que inventaram o tempo e todas estas pessoas do mundo para o passar das horas, só mesmo silêncio, segredo.
Minha diáspora agora é solidão, sério! E lá estava eu me abraçando.
Gente, quanto doce mistério.

M. A. J.

domingo, 21 de abril de 2013

CASTELOS DE AREIA - Número 60


Esse mundo não é meu, nem seu, mas um dia hei de construir castelos nele.
Marcus ligou, tirando-me dos devaneios do meio-dia em que, sentado no sofá da ante-sala, sob a luz morta que vinha da janela do meu quarto e refletia na mesinha empoeirada, eu lia sobre a Holanda.
Marcus pediu urgência no envio do modem. Ele viajaria às 21h30 para Salvador e, de lá, para Nova York.
Acreditei que ele não esqueceria de repetir o pedido, mas partiu sem levar a peça. Deixou-a guardada numa gaveta, sob papéis.
Liguei e os telefones, inexplicavelmente, deixaram de funcionar. Consegui um número de uma vizinha, duas casas abaixo da minha, e passei a mensagem.
Notei que minha rua estava silenciosa nesse dia de frio cortante. Até aguardei na porta, fumando um cigarro, já que era sábado.
Marcus não veio.
A porta, então, bateu. Minhas chaves ficaram dentro. Os telefones continuavam sem funcionar. Fui atrás de chaveiros ali pela Gerson Sales. Encontrei um que precisaria de transporte. Ele demorou a descer as escadas do apartamento mal projetado.
O tempo passava, mas eu estava estranhamente calmo. Alheio, talvez.
Conheço bem esta sensação de defesa. Algo estava pra acontecer.
Segui numa outra direção, num cruzamento entre uma feira livre e pontos comerciais.
Num átimo de segundo, um motociclista em alta velocidade se chocou com o carro.
"O homem é o homem e a sua circunstância", me veio à mente em flash. Pensei em Deus.
Deus? Meus olhos fecharam. Não sei de onde surgiram tantas pessoas. Aquela rua parecia escura e abandonada, minutos antes. Os burburinhos todos estavam me incomodando. As luzes também.
Eu só conseguia olhar o todo, a dinâmica da vida e sua concepção. E meu corpo só sentia os permanentes processos de mudança. Um por um.
Mesmo no termo da existência, sou um poeta à moda antiga. Com amor à vida, ainda por cima.
"O amor que está vivo nunca está pronto. O amor que está vivo está sempre em movimento". Onde mesmo li este trecho? Eu forçava algum gesto, como se algo me impelisse para o que me afigura belo e grandioso.
Entrecortadas, pessoas e cenas iam e vinham, feito sombras. A noite de aniversário de Diego; sons de uma garrafa de vinho à deriva no bagageiro; Marcelo interpelando transeuntes numa rodoviária em madrugada plena; um bilhetinho dirigido a Leo, o companheiro de Cecye, e sua expressão, sua silhueta inteira à meia-luz; as incitantes conversas com Yves e Manú; as vitórias de minha mãe; e o intimismo da casa de Rachel.
Ah, como aqueles cômodos me fazem recordar Jhonathan. Lucas chorando. Di chorando. Trechos de voz de Janelle. Palavras esparsas, como sienista. Uma vontade inexplicável de estar numa piscina, mergulhado por inteiro, batendo cinquenta metros na água azul.
De novo, a voz de Jhon ao telefone dizendo "Ei, rapaz!". Uma inscrição de camiseta: "às vezes eu tento ser normal". O gato mesclado que deitou ao meu lado e o meu filhote J., mordiscando meu queixo, pedindo carinho. E Lana, numa esquina.
Nós nos parecemos. Sempre estamos com um livro embaixo do braço. Por hora, Ernest Hemingway comigo e alguma coisa de Pessoa com Lana.
Lembro de termos ido ao Boliviano. Tomamos capuccino no balcão. Adoro balcões de bares e cafés.
Por vezes, no entanto, sentamos em mesinhas redondas e passamos o tempo a rir de nós mesmos. Por três vezes nos encontramos lá num mesmo dia. Ela não parece se importar quando chegam amigos ou conhecidos e roubam minha atenção.
Às vezes, vou sentar-me num banco acolchoado, ao fundo do salão de piso em mosaico antigo, e fico a trocar ideias e tempo com a enteada do meu irmão e sua animada filha, Renata.
Ou passeio pelas gôndolas de doces com Gau e Cleiton, que sempre me observam com olhares inquiridores.
Outra vezes, vou para um canto mais discreto, à meia-luz, com minha irmã, seu belo companheiro barbado, e outros amigos.
Sempre bebemos Bourbon com papaya, preparando-nos para alguma festa.
E lá está Lana, no balcão do Boliviano, com seu livro aberto.
Engraçado que, em alguns momentos, eu via, ao seu lado, um menino. Parecia um pequeno jornaleiro, vestido com boina xadrez, suspensórios, camisa muito polida, posta por dentro da bermuda curta, e sapatinhos lustrados da mesma cor das meias.
Sempre que eu aparentava cansaço ou tristeza, lá vinha o menino, afastando-se de Lana, a me cumprimentar.
Eu o vi me observando ali, no cruzamento. Era um menino de rosto magro, mas afilado, impossível de esquecer.
Eu o vi também passando por uma borboleta de ônibus e um velho o examinava.
Vi meu passado completo e os reflexos de um futuro impreciso.
Vi Caio falando sem parar. Suas frases volvendo repetidas. "Sim, eu acredito. Sim, eu acredito. Sim, eu acredito".
Havia gosto de sangue em minha boca. E de Cosmopolitan.
Alguém, que não lembro, gritava censuras injuriosas ao motociclista. Era um conhecido. Não recordo mesmo quem foi, mas sussurrou: "Você é a única companhia agradável para esta noite. Por favor, fique!".
Senti minhas costas marcadas, doídas. Meu irmão veio ao meu encontro. Eu estava no intermédio entre o céu e o inferno. Eu e minhas loucuras sãs, no limbo, decidindo meu destino.
Com os olhos ainda fechados, nestes segundos intermináveis, vi uma placa de mármore numa porta descascada. "Docere, delectare, movere", estava escrito em letra cursiva.
Na iminência do tempo que se encerrava, respirei.
Eu havia escutado a batida. Olhei para o lado inverso e vi o corpo imóvel do motociclista no chão. Saí do carro e corri em sua direção. Peguei em seu ombro e perguntei se estava bem. O mesmo conhecido o chamava de louco. "A culpa é minha", respondeu o homem. Suspirei, serenado. "Aqui está minha vida - esta areia - tão clara, com desenhos de mudar dedicados ao vento".
O chaveiro, enfim, abriu a porta.
Um dia ainda hei de fazer castelos.

M.A.J.

domingo, 24 de março de 2013

EXTREMA UNÇÃO - Número 59


"Descarta os conceitos. Esquece o que você já viu, ouviu, cheirou e passou a língua - nada mais está selado".
Nem o banho que tomo todo eleito dia parece ter uma síntese.
Nem o banho de J., meu gato persa branco.
Nem a desinformação dos direitos do homem, quando, por omissão, escolhe seus votos.
Escolho os preparados de beleza, a depender do dia ou noite. Distribuo ordenadamente sobre a bacia de louça. Experimento, no tato, a água quente do regador. Respiro o vapor. Ligo o rádio cipó. Toco o corpo, a mente, o entendimento.
Deixo a forma molhar, da nuca ao dorso, das costas duradouras ao derrière, da parte interna das coxas à planta dos pés.
De tudo escorre lágrima, sorriso, gozo e dança.
Meu banho não é liturgia. Mas tem oração contida.
Ainda que reflita certa falta de lucidez, por parecer futilidade, meu banho é simplicidade.
Bênção, como a de Francisco, o papa. Ou a da freira que recebi em dia de domingo.
É uma embriaguez umedecida sem cerimônia.
Uma sentença nua de júbilo sobre os membros com gosto de azeite, ou vinho, ou sangue.
Gosto de jambu e tucupi. De mangue. Tomate seco temperado, castanhas e leite condensado.
Gosto de transgressão da ordem imperativa da mediocridade.
Gosto de azeviche de chocolate.
Meu corpo é todo gosto. Muito além da extrema unção.
Parte de uma charada que define uma inteira palavra.
É uma ideia abstrata para os demais e tão concreta para mim quanto o ar que seca os fios de cabelo.
Não a ideia distraída na morte de outras práticas. Por hora, os fios dessa são macios. Caindo corredios sobre o rosto de poros abertos e de silêncios.
Sim, emoções beatíficas, que se abstêm de falar.
Daí borrifo um crisma de aroma penetrante e altivo no ar.
Notas de lima, bergamota, limão e mandarina.
Visto-me ao estilo très chic comedido. Argolas, boina de abas curtas, cachecol de listras, cardigã, calça reta de alfaiataria e uma roupa de baixo moldada para ressaltar o maço e outras ausências.
"Você é um rapaz de sorte", disse alguém à boca que beijei nesta noite.
Senti, no reflexo do ósculo, o sabor do meu hálito ungido. Parecia água doce, benta, com um vento morno soprando insistente aquela missa.
Minha língua parando o tempo, penetrando a outra ilha deserta, mergulhada em saliva, por entre os lábios, pelas faces internas, percorrendo o véu palatino.
Amor incondicional? Eu até posso compreender afetos, permitir quinze dias de encontros às escondidas, até concordar em pagar por sexo numa madrugada ébria, mas não consigo mais entender histórias de amor.
Blasfêmia? Perdoem-me João, Marcos, Crist, Cristo, e outros profetas, mesmo aqueles dos quais me proíbo escrever o nome ou os que nada teriam a dizer.
Vinícius se aproxima e pergunta ao pé do ouvido: "Esta boca que você beija é a mesma da semana anterior?".
Meu beijo é um chamado ao ócio de um ato solene, uma graça divina.
Uma febre, um suor, um delírio, uma ideia esgotada.
Meu beijo não tem tempo demarcado (até ganhei concurso assim).
É como uma virtude, uma nova idade, sem medida de duração.
E é claro que sou sujeito a mudanças sucessivas de substância interior.
Por hora faça-se luz, faça-se algo, mas que se desfaça logo depois. Como as cigarras em fim de tarde.
Só aprecia quem também tem sentidos despertos assim, e não aqueles que desacreditam ou criam personagens de mim.
Como os que fizeram uma ceia. Serviram uma quiche Lorraine, queijos, nozes, vinhos, Speech Debelle e alguma dose de fé.
Tam me deu seu coração trôpego.
Indira, uma voz baixa.
Bárbara, curvas.
Milly, um benzinho, uma salvação.
Lu, seu fluido transparente, levemente alcalino, segregado e derramado.
Meu irmão me deu um fim de noite.
Leo, palavras hábeis em dia novo.
O que cedi?
O que desejaram escutar e um lapso de tempo futuro onde dormi sozinho, na minha casa, onde se come da minha hóstia, da minha própria comida cara.
E a frase de Franca me contrariando: "Sim, é preciso tempo".
Triste religião de chuva fina. Caiu a tempestade e meu espírito se quebrou. Quando notei do alto de minha cruz, era domingo. Dia de ressurreição.
Ansiava, de alguém, um convite para uma casa nas montanhas, celestial, um texto corrente, um terço e alguma despretensão.
Meu corpo não tolera mais excessos, nem quando beira a medida certa.
Até que descobri um novo nome.
Samuel, o aldeota de pele e olhos claros.
Um achado no cosmos, no espaço sideral, uma reza ou mesmo uma canção de amor.
Um pastor nômade. Um homem solitário.
"Nobody is so queer as folk", repetiu o homem solitário no reflexo do espelho.
Segurei suas mãos, que retroagiam, toquei seu rosto em desdobramento, dei-lhe um abraço forte e um beijo, mas não o vejo mais, este nome de Deus.
Foi outro, um encosto, que deitou sua sombra sobre minha carne e quis um pacto, um conluio.
Um terceiro, levitando, feito anjo (os anjos, de onde vêm?), levou-me a uma travessa estreita e antiga, de onde se ouvia o som de uma caixa sonora.
Homem de profunda piedade. Mas o piano emudeceu, "como emudeceram as fotos de rostos conhecidos que o enfeitavam", escreveu Isis.
Descarto, enfim, os conceitos.
Porque meu propósito é universal, não tem uma só cor.
De tudo que já cheirei, ouvi, lambi ou vi, esqueci a cor.
Até mesmo o cheiro, som, gosto e textura do mangustão.
Ainda assim, só ou em par, sei que serei capaz de alguma coisa realizar, de alguma redenção.
Sabe qual é, afinal, meu conforto?
É que, da vida, só me levarei morto.

MAJ

domingo, 24 de fevereiro de 2013

PÍLULA DO RIO AZUL - Número 58



Estou, novamente, dobrando o Cabo da Boa Esperança. Vislumbrando, desta vez, minha tão almejada descoberta à Índia. Melhor dizendo, ao Rio. Aliás, esperança é um nome tão bonito, um bem tão desejado, um pedaço de qualquer bom lugar, uma cobiça maior que as estrelas sobre o mar e o marinheiro. Por ocasião, o marinheiro é o que dirige, com hospitalidade, a embarcação do táxi até Santa Teresa. Diz-se que é bairro nobre. Prefiro ver como uma parte da serra tão exclusiva quanto o encanto do rosto do atendente da padaria orgânica. Uma vista tão inteira ao entardecer, ao satisfazer a imagem do impulso do tempo. Tal qual um relógio de pulso que para pra ver o bonde chorando a cada minuto. A cada detalhe do casario quase intocado. Alguns grisalhos, cinzentos, do século XIX aos anos 40. No meio da tarde de Santa Teresa recebi um chamado de alento. Não foram os ecos do convento, nem dos imigrantes, muito menos dos hipsters. Subindo as ruas Joaquim Murtinho e Almirante Alexandrino, no imaginado bonde amarelo tracionado por muares, recebi o chamamento dos que residem ali. Dos bons e maus sob o sol que brilha independente. Minha descendência parecia estar ali naquela tarde. E minha consequência era de estupor. Ou mesmo expressão de carinho. Sagrada lágrima do bondinho. No Cafecito, dizem que sagrado é o que se sente. Eu, ali, era só um homem profundo, um frame de segundo. Todas as realidades e fantasias tomando forma. Da pracinha Odilo Costa Neto ao final da escadaria colorida, formei opinião. Perdi qualquer traço de glória pessoal pra dar um ar coletivo à movimentação. Pra ganhar tempo na história sem perder um certo vigor juvenil. Ainda que eu tivesse voltado ao tempo, como se meu passatempo fosse andar pelo Montmartre carioca, pelas vielas, ladeiras e ruas estreitas, meu semblante, ao fim das contas, era, sim, vivaz. Estava a dançar do mirante das ruínas ao centro do Rio. Da estação das barcas ao centro do Rio. Do Lavradinho à Lapa tão descolada no centro do Rio. Da Fornalla de Botafogo aos feitiços da feira de Ipanema. Dos risos de Tamara ao abraço de Juliano na pista black da Comuna. Das faces e forças de Madonna, feiticeira, vampira, bacante, loba, morfa, morta, viva, eterna, entre outros entes, tão perto, tão rente. O Rio é assim. Tal qual o brilho encantador de Thuthia, o vestido de Clarinha, a bolsa trespassada de Rachel ou a barba de João. O abraço do Corcovado ou as mudanças do verão. Copacabana, Ipanema, Leblon. Os corredores de árvores sombreando, outra vez, a esperança em meus ombros. O Rio que conheci de vista, de fazer passar. Como os tapetes de folhas à beira-mar. Como os móveis da lojinha mudando de lugar, ou a tinta da caneta riscando as linhas em minhas mãos e as palavras perfumadas de almíscar pelos muros, pelo chão. E o imutável curso do tempo, do então. E os óculos espelhados, quadrados. Os cabelos assimétricos ou de corte levemente militar. As bermudas de alfaiataria e as camisas retrô de botão. A Gávea, a Rocinha, a Barra e as pedras enormes nas avenidas a ladear. E, claro, o mar. Os biscoitos Globo, as águas de côco. A Praça 15 de Novembro, o Teatro Municipal, o Chafariz, os palácios Tiradentes, Duque de Caxias e o Capanema. A Biblioteca Nacional, o Brasil da Central e o impressionante Paço Imperial. A energia do Convento, do assentamento e dos bancos em frente ao Cine Odeon. As ruas imprescindíveis, as vistas inatingíveis, as esquinas novas e antigas, o estreito caminho e o chopp do Amarelinho. Do Pão de Açúcar, os garotos da praia da Tijuca, da Urca ou do Circo Voador. O Glória, a Lagoa, o Morro Dois Irmãos e aquela imensidão. O Rio de Janeiro continua azul. O Rio e suas meninas. Rio do corpo molhado de Itaipava, do berro pelo Aterro, do sorriso de Laranjeiras à beira da linha do horizonte. Rio defronte a mim, incerto. E que logo começo outro por dentro, por perto. O Rio é assim. Primeiro era a cidade, depois sol e mar. Solimar e felicidade na antiga Rua da Lama, do Leme. Ao tempo em que o espírito se enche de mansuetude, se eu tivesse mais tempo, mais alma e plenitude, eu daria, eu sorriria até as pedras do Arpoador. Ah, essa saudade torrente. Embora só pareça feliz, meu tempo presente, de fato, será sempre este verão. Este Rio que corre e não cansa. Este mar sem volta, tão azul quanto cor de esperança.
MAJ

domingo, 27 de janeiro de 2013

PÍLULA DA CIDADE-SORRISO - Número 57

Vista de Niterói

Onde? Na cidade-sorriso. Tudo mais se trata disso. De onde se quer estar. Comigo? Quando encontrei Ana Clarinha, de shorts, óculos gatinha, cabelos curtos não tão descoloridos, batom vermelho e sotaque rasgando o x, é que, por meio de todos os sentidos, compreendi. Ali estava o dessemelhante no semelhante. Era um teste, em plena sexta-feira de São Sebastião, o santo popular. Nos misturamos à celebração do dia, nosso excepcional solstício de verão, em reverências à vida num ônibus lotado sobre a ponte. Gaivotas pairavam no ar feito papel de seda, repletas da cor azul refletida no branco das penas. Diálogos ladeados pela entrada da baía, pelo mar. Por vezes nos abstínhamos de falar. Parecia silêncio também em volta. E ficávamos, taciturnos, a observar os tons de luz. Tudo tão azul e quase verde. Tão amarelo e quase cheio de mistério, de escapismo. De qualquer coisa que fugíamos, a busca de uma imagem padronizada continuava a ser: onde estamos? E além deste horizonte, quem somos? A linha aparente entre o céu e a terra. "Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos", diziam as linhas de um livro de Lygia fechado em minhas mãos. Não que fosse meu grito surdo, mas havia um espanto quase infantil (e mudo) ao ver aquele pico com tantos metros de altura, aquele monólito de milhões de anos, talvez feito mesmo de açúcar sobre o barro. Olhando a pedra fenomenal, a mata verdejante em volta e os corredores arborizados, descobri-me que sou mesmo um ilustre varonil tendenciado a afetos, compaixão e ternura. Sou daqueles que se encantam com um juntamento festivo no porto da enseada, nas balsas, na praça à beira-mar, que parece não estar suspenso a olhos vistos. Sou da orla que se comunica com as ruas estreitas, o tempo, os ciscos e os arabescos dos portões. Da corrente de ar fresco carregando, sobre e por entre os prédios antigos e novos, uma história esquecida que se esgueira por ali, na velha vila Niquíti. Do lado esquerdo, um bistrô, simples, de pouca largura, mas tão bonito como o próprio lugar da vida. Do outro lado, tendas de água de côco. Minha vida em poucos dias era mesmo andar guardando recordações dos velhos casarões entre edificações modernas, da velha aristocracia entre as madames e seus cães com sapatinhos. Mar, areia e pedras portuguesas no caminho. Paralelepípedos, asfalto e verão. É desta saudade que fala minha sensibilidade de estação. E das bonecas enfeitadas no resguardo das janelas mais baixas, de riso estático, vestidas de chita estampada de flor, vendo a passagem do tempo naquelas paragens ali. Quase sempre elas todas morenas, cariocas, que se almejam ardentemente só de olhar. Distante do Cristo, estava eu num refúgio, numa tarde que demorou a cair. Aquele aroma característico, de sal e vento, diante das figuras distintas do meu cotidiano, de permanente anil, mestiços de sandálias de dedo, tostados ao sol. Oscar Niemeyer, quando fez seu Caminho sobre aquela água que se esconde, deve ter tido dia como o meu, céu sem nuvem, com um balão pontilhando a cidade. O mundo invisível dos tupinambás ainda tão presente, apreciado pelo sentido da visão e do respiro quente. "Antiquíssimo, antiquíssimo!", repetia uma senhorinha que passeava por Icaraí, marejando os olhos diante de sua própria percepção daquele porto sinuoso, talvez o verdadeiro rio. Andar arrastado por ali era como uma prova de amor, um mito. O importante era manter a mente quieta, a espinha reta e o coração convicto de toda cor. De todo caqueiro das floriculturas das ruas, como borboletas a cada esquina. Dos cheiros diversos do hortifruti. Do homem lendo o jornal na banca de revistas e outro pedindo uma coleção de jazz em frente à cantina italiana. Do "Good Morning" da voz de Norah que se ouvia de um apartamento. Do menino, um alento, dos fios de cabelo loiro feito sol que arde e ao tempo do último som de Tim Maia à sombra da cidade, das construções coloniais, ao pé da serra dos sinais. Do pai que dizia ao filho: "Vai pela areia". Do equilibrista de corpo perfeito de slakline. Das amendoeiras à margem. Da jangada solitária ao longe das águas frias. Sortes e simpatias joguei às namoradeiras que eu via. E me confessei ao Santo Cristo dos Milagres assim: "Estava amando. Ele me deu por penitência que fosse continuando". E que seguisse minha trilha. Por onde, santo, a recompensa prometida? Onde, afinal, a cor do amor? Na Terra de Arariboia, onde me senti em casa. Onde se fez luz, se fez algo e sentimentos poderosos me impediriam de partir dali, da cidade que sorri.

MAJ

sábado, 5 de janeiro de 2013

RIO DA PÍLULA - Número 56

Tela do pintor holandês Vermeer

Acordei. O toque de alvorada me tirou de um sonho luminoso. Nem por isso estava sobressaltado. O cômodo, gentilmente emprestado a mim por Ana Clarinha, era de um tal silêncio de ouro que esfreguei os olhos pacientemente, antes de encarar a luz da manhã que invadia o quarto pelas cortinas em tom de bege. Das fisgas de luz na janela do nono andar do Casablanca, o céu manipulado do Rio. Azul, com um clarão de espanto tão intenso que parecia puro, não real. Deitado, no tempo destes poucos dias demorados, posso concordar que, sim, a solidão é azul, tal qual a tela de minha mãe, em cena de rua, com arvoredo basto como as de Niterói, mas com o solo cheio de neve. Ou azul ultramarino, como o da mulher que lê uma carta no célebre quadro de Vermeer. No quarto, até o fogo silenciaria. Levantei para me acostumar ao dia. Dessa vez, como de costume em todo o ano, o som irritante do despertador não precisou ser ativado. Despertei os sentimentos. Coloquei "Warrant", do Foster The People, pra tocar baixinho. Na sacada, acima do movimento da Gavião Peixoto, o reflexo do sol em minhas mãos. Eu parecia, não pálido, mas caucásico, límpido e jovem no Rio. Meu rosto, com os olhos ainda semicerrados, parecia mais belo, como que visto sob a névoa ensolarada do avião. Um rosto difícil de entender, mas acordado do habitual letargo dos longos meses. Em meio tempo, com um filme fotográfico do Pão de Açúcar na mão, recordei cenas da viagem de sonhos até ali. A viagem desse velho que se conta em um ano. Em Confins, franciscanos contrastando com rastafáris. Os primeiros dormindo nos cantos do saguão, os outros dormindo de olhos abertos. Ambos convergindo em sono, sotaque mineiro e leitores eletrônicos. Vi, ao vê-los, mariposas de variadas formas e cores. Levitei sobre a cidade, recobrei os sentidos e, outra vez, acordei. Esfreguei os olhos novamente, esperando outro vôo, vesti um agasalho verde-musgo e olhei em volta. "A vida muda para quem muda", pensei. Muito difícil, como os velhos hábitos impõem, não tender a recordar Jhon, à revelia da frase de banheiro: "patéticos mineiros". Decidi, em Viracopos, organizar minha alcova, meu pequeno mundo, minha mais completa zona de conforto e proteção. Lá as pessoas fumam bastante. Comumente sozinhas, sem questionar a abordagem de que cigarros são, de fato, companheiros, ainda que nem tão comezinhos quanto seu curto tempo. Lá vendem livros de esperança no hall de entrada. Foram horas de espera entre um cigarro e outro, lendo e vendo. Horas de profundo alívio, na expectativa de que os dias não passassem, ou que, pelo menos, andassem desejando parar. Só assim pude exercitar o olhar sobre encontros e desencontros das conexões no gigantesco, assombroso e algo que mal administrado aeródromo da vida que a gente tenta inventar. Foi num aeroporto que eu vi, estupefato, pela primeira vez, aquilo que eu imaginava estar distante da minha bucólica existência: uma muçulmana, vestindo um chador, acompanhada do esposo e filhinho de traços árabes bem definidos, estes vestidos ao estilo ocidental. Meu modo de observar o mundo é tão assim quanto o próprio horizonte que os olhos humanos podem alcançar, díspar e incomum. Terminada a chama do cigarro, joguei a bituca no pote de barro onde Tia Sônia costuma depositar seus próprios restos, amassei-a, machuquei-a, como, aliás, nós mesmos deveríamos fazer à morte, e voltei ao apartamento. Dobrei o cobertor azul cor da noite e guardei, junto ao travesseiro, no alto do guarda-fatos. Ajeitei a fronha do colchão, também azul. Coloquei o pinguim de pano num canto, presente de um passado que ainda não desejo remoto. Separei as peças de roupa já sujas e as empilhei no chão de tacos. Camisas estampadas, poucas pretas, outras brancas e listradas. Roupas de baixo e meias. O agasalho que só usei em Minas - porque, afinal, eu estava agora no Rio, sob o peso dos quarenta graus -, pendurei num cabide, sobre camisas de botão que não eram minhas. Bermudas e calças suspensas na estoqueira. Óculos escuros, colares, pulseiras, entre outros acessórios, além de livros, revistas, mp3 player, diário e frascos perfumados, todos em seus espaços, cedidos por Clarinha, acomodados e conciliados. Trouxe algumas fotografias e pequenas lembranças de papel em caixas coloridas, sintetizando o ano, como se eu não conseguisse esquecê-lo, tirando o sono das reminiscências. Sapatos e sandálias sob o canapé estofado de couro branco, amarelo, vermelho e azul. Fiquei de pé alguns instantes, olhando o armário de madeira de demolição, que Ana guarda pequenas esculturas de peitoril de janela. Na pequena escrivaninha adesivada, coloquei, silenciosamente, um incensório indígena ao lado do porta-canetas, do castiçal, do frade bebendo vinho, feito de gesso pintado, de um gnomo sentado num trono de madeira, de um alienígena de mármore folheando o livro da vida, um porta-retratos chinês com a imagem do irmão e sobrinho de Rachel, e revistas, marcando as páginas da leitura de mundo que ainda não fiz. Curioso...ao misturar as imagens daqueles objetos com meus próprios vestígios, parecia que eu estava em casa. Pus toda esta imaginação de acordo ao meu pensamento, harmonizei-me com a sensação de pertencimento, acendi um incenso de benjoim, ouvi o silêncio e desci para procurar um vinho. "It's a black fly in your Chardonnay", dizia a voz da canção de Alanis. Pus-me num assento de varanda da sanduicheria em frente ao prédio, numa daquelas briseadas ruas de Niterói, cruzei as pernas e fechei os olhos, completamente inebriado. Tudo em volta parecia dádiva de um universo inteirado e nunca antes visto ou sentido por mim. Todo o cosmos, toda terra habitável, todo gênero humano, e mesmo o que excede as forças da natureza, estava ali. Nesta hora quente deste dia dos fins do ano, eu estava ali sim, no Rio. Pois que ri, todo este tempo, dos meus confeitos farmacêuticos, das cartas, da duração das coisas descritas, da finitude delas e até de mim. E lá se foi um ano assim, rindo.

MAJ