domingo, 15 de março de 2015

ANTES DE MORRER - Número 68

Ilustração de Franciso J. Olea

Às vezes, se determinado alguém nos priva a presença, o mundo esvazia, perde a verdade e a crença.
Deixa saudade, uma recordação quase extinta, como a que sinto das velhas tias de Salvador.
Do bonsai agora seco e da orquídea em flor.
Saudade, companheira de quarto e dos gorgulhos que infestam meu andor.
Tal qual a morte, que não temo tanto assim.
Quem sabe, antes de morrer, eu sinta saudade, sabendo que já me vou, das dúvidas que se assistem em mim?
Será, a morte, ventura ou fim?
Antes de morrer, então, deixe-me despedir, como num presságio, revirando a caixa de poemas, fotografias e pertences envelhecidos.
Te encontrando na estação Wien Westbahnhof e anunciando sua chegada.
Ela, a cápsula mundi, a morte desejada.
A  moça de sapatilha lilás com lacinho prateado, acenando à sorte, aos meus pensamentos, à minha passagem pela vida, aos amores que não se explicam, antes se sentem.
Vi pelas frestas de claridade dos dias que não mentem, num instante de solidão e cansaço, por um quadro torto de madeira nas paredes riscadas do quarto de Marissa, aquela esquina do mundo.
Vi quando ela se revelou em inglês: brain, conclusion, idea.
E meu espírito, invisível, observaria suas reações de estupor.
Renderia uma vista pela janela, no dia entreaberto, meio claro.
A morte. Um princípio de engulho, meio escuro.
Este cavalo solitário numa elevação, numa ilha flutuante, indizível.
Espaço imanente quase incompreensível.
A morte da mãe, da casa demolida, da rua João Pessoa perdida, do ator e do outro que se jogou.
A morte. A névoa, aquosa e espessa.
O forte odor nauseante de ranço à margem dos desaguadouros.
Um silêncio que muito diz.
E ainda uma estreita brecha de sol por entre as folhas da mangueira da casa vizinha.
A morte vinha.
Mas, antes de morrer, vou eu à Via Láctea fazer as cinco orações, uma peregrinação, e dedicar meu olhar à Meca, não por terror, por devoção.
Eis que ela insiste se esgueirando pelas charges, sem muita explicação.
A morte. Agonia, religião torta, inquietação.
Como na fotografia da década de 40, em que se lia no cartaz: o mundo em suas mãos.
Antes de morrer, porém, vou deitar e olhar o velho teto revestido por pano estampado de algodão.
Vou me abster de pronunciar qualquer som, parar de respirar e me deixar perder.
Antes de morrer, tomo um Liberté.
Vou voar, talvez contente, nessa embriaguez inconsciente.
É doce o gosto da morte.
Taciturno, dou-me o aporte, antes de morrer, de brevemente sonhar.
E esse tempo que passa com tanto vagar?
Em sonho, disseram-me: "nenhuma falta fará".
Curioso...despertei com batidas na porta.
Abri os olhos. Não morri!
Morrer ainda é aqui.

Marco Antonio Jardim

(inspirado na canção "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, e nas reações de apoio ao Charlie Hebdo)