quinta-feira, 24 de maio de 2012

PÍLULA DA MARÉ BAIXA - Número 47


Diante de certo caos, retorne ao olhar interior, ainda que seja frio, inquietante, quase entediante, mas sempre vestido de acolhedor. Minha alma pode até estar meio perdida numa esquina, no Rio Vermelho, mas nunca silenciosa como os depoimentos da comissão parlamentar. Se alguém encontrar, seja Dànskï ou Policarpo Quaresma, que envie pelos correios, mas não ria. É que se a política se apresenta a mim, sobretudo a que fala língua tupiniquim, não rio. Existe quem o faça, mas espere só a maré baixar. A que foi vista entre Ondina e Amaralina, sozinha, encostada nas tendas de Cira e Dinha. Pescadores afirmaram que viram a maré dando presentes a Iemanjá, rainha do mar. Numa estreita via, passando pelo Beco do França, a bolsa vazia de burburinho. Bem ao meio do caminho, no Largo de Santana, bebericando vinho. Em outro logradouro, descendo a Alagoinhas, próxima às cinzas do Imortal, foi vista minha força vital, minha maré. Até no mercado do Largo da Mariquita, trocando olhares com o repórter da multidão. "Pensando em jamelão no Rio Vermelho", onde o Rio é mais baiano. Meu princípio sensitivo estava Caetano, nu, rondando o fantasma de Caramuru. Minha alma e seu quilombo. Banhos de sal nas estátuas de bronze de Colombo. Cheiro de especiarias no tango do Café & Cognac. À vista, Confraria das Ostras, MidiaLouca, Sushi Deli e, depois do fim, Postudo. Minha ópera do malandro nada mudo, imaterial e boêmio. Meu coração tropicália, quase obsceno. Um pouco de café com emoção. Conhaque, mel e limão. Languidez, papos eróticos, cigarro e caipirosca de morango na mão, resumiu Daisy em seu vestido de crochê multicolorido e colar de cerâmica plástica araçá-azul. Da Roma negra mais brasileira, Mônica. Do riso de lantejoulas, Ana F. Do feitiço, Joline. Da vida real, sonho. Do cinema, Rafa em folhetim. Do teatro de saquê, Hebe Alves. Do lado do mar, areia do Buracão. Se o dia amanheceu ou não, minha foz desembocou ali, rubra e devota. "Os arredores são encantadores e um forte muito arruinado contribui para o pitoresco da paisagem", havia escrito Tollenare, afanado visitante francês. Será que me convence a tentar, novamente, um amor adolescente? Veja, não creio não. Meu sentimento tem sabor de fruta madura, ou isto é. Que cai do coqueiro sobre a taba do globo na praia da frente, virada pro sol em urdidura. "No meio da taba tem muito amor, candomblé, ijexá" e o leite da vaca negra e profana, derramado na farofa de banana das próprias tetas dessa época. Pois que jorre o leite bom na minha cara, feito a folha da Bahia, do Rio, de São Paulo, dos Santos de qualquer maré. "E o leite mau na cara dos caretas", ouvi cantar na barraca do vendedor de fumo de giz. "Sua cabeça vive em brainstorm?", perguntou Jonny. Cabeças feitas feito imprensa de pele marrom, no observatório da Baía já escura. Distintas na cor, iguais na doçura, Nabila, Sayonara e esta "Bahia onipresentemente", vista do MAM, com meu clã. Crente aqueduto e chafariz. Senzala, alambique e a oração que fiz a todos os santos. Do jazz à Buena Vista no Porto da Barra pelos cantos. Tantas bandeiras, tantos dreads, tantas gentes lusitanas, tanta informação extra-oficial, que nem notei a sombra ansiada do Graal desse estadão. Talvez tenha se desfeito no único lugar que o horizonte do mar recebe o por do sol na maré. Mas "eu respeito muito minhas lágrimas e ainda mais minha risada". Aquela que não dei. Segui, portanto, minha entoada, caí no gosto da moçada e soube, pela mídia, que Julia me procurou. Do Baile Esquema Novo, no sotaque da língua do povo, é assim que escrevo minhas palavras publicadas em jornal. "Simbolismo clichê e enfadonho", criticou o blog da esquerda. Que seja, mas não rio. Perto do mar, minha alma é sonho (e o jornalismo crítico diz que é vazio). Da balaustrada, em despedida, saudade doída deste mar. Diante de certo caos, o cais interior. Afora isso, nessa política (nacionalista, eufemista, jornalista?), nesse marisco mal passado, encho o pote de palavras-arsênico e sirvo chá às cinco da manhã. Sob neblina espessa, esse fardo de alteração do nível das águas de baixa maré. Chamam de artigo de má-fé. Quer publicar?

Marco Antonio Jardim

terça-feira, 8 de maio de 2012

PÍLULA DO TEMPO DE MINHA GERAÇÃO - Número 46

Fotografia de Thomas Jackson

Se não tenho muito o que fazer, passo o tempo que passa nas linhas das mãos. Sigo pela esquina do Málaga, na Amazonas, pela alameda ladeada de amendoeiras até o fim da Maranhão e escolho uma das mesinhas amarelas da barraca Senhor do Bonfim, na Praça dos Patos, rodeada de prédios altos, pra algo fazer. Nem que seja apenas ver o quanto a vida é bela, imensa, é tanta que não se pensa. Ver sem lamentar, sem suspirar o não percebido das vistas. Surpreendente silêncio se faz nestas horas. E você, pois, faz o quê? Ousa viver? Está, tal qual Diane em sandálias baixas, sentindo o cheiro bom de especiarias, os condimentos da esquina? Anda pela cidade se declamando fina poesia que, sob a luz do dia, cobre de claridade o poeta? É que em ruas assim fica fácil absorver a realidade. Ruas de Santa Teresa na voz escrita de Jorge Salomão. "Uma colina, um morro, um estilo de vida". Força estranha movida a sorriso que ama, como o de Fellipe, a tudo de ontem e de hoje, o que foi e o que já não é. É lá que todos se cumprimentam, ou não. Que se respira assim, fora do comum. Levanto e, preguiçosamente, desço o passeio em declive. Vejo dois gatos brancos, um deles de olhos claros. O cheiro do tempo continua o mesmo, às vezes chuva, às vezes outras águas. O feijão é de todo dia, irrecusável, gostoso e lógico. Azuki, fradinho, rajado e branco. De corda, carioca, preto, jalo, bolinha, vermelho ou rosinha. Cheiro de tempo bom, exclusivo, de confort food. Do velho vagaroso que passa ainda por trás de mim. É o tempo avisando seu vagar. É o céu laranja da tarde caindo atrás dos homens na obra. A calma profunda da minha tia Deise, o ar. Os cômodos, as peças no mesmo lugar. A mandala lilás e verde numa parede, a mesa de bambu, o santuário com imagens sincretistas e indianas, as fotos de família. Os discos e os filmes, roupas e acessórios. Uma foto de Yogananda ao lado de Jesus, um aroma de lavanda e a recordação de uma festa à contra-luz. Uma boneca chinesa, um paninho florido na pia, o perfume Cuba. Um ventilador de teto, a mesma cortina, brinquedos, mangás e souvenirs preciosamente guardados numa estante, além do vestuário espalhado. O enorme armário de madeira, o jogo de louças preservado. A areia e o pátio dos fundos. Tudo tão peculiar nesse tempo do coração. Até a lembrança amarga de minha mãe fazendo bermudas quadriculadas para me dar de presente antes de se despedir. A mesma janela em que fui chorar. Era feriado nacional. No tempo de minha geração, nunca é tarde para amar. Feito Paulo e Virgínia e seu sonho ideal. De noite, levitando, passando por cima do portão até a antiga igreja. De dia, estendendo as mãos, ateando fogo, comandando os ventos. E em meio ao tempo dessa caminhada, chá de umburana e noz-moscada. Abacate com mel pra romper a manhã. De Rubem Alves, milho, pipoca ou piruá? De Yahn Arthus-Bertrand, o espanto diante da beleza do mundo e do mar. De Thomas Jackson, o cardume dos objetos em fotografia. De Henrique, a Madre. E o pouco que a gente pisa só é cafona sob nossos pés. Sua geração é a minha, designada por uma única letra, a da que completa trinta e alguns anos, dos que fazem porque há estilo de vida no fazer. Bilíngue, coleciona wayfarers e alargadores, acha os filmes ingleses convidativos, escuta Death Cab For Cutie à noite e Edith Piafh ao dia, fumando cigarro e tomando capuccino. Não gosta de pop. Admira Edvard Munch e, por vezes, grita alto também. Talvez não faça a linha cult, mas adora Portishead. O que fazemos é exegese do profundo livro da vida que vimos. Não, não vimos a roda-gigante de Chicago, nem figuras estreando no Ártico, muito menos balões no céu. Tudo que sabemos do tempo se pauta em simples imaginação. Em outras mesas amarelas na Pão & Prosa, na arena de patinação, na Boca do Rio, na avenida Iemanjá. O bafo do meu tempo é que mareia. É domingo. Dia das meninas tomarem sorvete, do filho dar a mão ao pai pra aprender a caminhar, de ver meu irmão dançar, das folhas amarelas forrando o chão, de Jamille rir da calma que ria à calmaria. Dia de deixar o tempo resolver o que acontecer, do vento que passa e não leva, do dom de viver. É tempo de reparar, querer bem, estar bem. Do araçá no pé, do quintal de Cajazeira, das trilhas da mata e o latido do cão. Do céu nublado à saudação. Que caia a chuva, mas que não cesse essa paz de minha geração. Uns tomam doce, outros são doces. Alguns morrem na Síria, outros ainda morrem de amor. Alguns vão à universidade, estudam em gramados, sustentam ideologias, outros fazem aplicativos e enriquecem. Alguns temem a bomba atômica, outros oram no sentido do nascer do sol. Alguns votam nos republicanos ou ainda acreditam na esquerda. Outros só vestem jeans. Muitos ainda querem ir à lua, uns contam estrelas e outros são constelação. Eu, partícipe sem idade de minha geração, não sou produto pra consumação. Sou contraditório, mas sou imenso. Há, como há também em Walt Whitman, um ajuntamento eterno de coisas, gentes, sons e silêncios dentro de mim. No fim deste tempo, o que quero mesmo é comer, viver e entender o sentido de amar.

Marco Antonio Jardim