terça-feira, 20 de novembro de 2012

PÍLULA DO BALCÃO FELINO - Número 55


Reza a lenda que os gatos foram criados quando a Arca de Noé ficou infestada de ratos. Noé ordenou que os leões espirrassem. Do espirro dos leões se formou o gato. "Anjo da noite", alguém disse que sou. Observador de balcão, impassível, algo livre, minucioso no olhar apertado, nas pesadas olheiras e fixo numa direção. Explicação alguma isso requer. Ao dia, sou felis silvestris catus. Doméstico, mas não domesticado. À noite, quando desejo, sigo o dono. E abro um sorriso bobo, parecido com sussurro. Gatos também são assim, sabem a hora de rir ou chorar, ao fim do ronronar do amor imaginado. Quando não, vou ao lado oeste em madrugada de sábado, ao lado leste da mãe felídea feiticeira, blindada pelo balcão, protegida sob pelos ondulados. Vandet. Ex-mulher de pescador de ilusões, nunca quis manter gatos em casa. Mesmo pobres, mesmo livres. Nunca houve, para ela, desastres expostos ao mar. Para mim, ao final da noite, sempre houve o balcão do bar. Para ela, expressão facial impassível, coração inatingível. Entre gentes e cheiros, estou sempre ali, no Xamps-Élysées, ratos a caçar. Bufo, esbuno. Ou faço meu rumor contínuo quando contente fumo, descansando a cortina de fumaça sob olhar de um gato branco. Dio. Olhar de profundo verde castanho. Mio. Chamam-no de príncipe, felino do disco voador, daqueles que apanha o sol, a lua e o olhar binocular de Bah para si. Não me distingue, não sabe se sou outro mamífero, não olha por minha janela, não passeia nos mesmos telhados, não provou de minha ração, nem pisou meu chão. As lágrimas em meu pelo listrado não viu chorar. No entanto, noto-o tanto quanto o balcão do bar. Troco, com ele, novelos de lã, atos do madrugar. Por que não habita em minha fisiologia? Meu consolo é a persistência do fluxo das minhas sete vidas. Nelas, nunca há resposta fácil. Um dia, Dio, felino himalaio, não me reconhecerá. Porque gatos também sonham, esguicham e mudam de senhor. Gatos enxergam além do alcance, sentados num banco, com o olhar determinado, um propósito sólido. Nestas horas, à revelia do que observam, pardos, rajados de cinza ou persas, Mila, Vilson ou Kátia, mas sempre gatos. O ponto que fixo é o da alma, que depois descrevo num trechinho poético de guardanapo e nos devaneios do balcão. É ali que exponho meus agrados, meus sorrisos, meus sonhos e minha solidão. Aliás, sonhei com Jhon. O mesmo abraço, murmúrios desconexos e espaço de proteção. Bom presságio, então. No folclore americano, gato que sonha com gato é sinal de bom destino. Eu, felino, pouco caseiro, no mundo real e treteiro, conheci gatos urbanos. Alimentaram-me, acostumaram-me. Idalécio, e o riso do gato de Alice. Inácio, mais corpo que gorjeio. Israel, o gato da geladeira. Wendel, gato preto. Falcão, selvagem. Danilo, bombay fantasioso. Fillipe, de coiro. Alexandre, do bolso pelo avesso. Mazzo e Nara, iscas de peixe bem cozido, donos de Amy. E as gatas extraordinárias, Marlua e Jéssica. À luz da lua, são tantos gatos pela rua. Muitos de alma tão vazia. Será que isso me incluiria? Eu, faceiro. Predador natural de roedores, pássaros e lacertíleos. Por vezes desleal e simulado. Disseram-me, certa noite, no canto do balcão: "Você é um animal de estimação egoísta, solitário, medroso e bem disfarçado". Qual nada, sou é sagrado. No antigo Egito, mantinham-me em templos. E previam o futuro dos meus movimentos. Eis meu furo em sua veia. Na ceia noturna da procissão, por entre sacerdotes salesianos, freiras de túnica cinza, fiéis e cânticos, um alvo dinictis me examinou com atenção. Parecia um cândido marinheiro a predizer sua viagem na observação. Ébrio, tive a impressão de ver Aline, vestida de egípcia Bastet ou Freya, gata nórdica, fértil e sedutora, numa carruagem puxada por dois bengais. Eu, angorá sob a neblina, despeço-me, sumindo no sereno. Quando fecha o bar, vou indo, venerado, sagrado. Pela manhã, espreguiço, passo a língua sobre meu corpo, bebo meu próprio leite. Tal qual assegura a mitologia, saio à rua feito animal de companhia. Vejo um pequeno Miacis sobre os ombros do pai. Fez-me sentir falta do meu. Fui à sala de Chaeles, beijei o gato da família, pedi um lugar à mesa e o paguei com sal. Se olham ao lado, lá estou eu de volta ao balcão, feito garboso siamês, contra o âmbar do portão. Eu e meu estranho coração. Há tempos não sei o que é um bom prato. No fundo, no fundo, eu sou um negro gato.

Marco Antonio Jardim

terça-feira, 16 de outubro de 2012

PÍLULA CINZA - Número 54

SP

Oscilações positivas no universo. Pela primeira vez, estou em meio e acima das nuvens. Observo e anoto, da janela do avião, para loucos que são felizes. Que escutem os desordenados, amotinados, criadores de caso. Os de corpo leve, harmônico e sensível. Corpos redondos em espaços quadrados. Mas, para mim, só leveza nesse espaço aéreo, e torpor na aterrissagem dos pensamentos. Nuvens, para mim. Agora mesmo, escrevo, etéreo, sobre elas. Montanhas de neve flutuantes que nunca antes vi. Mar de espumas em reflexo ao céu. Matizes de branco num convite ao mergulho das ideias todas. Um mar tão sem tempo ordenado que parece estacionado. Tão imenso e alvo que meus olhos fecham e marejam sob azul. Aqui estou eu no céu. Neste tempo, perdoem-me os céticos, a ordem é Deus. Não preciso findar para ver Deus. Confesso que pareço bobo, como todas as crianças que ainda sabem ser. Ainda que definam tempo determinado, melhor é o som e o silêncio que passam por mim. Deixo, no ar rarefeito, minha caligrafia em rimas simples e versos soltos. Como um haikai de beleza contida que, do céu, olha todo o mundo, mas, no fundo, está só. Soltos estão meus braços, pernas, tronco e cabeça. Respiro. Suspiro aliviado e afundo meu corpo ao teto do chão. Fecho os olhos para ver a imensidão das coisas límpidas de um jeito diferente. E penso distinto, porque, agora, sou o passageiro da galáxia. E, como tal, não sou tão fã de regras. Sou fã do amor líquido, mensageiro. Em meio ao festim das nuvens, amo por inteiro. Nessa atmosfera menos espessa, as pessoas e memórias me escapam às mãos. As devolvo ao tempo, troco-as por mercadorias de afeto, mas só porque estou suspenso. Quando pouso, entretanto, ainda amo. Escuto "got to be there, got to be there in the morning" no aeroporto e meu sonho volta a bater na antiga porta de Delfos, sob placa de seiva bruta. Furta-me o ar, agora denso, e a cor é cinza. "Hello, world", ainda ouço. Sim, estou em São Paulo. Vista do alto é quase chumbo. "Mergulhe no oceano de si mesmo em São Paulo", li no devaneio bêbado de Guarulhos à Marginal Pinheiros. O verde das árvores tem tons prateados. Apenas algumas flores de figueiras, chichás e copaíbas quebram a monotonia do concreto. Abro os olhos, feito asas de borboleta, e vejo a fauna paulista a louvar, destoar e imitar o meu próprio olhar. Meu gesto de mãos e boca é aspirina, o indefectível cigarro e o exercício do senso de observação. Black powers com headphones, peruas estilizadas, workaholics de terno slim, piriguetes urbanas, street artists, ciclistas, taxistas judeus, um batalhão de orientais, usuários de crack, gays de enormes óculos escuros, hare krishnas, línguas estrangeiras, hordas de expressões distantes, corriqueiras, paulistas. Todos entre branco e preto, sob chuva interminável. Antes da tempestade, uma lacuna de tempo. Mente quieta, corpo aquecido, sou, fora de mim, pertencente a esta tribo tártara, povo nômade. Estou longe de Atitlán, o local onde o arco-íris ganha tardes gris. Alô Paulista, eis meu amores. Porque são eles que mudam as cores vistas de mim no miolo da cidade que não tem fim. Gestos magnéticos, simbólicos, até criam, inspiram e curam. Minhas mãos sobrepostas sobre eles. Porque são eles que impelem minha força à frente até o coração do Ibirapuera. Uma cidade dentro de um parque e meu coração recipiente, pleno e profundo, em estado de yoga, em oferenda de energia, feito arranha-céu de concreto e vidro na capitania. Tão alto que minha aura pode até andar. Numa das mãos, um escudo antitristeza. Noutra, uma tela em branco, uma obra de arte do Masp, uma energia criativa, um mantra da paz. Eu, inteiramente templo de silêncio, ouvindo uma canção que nunca antes foi composta. Om Shanti Om na Avenida São João. Meus dedos logo tocando os raros lapsos de céu azul em resposta. Ali entre as antigas igrejas, estações, pontes, túneis escuros, grafites, pop art, velhos sobrados e a Pinacoteca do Estado. Há cheiro de poesia e comida tailandesa no ar do labirinto místico. Apesar do pesar, meu olhar vigia São Paulo. Do nono andar do Quality ou do subterrâneo do Metrô. Da esquina da Augusta à Consolação. Do Eldorado da Faria Lima ao posto da solidão. Contemplando a beleza tardia de uma das maiores cidades do mundo, sei que o sol, um dia, há de morrer. Existe amor em SP? Na lápide da efeméride da vida, jaz o sol. Em volta da opressiva paisagem sem fim é até possível ver luzes e calor, mas estou em São Paulo. Vejo cinquenta tons de cinza, mas não sou. E agora jaz o sol e o som. Jaz a soberba malha fortaleza, a quem rodeia pela parte dos Jardins e do Ocidente. Fico breves instantes em silêncio contente. O olhar marejado no físico fatigado pela poluição. Sim, São Paulo é um buquê que anseia respiração. Profunda e silenciosa. A cidade em feriado nacional. Este é meu pranayama, minha flor de lótus. Celebrando, no rio morto terroso, ladeado de heliportos, Nossa Senhora da Conceição. É a imposição das cinzas no tom da dor na margem das minhas costas. Tom maior azul celeste com pontos luminosos, subindo o dorso feito estranha saudade urbana. E do meu caminhar flutuante sobre a esteira do metrô, vendo a luz na fresta das folhas passar, o ar passa. No vasto formigueiro, cada movimento meu cria asas secas de cigarras na raiz. Cria razão e emoção. Amplia o ângulo de minha visão. Se não sou, de estilo ou referência, minha ciência do espírito está sendo sim. Non ducor, duco. Eis meu espírito compreendendo, aceitando, transformando. Oh, São Paulo, pureza do zen, sou seu humilde criado. Eu, sikh, curvo-me perante ti. E, por ser amor, toma e finda. São Paulo em mim é cinza.

Marco Antonio Jardim

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ALULÍP OD OSSEVA - Número 53

Tela de Mari Lopes

"Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e, lançando-se de joelhos a seus pés, disse: Senhor, tem piedade do meu filho que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na água". Trecho das Escrituras, do colo de Sued, que cobre minha mão como luva, como adorno para cada dedo e razão daquele que Oicélc lançou, em riste, a mim: "Você tem algo de autodestrutivo". Qual o sentido do insulto? Eu que passeio pelo mar da Galileia, sobre o rio Jordão, no deserto da Judeia ou acendo âmbar no vasto do meu coração, como permitirei, em poucas palavras escritas, que ele destrua uma inteira argumentação? O que tenho são olheiras, um corte correto de cabelo, nenhuma barba e gratidão, que nada pode contra ambição desmesurada. Daquelas de animal carnívoro, feroz, superior a qualquer homem envelhecido. Eu, por minha vez caetaneando, sou o que sou e não bronzeio pílulas. Quando eu, de fato, envelhecer, vou ler o jornal no banco da praça, vou usar terno laranja e chapéu de abas longas, que hoje não me cai bem. Quando eu envelhecer, tudo poderei fazer. Além de mim mesmo, e do resgate do meu flow, do meu fluxo, serei fêmea, sacerdotisa, monja, mãe ou menina, "minha e não de quem quiser", como afirmou cantando Aissác. Na verdade, nem importa tanto a madrugada que sou. Ainda hei de escrever cartas de amor, mesmo que tenha de inventar um. E que eu dê nome a ele. Senegóid. Que gosta de chuva, de milhares de estrelas caindo do chão do céu. E o que preciso agora? Dormir, para sonhar com alguma fé espelhada na faca afiada. Confiar para desconstruir, deslocar montanhas. E regular o tempo desta cidade de frio cortante e desumano calor. Eis que Ozne nasceu neste mundo de belezas e enfrentamentos, enquanto Ilekim passeava de bicicleta no centro da cidade, enquanto meu corpo não se adaptava nem mais a lenços de papel. Quiçá a resistências e má vontade, rotinas, egoísmo e cegueiras de toda ordem. O que há, de repente, é nascer do sol batendo da janela pro meu rosto. Não é prenúncio de verão, mas é o sol. É um sonho de origem. Nele, há sempre um céu oriental, de azul quase noturno, limpo. Eu levito, as vezes com auxílio de asas, as vezes segurando balões a gás. Estou sempre sem sandálias. Encontro seres estranhos, de variados matizes. Deslizo por tubos diáfanos. Vejo pétalas ou estrelas caindo devagar. Acordo completo, sem princípio e sem fim. Muito mais sinto o gosto de viver. De respirar pela alma, como se houvesse só isso para notar. Isso é que é matéria esculpida em fé robusta, nas pequenas ou grandes coisas, na saúde ou doença, alegria ou tristeza, pobreza ou riqueza, até a morte e depois. Prometo, então, respeitar-me, ser fiel a mim e a Sued, que soprou no mundo que tudo se move, "inclusive o centro". Ainda que iguais a mim, como maldisse Amles, existam cinquenta mil. Só sei que eu mesmo não maldirei do meu destino. Engana-se quem pensa que tive dias assentados, silenciosos ou convencionais. Fizeram questão de me presentear com o tempo. A camiseta, antes panfletária, agora tem listras e botão. Em lugar dos cigarros franceses, chocolates meio amargos. Antes eram os braceletes fluor, agora é kit de barbear. Não ganho mais vodka e, sim, prosecco argentino. Se antes faziam festas-surpresa, agora me convidam para um chá. O avesso do avesso ao que deve ser. Continua a prevalecer a fé aos sete ventos e à saudade de Aleafar, incrédula às inversões do mundo, dos nomes, das pessoas de alma bem pequena, convicção vacilante, incerteza e hesitação. Saudade de Ledraj e seu olhar. Assim também é Ikrup. Asséptico, dorme em berço de falso ouro, numa cela artificial, rodeado de fotografias distorcidas e que, entre um cigarro e outro, cospe palavras impensadas. De outro extremo, Id, filho de escravos, nascido depois da lei de emancipação, ingênuo e perplexo, perdeu o rumo das próprias histórias e se encerrou como o escritor de um livro só. E eu, enfim, Okram, um marco de fé raciocinada e calma, sem tantas palmas a esperar. Minha única curiosidade é ver onde o sol se esconde. Caminho até o espelho mais próximo e inverto as alcunhas no reflexo. Lavo o rosto, passo as mãos, tiro as roupas usadas, faço um batismo de água e perco o fim de tarde sozinho, no entreposto da solidão. Eis o avesso do avesso ao que deve ser, senão. Sem nome ou sobrenome e que, pelo menos, mente a ordem do que sente sem sentir. Assim, do jeito exato e contrário que o seu nome escrevi.

Marco Antonio Jardim

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A PÍLULA DE MRS. DALLOWAY - Número 52

Ilustração de Julien Pacaud

Tenho já a primeira frase, a primeira expressão: "Mrs. Dalloway disse, ela mesma, que iria comprar as flores". Talvez esteja estalando língua distinta da minha, mas parece refletir certa proximidade com o mundo. Escutar outras vozes, em outros idiomas, outros gemidos mais fundos. Ter também outros casos. Em todo caso, aconteça o que acontecer, o quanto antes ela quer ser. Neste conjunto de espaços, corpos e seres habitados, que não é mais o mesmo, que há pouco tempo mudou, quer existir. Ter as imperfeições apontadas por si mesma, não por olhos alheios. Não quer união legítima, constituída e simplificada por um elo de metal dourado. Quer amor em excesso. Não quer nenhum destino deslumbrante para celebrações privadas. Este é o sonho de Marcela, não dela. Nada, a ela, é pouco espaço. Ainda que passe o passo de um para outro, ela quer a universalidade, a totalidade de coisas e pessoas. "Então, num fim de tarde qualquer, poderíamos tomar café", convidou Lara, uma amiga. Ela não quer. Sua vontade é fechar alçapão, cortar luz e ar e anular a irritante voz da velha vizinha e seu desventurado gato. Que se afastem os que não partilham dessa filosofia. Vazia é a que não se sabe o rosto, nem cor de pele, mas se agasta, deplorável, com o berro de suas palavras. Ela quer é que se complete, que se transborde sua voz escrita. No fundo quer é momento, espaço-tempo, pessoas. Prefere a sineta do moço dos picolés. "Coco, goiaba e creme! Tangerina, tapioca e doce de leite!", grita sempre, entre pilhérias e momices. A doce festeira Diane chegou a descrevê-la, certa vez, turvando a visão: "Você encanta". Ledo engano. A verdade é que ela se dobra sobre si mesma, servindo tão-somente de imitação da vida. Como mariposas e libélulas que por agora vêm surgidas. Num instante é nuvem. Noutro é praga e partida. Ela endossa que vai encher os bolsos de pedra, mergulhar o leito de um rio e morrer aos 40. Não cabe mais em si. Deixa-se romper. Cai em si só chuva fina no feitio de confissão. Ela? Solidão. Poesia que mapeia chão e mundo, alívio, triunfo, revolução. Alimenta a alma com alpiste, num jeito explosivo e esquivo de quem, no fundo, nada quer. Ela é a vida inteira em um único dia. Vai a festas para abafar o silêncio, escreve a totalidade das coisas, vai de mulheres e homens, pega pelas mãos crianças e velhos, doendo solidão insistente. "Quem dera pudesse a dor que entristece fazer compreender os fracos de alma, sem paz e sem calma", cantou-lhe Ângela. Sua irmã mais velha oferece ameixas frescas e sabonete de cacau no disfarce de refrescar sua alma. Sua mãe prepara o almoço de domingo. Seu sobrinho nota que ela escuta canções de outrora, mostra-lhe um pássaro morto e pergunta: "O que acontece depois que se morre?". "Retornamos ao lugar de onde viemos", responde ela, alheia. Alguns homens insistem no ato ou efeito de parecerem próximos. Bruno, de longe, vem vê-la. Flávio persevera uma visita íntima. Seu primo Tarlyson a tem por incomum. Um homenzinho giboso a convida para o teatro. Um outro, quase em torcicolo, a devora com os olhos. Um terceiro, anônimo, num gestual lascivo, a aguarda numa esquina escura. Nem mesmo os mais moços e nobres lhe parecem apetecíveis em formosura, como aquele enfermeiro sisudo de todas as noites na estação. "Sua vida é tão banal", aparenta ele, julgando-a na expressão. Até de quem ela almeja apregoar o nome nos classificados ou nos locais públicos, não se faz justo, antes comprometedor. Ela só lê, dos pequenos aos maiores gestos, interpretando os ingênuos pensamentos dos homens. E, observe, seu encantamento de mundo só se faz maior assim. Todos os seus sentidos ali na coluna vertebral meio arqueada, anunciados e falidos, onde se lê, sob ironia mordaz, "Visionary. A tributy to creativity". Ela é como o sol que cobra caminhada rápida depois da escuridão. O mar brando, de maré baixa, que exige saudade do sertão. É, outra vez, chuva fina que dança, reza, moe e lamenta antes de cair. É estrela que só se alcança quando sonham com ela. É pôr-do-sol só para quem sabe ver. É vento para quem vira sua esquina. Para Núbia é cheiro de mato, para ela é tão pequenina que - se cresce - se esquece. É ar fresco arrepiado em corpo molhado. Essência, porque pouco se pensa. Desses sentidos, Núbia, nada ela é porque não é de graça. É simples, comum, mas escrava da culpa moral e do tempo porque, ainda por cima, tem de enfrentar as horas prestando contas pelo ponteiro a "um mundo atento a não perdoar". Ela se despede, então, num exaustivo fluxo de consciência, das pessoas que mais amara na vida. Escreve, antes, duas cartas. Na primeira, conta que sente não conseguir passar por novos tempos difíceis. E que não quer revivê-los. Na outra, nem sequer consegue escrever ou ler. Livre do peso das obrigações e num desfrute pessoal de além carne, já tenho, dedicada a ela, a última frase, a última expressão: Mrs. Dalloway sou eu.


Marco Antonio J. Melo

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

PÍLULA PELO RECOMEÇO - Número 51

Tela impressionista de Van Gogh
No toque da alvorada, depois da perda das horas, acordei de sonho luminoso. Um reencontro com meu irmão Breno, na Chapada. Avivei o texto de sua voz em pensamento, enquanto a luz invadia o quarto. Olhei-me no espelho e vi constelação em minhas costas. Muito próxima do Polo Sul Celeste. Despertei e, sob neblina, eu não estava só. Mulheres campesinas me cercavam, segurando balaios de palha, derramando pétalas em mim. Senti o cheiro, afundando no chão. Cheiro também de pão. Eu vestia o traje menos amarrotado. Vestia minha vida simples. Ainda sonolento, caminhei sob o eco da voz de uma ninfa grega consumida por amor a Narciso. De tudo, ele lhe deixou a voz. "Confesso que eu gostaria que você não fosse o que é", disse pelo fim. Passaram por mim os últimos boêmios e os primeiros operários. Tirei da bolsa o maço de cigarros que não trago mais, joguei ao chão, juntamente com a resposta de não lembro quem, de cor marrom. "Meus olhos marejaram, preciso digerir o que li", divagou o homem sem rosto pelo fim. Tocava James Newton Howard, temas de filmes. Passava o tempo por meu rosto, meus jardins, minha cidade de interior. Refletia meu espírito margeado pela sombra da cerca do Poço Escuro. O clima estava impreciso, entre o frio e o ameno. Sons de folhas secas de milho ao vento. Segui suave, vivo após alguma morte, sem temer que me enxergassem. Naquela rua, no alto de um dos novos prédios, tem uma imensa estátua de anjo. Normalmente brilha ao sol. Sentei num banco da Virgílio Ferraz, por onde, submerso, passa o Rio Verruga, paisagem sem definição. Algum tempo eu tinha, então abri o diário para rever as impressões de Odilon. "Tenho saudade da Cíntia. Às vezes a vejo e a acho linda. Parece pessoa que não vou mais ver", lembrou pelo fim. Ri sozinho, onde meus pés fincaram alma. É que recordei a visita das minhas tias. Sempre carrego a sensação de que será a última vez. É que evoquei o abraço de Kenio. Onde me perco e me acho. Onde para o tempo no mar do coração. Onde me volto às origens, fora de quartos e salas, refugiado em tempo real. É a construção social da realidade, diriam Peter e Thommas pelo fim. Ou falariam de amor. E por discorrer em candura, Adla me procurou. Pomos à vista nosso perdão. A neblina ainda deixava o horizonte um tanto indefinido. Levantei do banco e segui a manhã do meu novo caminho. Passei em frente à Câmara. Gosto de observar aquele velho casarão restaurado, amarelo, a fachada secular, os passos de assombração. Desci pela esquina do hotel desativado, no beco do Candelabro. "Qual de vocês não acha belo quando ele desce, quando deixa tudo translúcido?", ouvi alguém sussurrar pelo fim da lojinha de artesanato. Deixei-me guiar pela avenida, entre estabelecimentos de roupa e de frutos do mar, por cima de folhas caídas, até achar outra praça. Numa das mãos, eu carregava um livro de Isabel Allende, e noutra, uma bebida gelada. Percorrer o caminho assim é como um convescote de manhã cedo. É a tradução de meu universo em algumas boas palavras, a essência do meu entendimento de mundo. Viver manhã assim tem certo sabor. De beijo leve, como o que Duh desejou dar. "I Think, I Love", eu escutava, pelo fim. Pensei que, talvez, Guilherme pudesse estar na sacada da janela. E estava. Semblante grave, analista. Horas mais tarde o vi tão absorto, dormindo no sofá de Ana. Quando acordou eu queria ter dito "Olá, estranho". Pelo fim da voz calada, eu não disse. O céu, já a esta hora, não se achava nublado. Há tempos que não ficava assim. Subi as escadas. Ana que me recebeu. Numa parede da sala, uma réplica impressionista. A cor da luz ali anunciava o passar do meio dia. Raquel me ofereceu uma taça de Cabernet Sauvignon rosado. Na copa, falava-se do Rio. Sérgio lembrou o mármore de Carrara, as construções históricas, o bonde, o burburinho do Santa Teresa, o Montmartre carioca. Renata, de Minas, ensaiou um sotaque peculiar. "Vou te escrever uma lista para você sentir", disse Raquel, sorrindo pelo fim do corredor, apertando os olhos claros. Relembrei o quanto é delicado viver, de uma forma ou de outra, em cada esquina, em cada rua estreita. Luc anunciou o pôr-do-sol. Fomos todos à sacada. Tinha um cheiro de magnólia no ar. Cheiro de nova estação. Já era quase noite, quase frio. Tempos depois, num quarto de hotel, ouvíamos um fonograma e Di confiava singelas histórias. Leandro, o de olhos cor de mel, abraçou-me, deu um beijo em meu rosto e se despediu. "Cuide-se", falou, pelo fim, como um clarão. Voltei à minha casa, ao meu quarto, ao meu tempo de então. No toque do ocaso, entreguei-me de novo ao sono. "Devagar a gente se acostuma a tudo", quase ouvi de Camus, pelo fim da impressão do dia. Afinal, de onde mais vem inspiração?
Marco Antonio Jardim

domingo, 15 de julho de 2012

PÍLULA DE FIM DE CENA - Número 50

Pintura de Bruce Holwerda

Perdi uma poesia escrita num papel pautado. Desmarquei uma reunião de decoração e arte. Deixei de ser no mundo a parte da mudança que eu quis ver do mundo. Não fui ao velório de Miguel. O bom e jovem homem Miguel. Perdi uma cena. E a orquídea abrindo em flor. Não sei mais se a vida segue o curso da criação eterna à morte de todas as afeições, da vida interior às relações de amor. Não sei. Não fui ao sacramento de Bianca e Danilo. Não por serem efebos, mas por eu mesmo ainda não ter acreditado no estado inspirado de paixão permanente. Descumpri o prazo do projeto de alto valor de densidade. O projeto da verdade. Trocando em miúdos, ainda uso os mesmos sapatos. Vivo imprimindo listas de pautas atrasadas. O que será que será, então? Deve ser meu cansado querer um jeito novo de reinvenção. Daí escrevi um texto sobre, sei lá, aquecimento global (e o que se poderia instituir como mudança individual). Mas todo mundo já escreveu todas as letras. Tenho, pois, travado essa luta cotidiana com palavras e inspiração. Luta vã, diria Drummond. Recolho-me ao anonimato. Até os suecos do jj o fazem! E os carecas ingleses também. E Ana Luisa quando na província argentina. De toda forma, eles são mais humanistas e sonhadores do que eu. As minhas ideias têm nascido mortas. E por mais que eu anseie por novas verdades, as eternas já estão aí. O celular não para de tocar. Deixei de atender. Deixei de marcar, orientar e assessorar entrevistas. Calei os verbos revisados. Só sento quieto numa cadeira se for para minúcias. Para coisas miúdas. Ainda que, na química do tempo e da alma, nada é tão infalível assim. Nem os diamantes. Chamem de autoironia, falsa modéstia ou o nome que quiserem dar. "A ordem das árvores não altera os passarinhos", cantou Tulipa. Não entendo mais a parte técnica das inscrições. Minha figura tardia está esculpida tão-somente no panteão dos insones febris. Meu epitáfio: breve elogio a um morto-vivo. Visto o costume, ponho o chapéu e caminho sob o guarda-chuva escuro feito fotografia esmaecida. Não fui à exposição das histórias que contam histórias das várzeas. Está tudo apagado em mim, tudo ardendo, e há suor nas têmporas. Se há crise, perco a cor, sinto o ar gélido passando pela espinha, soldo o sangue e as perturbações. Tudo parece assim...uniforme. Até a luz do sol. E as impressões de Túlio ao fim do texto. Fim de cena. "Dizem", foi como ele designou meu egoísmo cotidiano. Um expiro, eis o que sou. Claro que acredito que há amor em algum lugar, mas nada que valha uma manchete, um vestido de noiva. O tráfego da peça que preciso julgar é o mesmo da faculdade de pensar. E até deste direito pouco sei exercer. Na adversidade, até que me ponho à prova, mas desfaço as ligações. Enquanto isso, na justiça da sala, a celebridade bebe um Pinot Grigio. E eu fico a contar o tempo em lapsos de memória. Delongas, adiamentos, prazos estourados. Primeiro turno, segundo turno, descuidos, faltas, erros. Já se faz noite e a enfadonha agenda da vida não se encerrou. Está sentindo? É o cheiro da manteiga de karité da África nos meus pés e aqueles mesmos sapatos. Salivei a boca seca, escutei Joni Mitchell, mas, quando olhei o espaço sideral até onde minhas vistas conseguiram, lembrei outra vez da minha pequenez. Lá vem o vice-prefeito, o secretário global, a especialista em consciência, o marketing da Coca-Cola. Tem sempre gente importante querendo ir e vir. Esquivei-me deles pelas sombras do corredor. Meu nome está em digressão no expediente do folder. Divaguei, errante, e vou desmontar as mesas. É o papel que me cabe. Oito parafusos e a falta de um instante. Olhe que nem apontei o dedo para as alterações da arte. Picasso no Met, meço o espaço. Outro dos meus pobres afazeres. Quatro metros, quase passos. Descartei o mapa porque não há tempo hábil. O que há é erupção no Eyjafjallajokull, aumento das marés do mar Adriático e o fim de Veneza. A inexorável transformação explorando as angústias do tempo de então. Parece até poética, se não fosse ingênua essa política de vida, essa teologia da modernização. Cumprimentei jornalistas em horário de almoço. Lobby. Mato formigas enquanto eles enviam e-mails. Convenci o fotógrafo na escolha do ângulo errado. O agudo, o côncavo e o conjugado. Reuni a equipe no meio-fio, evitando amenidades. Arestas, cantos, esquinas, cidades. A rede está entrando em pane. Descartei os colunistas, não atendi a paisagista, não contei fábulas. Não fiz amém a ninguém. Não há condescendência nem solidariedade. Nada de melhor na vida é de graça. O tempo, meu bem, só passa. Desci as escadas carregando caixas, encaixotando Helenas, degrau por degrau, manual por manual. Estou queimando em mim, fazendo tudo de novo todo dia, do jeito moroso de sempre. Até chorei num canto, cansado, mas sou como Kafka, literatura fugidia. Um feito fake por dia, desviado do destino. Agora mesmo sou todo dor, um fingidor. E tenho febre. Do mar ou do amor? A gente é feito mesmo pra acabar.

Marco Antonio Jardim

sexta-feira, 29 de junho de 2012

PÍLULA A CAIO F. - Número 49

Escultura de Antony Gormley

Tomara que a cidade possa ver a cara alegre, a cor do som distinta no gosto do prazer. Parecia prévia de festejo, Caio. Eram, no entanto, lábios secos, seca no coração de outros, racionamento no regime de Assad. Dizem que é preciso que se suporte lagartas antes de conhecer borboletas. É como uma solenidade colorida, efeito da cachaça jararaca, cheia do chocalho da ébria vida. Depois de alguns copos, outras mulheres e um mesmo desejo fêmeo da vulva ao útero, as melhores histórias surgem aqui e ali, como uma infinidade de possibilidades, como nas esculturas de Antony Gormley. Vi culminância na arte ruge, Caio. Auge na órbita do corpo do garoto de programa. Alterego. Mergulho cultural e estético, afeto sexual. Muito depois da vigília destes satélites artificiais, eu vi um arco-irís. Celeste, de alianças, sem chuva, feito bandeira num circuito da cara, coragem e altivez. Um espectro contínuo que brilhou vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta e anil. Uma parada que não viu desordem, só se viu feliz, com gentes, gêneros, orientações, idades, verdades. Gente alegre, Caio. E todo o sentido da continuidade. Da mulher que cortou um broto alheio para o próprio jardim ao tenente valente que se vestiu com o short carmim. Das poc poc às barbies do Chuí. Das caminhoneiras às femininas. Do (fe)menino bem mais porto alegre que seguro. Dos curiosos aos que usavam brincos rosa-choque escuro. Das duas faces de Eva e "um certo sorriso de quem nada quer", você riu. Do senhorinho esguio subindo a ladeira com seu paletó largo e seu tempo sem pressa ao garoto de sandálias gastas empurrando a galinhota de verduras. O que vi, Caio, foi histórico escapismo, encantamento e ilusão. Vi uma prece ao infinito. Das estradas olhei aos lados por costume e por gosto. As estradas do entreposto do passado, sob sol e vento. Da montação à celebração, foi o que vi. Noutro tempo, via meu pai. Guardava filmes na geladeira. Eu, por vez, colecionava os carretéis. No teto da cozinha sem forro, um imenso montículo de cupim que descia das telhas até onde eu pudesse alcançar com as mãos. Nas tardes de sábado, como esta de agora, cheias de sol, meu pai levava melancia e jaca ao quintal para reunir a família. A nossa rua não tinha tanto comércio e a casa era caiada de amarelo, gasta pelo tempo. Ficava vazia também aos domingos, sem veneração. Ah, Caio, eram estes os velhos e bons sonhos. Nem todos se concretizaram, mas foi bom tê-los. O tempo é este processo profundo de adaptação, descoberta e sobrevivência, sem miopias, sem vassalagens. Morrer, hoje, não basta. Morrer é que é o mal-estar do século. Talvez por isso não tenha me despedido de Elvira. Sei que vou reencontrar sua discrição. Não é conformismo nem princípio de incertezas. Não é nem sequer o pensar em me pensar demais, Caio. É só o imaginar do sentido e do fazer da vida. Pois quando me vi embaixo daquele gigantesco tecido multicor, daquele estandarte simbólico, fiquei com vontade de gritar o que sou ou de chorar em despedida, como fez Clarinha. Só sorri e pensei no quanto as coisas da vida parecem fulgazes, fantásticas e inatingíveis. Eu sou mesmo um clichê ambulante, Caio. Um heure bleu, um azul intenso da França ou, por Alain Bergala, sou o aprendizado do amor incondicional. Em outras vezes sou só impressão. Vez em quando toco pandeiro como Rayza. Toco violão como Massumi, Duh ou João. Fotografo como Purki. Ou desenho rabiscos iguais aos de Xande. Ou me faço jovem ator, como Dani. Geralmente, Caio, escrevo. Cartas. Ou escrevo para velhos, como gritou Sônia nos mesmos sonhos adiados. "Quando escrevo pra você, é como se escrevesse pra mim mesmo", você costuma dizer. Em algumas horas sigo os dez mandamentos desse espírito livre, em outras envelheço. Tenho um pensamento móvel por demais ou o que tenho é culpa. Peço sua desculpa, Caio. Peço pra ver a remissão da minha dívida. Faço agora minha romaria bretã, no afã de dizer que meus dias não eram assim. "E quando passarem a limpo, façam a festa por mim", completa você. Onde fui acostumar meu olhar, hein? Naqueles dois? Marejei os olhos ali, no jogo de cena, nas memórias, na poesia, no cinema de Almodóvar, na música da minha cara lavada, na repartição, para pedir perdão por minha língua incompreensível, por minha letra morta. Eu estava, sim, "num deserto de almas também desertas". E vendo Raul ou Saul, lembrei de Jhon. A calça jeans meio caída, o jeito de cruzar as pernas, a cabeça um tanto baixa, o olhar apertado, oriental, o sorriso inesperado, a fala mansa, mineira, a profunda beleza de pele branca, o abraço eterno e o jeito de pedir um cigarro. Lindo, sempre assim, feito luz natural. Não foi um dia de calma o que vi, Caio. Mas dormi nu, como um arco-íris na cartola. E acordei me perguntando se sou, de fato, imortal.

Marco Antonio J. Melo

quarta-feira, 13 de junho de 2012

PÍLULA DO MAR SEM FIM - Número 48

Tela de Kathryn Lynch

Domingo de decisão, considerando, sobretudo, que é dia de desorientação, que vem depois de outrora, rumando para inumerável infinito. Talvez dilema, embaraçosa situação, como chamar o diminutivo de alguém, passar os minutos pensando se fui correto e o errado se impor. Depois de vir embora, expulso do templo do tempo, melhor assumir domingueiro o espírito encarnado e matreiro com alguma elegância. Ponho os santos indianos de barro dourado de costas à porta, como reza a história de Ariany, e vou. "Seu perfil parece argentino", disse Ed. Um rioplatense à moda antiga, talvez, mas tão malandro e poeta quanto o Brasil ou "bola japonesa no céu do sertão". Tai diz que assobio autoajuda, ou qualquer religião. Digo a ele quê o que escuto e vejo é menos que alienação. "O infinito é tão-somente fantasia", completou. Sentei no banco de alvenaria da praça Nossa Senhora da Luz, olhei a fonte um instante, tentei ler um artigo sobre a tendência do homem natural, acendi um cigarro mansamente, segurei a coleira do cão, e nada respondi. Um vestígio de homem diluído pelo sol parou e afirmou: "É distinto até com o maço de cigarros". Artur, ao contrário, costuma dizer que tenho cheiro de brechó. Lucas apela ao viço da pele. Eu, por minha altiva tez, digo mesmo que não tenho limites nem fim. Tal qual o espaço, infinito. Como quando eu caminhava pela varanda da casa de Tia Zorilda. Um cheiro de quando a vida tarda a passar, da pausa para o sorvete, do jovem casal tatuado passando ao tabique com sua criança de vestido rosa. De quando eu corria pelos cômodos antigos até o quintal de azulejos, ladeando a quixabeira. Ia às pressas à pia de louça talhada para o rosto banhar. Corria a água no rosto como que lavando as rusgas de opinião, as expressões viciadas, os pensamentos vãos. Olhava pela moldura decorada do espelho e pensava: por que justo a mim cabe a obrigação de ser eu? Assim, com princípio, menos infinito do que Deus. Movia-me então, feito síndrome de Mafalda, ao parapeito da janela. Via passar Sussuarana, Pau da Lima, Doron, até a igrejinha. Comprei meu bilhete de passagem ao futuro sem horizonte definido. Na passarela, filipetas propagandeavam cartomantes de óculos escuros. Bruscamente, numa esquina, uma moça chorava agarrada aos seus murmúrios e um homem, com arma em punho, ordenava que outro deitasse ao chão. É o mundo, sem perdão. Tudo que existe, e nem sempre se pensa, é assim...urgência, ansiando por renovada inteligência. Lentamente, sem nenhum traço de pressa, voltei pra casa e dormi, como barco a circum-navegar pelo raio do sol. Chamaram-no de Tûranor. E a tarde foi caindo ali em tom cinza-outono. Em meu sonho, uma bela mulher deu-me pimenta de cheiro, abacaxi e melaço. Um homem, de alcunha Canadá, deu-me carona de volta em sua própria barca de mar. Viagem gratuita de infinitas ondas de alegrias é dormir. "Larguei meus sonhos em alto-mar. Meu peso em ouro para quem encontrar", cantou Luiza de pé sobre a embarcação. Verso esses elementos ilimitados porque nós, poetas do sono, acertamos quando rimamos. Não fosse assim, o trecho deserto da praia do acordar seria só areia com histórias aqui e acolá. Coloquei, última vez, meus pés na água. Vi uma tábua, uma tartaruga, um cão uivando, um rapaz se equilibrando na cerca do tempo infinito e um corpo azul-dourado correndo seminu. Sustentei o olhar em rochedos não muito distantes. Pescaria de fim de tarde. Homens jogavam e puxavam a rede. Outros içavam a isca na linha do anzol e atiravam ao mar. Das canoas ou das pedras, o tempo era o da espera, o da imortal humanidade. "Homens de azul com seus peixes que brilhavam", sussurrou Coco. Despedi-me para despertar. Nuvem na baixa, sol que já não racha. Nuvem na serra, sol que já não terra. Fitei o horizonte e fechei os olhos de brisa e de fronte. Fiz amor com o tempo permanente. Se tudo em movimento é tão consagração e profundo, meus pensamentos também são. Sãos do mundo. Acordei, os olhos em júbilo, superiores a todo limite, muito além da luz do farol. Bem cabia uma profecia, cantarolei baixinho, sozinho. É que sempre que sonho com o mar, parece ser também sempre a primeira vez que o vejo, sem cessar, sem interrupção, como que o coração na maré, vestindo a fé de nunca partir. O mar, quando vejo aos domingos, é coisa que, dentro de mim, não pode ter fim.

Marco Antonio Jardim

quinta-feira, 24 de maio de 2012

PÍLULA DA MARÉ BAIXA - Número 47


Diante de certo caos, retorne ao olhar interior, ainda que seja frio, inquietante, quase entediante, mas sempre vestido de acolhedor. Minha alma pode até estar meio perdida numa esquina, no Rio Vermelho, mas nunca silenciosa como os depoimentos da comissão parlamentar. Se alguém encontrar, seja Dànskï ou Policarpo Quaresma, que envie pelos correios, mas não ria. É que se a política se apresenta a mim, sobretudo a que fala língua tupiniquim, não rio. Existe quem o faça, mas espere só a maré baixar. A que foi vista entre Ondina e Amaralina, sozinha, encostada nas tendas de Cira e Dinha. Pescadores afirmaram que viram a maré dando presentes a Iemanjá, rainha do mar. Numa estreita via, passando pelo Beco do França, a bolsa vazia de burburinho. Bem ao meio do caminho, no Largo de Santana, bebericando vinho. Em outro logradouro, descendo a Alagoinhas, próxima às cinzas do Imortal, foi vista minha força vital, minha maré. Até no mercado do Largo da Mariquita, trocando olhares com o repórter da multidão. "Pensando em jamelão no Rio Vermelho", onde o Rio é mais baiano. Meu princípio sensitivo estava Caetano, nu, rondando o fantasma de Caramuru. Minha alma e seu quilombo. Banhos de sal nas estátuas de bronze de Colombo. Cheiro de especiarias no tango do Café & Cognac. À vista, Confraria das Ostras, MidiaLouca, Sushi Deli e, depois do fim, Postudo. Minha ópera do malandro nada mudo, imaterial e boêmio. Meu coração tropicália, quase obsceno. Um pouco de café com emoção. Conhaque, mel e limão. Languidez, papos eróticos, cigarro e caipirosca de morango na mão, resumiu Daisy em seu vestido de crochê multicolorido e colar de cerâmica plástica araçá-azul. Da Roma negra mais brasileira, Mônica. Do riso de lantejoulas, Ana F. Do feitiço, Joline. Da vida real, sonho. Do cinema, Rafa em folhetim. Do teatro de saquê, Hebe Alves. Do lado do mar, areia do Buracão. Se o dia amanheceu ou não, minha foz desembocou ali, rubra e devota. "Os arredores são encantadores e um forte muito arruinado contribui para o pitoresco da paisagem", havia escrito Tollenare, afanado visitante francês. Será que me convence a tentar, novamente, um amor adolescente? Veja, não creio não. Meu sentimento tem sabor de fruta madura, ou isto é. Que cai do coqueiro sobre a taba do globo na praia da frente, virada pro sol em urdidura. "No meio da taba tem muito amor, candomblé, ijexá" e o leite da vaca negra e profana, derramado na farofa de banana das próprias tetas dessa época. Pois que jorre o leite bom na minha cara, feito a folha da Bahia, do Rio, de São Paulo, dos Santos de qualquer maré. "E o leite mau na cara dos caretas", ouvi cantar na barraca do vendedor de fumo de giz. "Sua cabeça vive em brainstorm?", perguntou Jonny. Cabeças feitas feito imprensa de pele marrom, no observatório da Baía já escura. Distintas na cor, iguais na doçura, Nabila, Sayonara e esta "Bahia onipresentemente", vista do MAM, com meu clã. Crente aqueduto e chafariz. Senzala, alambique e a oração que fiz a todos os santos. Do jazz à Buena Vista no Porto da Barra pelos cantos. Tantas bandeiras, tantos dreads, tantas gentes lusitanas, tanta informação extra-oficial, que nem notei a sombra ansiada do Graal desse estadão. Talvez tenha se desfeito no único lugar que o horizonte do mar recebe o por do sol na maré. Mas "eu respeito muito minhas lágrimas e ainda mais minha risada". Aquela que não dei. Segui, portanto, minha entoada, caí no gosto da moçada e soube, pela mídia, que Julia me procurou. Do Baile Esquema Novo, no sotaque da língua do povo, é assim que escrevo minhas palavras publicadas em jornal. "Simbolismo clichê e enfadonho", criticou o blog da esquerda. Que seja, mas não rio. Perto do mar, minha alma é sonho (e o jornalismo crítico diz que é vazio). Da balaustrada, em despedida, saudade doída deste mar. Diante de certo caos, o cais interior. Afora isso, nessa política (nacionalista, eufemista, jornalista?), nesse marisco mal passado, encho o pote de palavras-arsênico e sirvo chá às cinco da manhã. Sob neblina espessa, esse fardo de alteração do nível das águas de baixa maré. Chamam de artigo de má-fé. Quer publicar?

Marco Antonio Jardim

terça-feira, 8 de maio de 2012

PÍLULA DO TEMPO DE MINHA GERAÇÃO - Número 46

Fotografia de Thomas Jackson

Se não tenho muito o que fazer, passo o tempo que passa nas linhas das mãos. Sigo pela esquina do Málaga, na Amazonas, pela alameda ladeada de amendoeiras até o fim da Maranhão e escolho uma das mesinhas amarelas da barraca Senhor do Bonfim, na Praça dos Patos, rodeada de prédios altos, pra algo fazer. Nem que seja apenas ver o quanto a vida é bela, imensa, é tanta que não se pensa. Ver sem lamentar, sem suspirar o não percebido das vistas. Surpreendente silêncio se faz nestas horas. E você, pois, faz o quê? Ousa viver? Está, tal qual Diane em sandálias baixas, sentindo o cheiro bom de especiarias, os condimentos da esquina? Anda pela cidade se declamando fina poesia que, sob a luz do dia, cobre de claridade o poeta? É que em ruas assim fica fácil absorver a realidade. Ruas de Santa Teresa na voz escrita de Jorge Salomão. "Uma colina, um morro, um estilo de vida". Força estranha movida a sorriso que ama, como o de Fellipe, a tudo de ontem e de hoje, o que foi e o que já não é. É lá que todos se cumprimentam, ou não. Que se respira assim, fora do comum. Levanto e, preguiçosamente, desço o passeio em declive. Vejo dois gatos brancos, um deles de olhos claros. O cheiro do tempo continua o mesmo, às vezes chuva, às vezes outras águas. O feijão é de todo dia, irrecusável, gostoso e lógico. Azuki, fradinho, rajado e branco. De corda, carioca, preto, jalo, bolinha, vermelho ou rosinha. Cheiro de tempo bom, exclusivo, de confort food. Do velho vagaroso que passa ainda por trás de mim. É o tempo avisando seu vagar. É o céu laranja da tarde caindo atrás dos homens na obra. A calma profunda da minha tia Deise, o ar. Os cômodos, as peças no mesmo lugar. A mandala lilás e verde numa parede, a mesa de bambu, o santuário com imagens sincretistas e indianas, as fotos de família. Os discos e os filmes, roupas e acessórios. Uma foto de Yogananda ao lado de Jesus, um aroma de lavanda e a recordação de uma festa à contra-luz. Uma boneca chinesa, um paninho florido na pia, o perfume Cuba. Um ventilador de teto, a mesma cortina, brinquedos, mangás e souvenirs preciosamente guardados numa estante, além do vestuário espalhado. O enorme armário de madeira, o jogo de louças preservado. A areia e o pátio dos fundos. Tudo tão peculiar nesse tempo do coração. Até a lembrança amarga de minha mãe fazendo bermudas quadriculadas para me dar de presente antes de se despedir. A mesma janela em que fui chorar. Era feriado nacional. No tempo de minha geração, nunca é tarde para amar. Feito Paulo e Virgínia e seu sonho ideal. De noite, levitando, passando por cima do portão até a antiga igreja. De dia, estendendo as mãos, ateando fogo, comandando os ventos. E em meio ao tempo dessa caminhada, chá de umburana e noz-moscada. Abacate com mel pra romper a manhã. De Rubem Alves, milho, pipoca ou piruá? De Yahn Arthus-Bertrand, o espanto diante da beleza do mundo e do mar. De Thomas Jackson, o cardume dos objetos em fotografia. De Henrique, a Madre. E o pouco que a gente pisa só é cafona sob nossos pés. Sua geração é a minha, designada por uma única letra, a da que completa trinta e alguns anos, dos que fazem porque há estilo de vida no fazer. Bilíngue, coleciona wayfarers e alargadores, acha os filmes ingleses convidativos, escuta Death Cab For Cutie à noite e Edith Piafh ao dia, fumando cigarro e tomando capuccino. Não gosta de pop. Admira Edvard Munch e, por vezes, grita alto também. Talvez não faça a linha cult, mas adora Portishead. O que fazemos é exegese do profundo livro da vida que vimos. Não, não vimos a roda-gigante de Chicago, nem figuras estreando no Ártico, muito menos balões no céu. Tudo que sabemos do tempo se pauta em simples imaginação. Em outras mesas amarelas na Pão & Prosa, na arena de patinação, na Boca do Rio, na avenida Iemanjá. O bafo do meu tempo é que mareia. É domingo. Dia das meninas tomarem sorvete, do filho dar a mão ao pai pra aprender a caminhar, de ver meu irmão dançar, das folhas amarelas forrando o chão, de Jamille rir da calma que ria à calmaria. Dia de deixar o tempo resolver o que acontecer, do vento que passa e não leva, do dom de viver. É tempo de reparar, querer bem, estar bem. Do araçá no pé, do quintal de Cajazeira, das trilhas da mata e o latido do cão. Do céu nublado à saudação. Que caia a chuva, mas que não cesse essa paz de minha geração. Uns tomam doce, outros são doces. Alguns morrem na Síria, outros ainda morrem de amor. Alguns vão à universidade, estudam em gramados, sustentam ideologias, outros fazem aplicativos e enriquecem. Alguns temem a bomba atômica, outros oram no sentido do nascer do sol. Alguns votam nos republicanos ou ainda acreditam na esquerda. Outros só vestem jeans. Muitos ainda querem ir à lua, uns contam estrelas e outros são constelação. Eu, partícipe sem idade de minha geração, não sou produto pra consumação. Sou contraditório, mas sou imenso. Há, como há também em Walt Whitman, um ajuntamento eterno de coisas, gentes, sons e silêncios dentro de mim. No fim deste tempo, o que quero mesmo é comer, viver e entender o sentido de amar.

Marco Antonio Jardim

quinta-feira, 19 de abril de 2012

PÍLULA DE GOSTO SALGADO DE LEITE - Número 45


Carambola. Fruta agridoce que ponho no corpo. Estruturas totais, materiais e quase perfeitas, ricas em minerais e complexo B, que vi correr em minhas mãos muito mais que no piso de granito revestido no calçadão à beira-mar. Adeus às imitações de pedras portuguesas em nome da requalificação. Eu, que não sou besta nem nada, mas sou mutante, tratei de me pavimentar. Tostei em chocolate. Mudei de cor, feito amêndoa fermentada, torrado de cacau, a favor da estação. Suei sem parar e, em vinte minutos, marquei meu dorso com o contorno da camiseta, numa torção iogue que me permitiu ver tudo ao meu redor. O cabelo escorrido em suor, misturado a creme de pêssego, deu lugar ao DNA de cruzamento de raças. Sou chinês, envolto em casca dura, de gosto doce e delicado. Sou fino, aveludado, num tom surubim alaranjado, de enchimento marrom-poder em certas partes do meu corpo sustentado pela tiara. Sou todo fácil, assumido e alisado. Hoje tiro até a camisa pra ficar mais vistoso, procurado por todos os pescadores de água doce do sertão. Se não ando nu, é porque a bermuda amarelo quente e terroso tem estampa do Cristo Redentor apontando o dedo médio ao sul. Contorno, volume, quase um monumento tombado, um tempero de Maurita, uma Gabriela-melancia no lugar da canela. Ainda que meu bolso tenha penúria no meio dos dias, tiro onda de gatinho sim. Suculento e, à revelia das críticas das bichas, jovem, sempre jovem. Sem pé de galinha, mas cheio de grão-de-bico, de gravanço, de avanço ao Mediterrâneo pra tirar qualquer olheira da manhã com hipogloss. Ademais, se insistirem no homem velho, que saibam que o homem velho é mesmo o rei dos animais. A pele, a carne, ainda ardem sob o sol. Havia até certa diferença que gritava entre eu e os contornos dos gatos, gatas, ardendo-se na areia. É que o contraste "ressalta ao paralelo mais simples" assim, minimizou Euclides da Cunha. Diante de tanto músculo, curva, pele, órgãos e fluidos vitamínicos, meus olhos cor de mel ao sol fixavam de norte a sul da anatomia. Esconderam-se eles no afã da cinematografia só para adultos. E eu jet setter no escuro decadente. Distinguindo permanentemente o verbo que uso pra separar virtude de infortúnio, joio de trigo, peixe de espinha. Do lado bom, o bronzeado calvo na janela. Do lado incômodo, um conquistense no estilo santropeito com sacola C&A. Eu, do lado próprio, imagem Ras Tafari já de sunga e chinelo de couro. Do lado expiatório, chuva na Soterópolis. Do lado assaz, o Santo Antônio em botequim. Do lado punição, Karen, a prostituta cearense que chora quando assiste o crepúsculo. "Acho que ainda acredito em amor", disse, apertando meu músculo esponjoso na esquina do posto de conveniência que adotei. De lá que saiu Thiago, jeans de cintura baixa, cuspindo palavrão boceta sem tesão, tatuado em Sônia no peito acordado, avantajado. Entre abará e ice, amanhecemos lado a lado. No som arranhado, "A Fábrica do Poema". Eis que provo que bárbaros também amam se marcarem bom esquema. E meu paladar acentua no céu azul sem lua. Gozei ali de boa vida só pra lumiar meus atributos. Não é arrogância, mas me fiz notável e outra vez branco em Campo Grande, Castro Alves, Vila Velha e outros extremos, cortando o definhado Beco dos Artistas. Ou na banca de revistas pornô. Deve ser o espírito das estátuas de heróis que ornamentam esta praça em que armado estou. Ou seria dos gays em argamassa? Deve ser o assentamento cordial da casa de Ana e Yoshi, o casal complementar. E também seus livros, estofados, máquina de costura e, dos dias, quase tear. Cheiro de filho e flor. "Keep calm and carry on", entregou o dizer emoldurado na parede. Ou minha sede no Groove do interior. Fazendo fita no beco da Off, da esquina ao World Bar. Cris vem vindo ao meu lado de lá. Vida veio e me levou. Cris agora jaz mortificado. Em dia claro, pertinho do Farol, oração em verbo à beira-mar que uso pra casa da saudade visitar. Fica ali, depois do Largo, subindo o Amparo, passando pela Capelinha ao Tororó. Se eu não acertar agora, Vó Dilma aponta lá fora à mesa. Carambole, chocolate e amêndoa-framboesa. Chacauhaa, maçã persa e carne de pintado. Cássia da casca do tronco, cereal e grão-de-bico. E, no quintal, uma árvore carregada de figo. Dos pequenos sábios aos meus primos-irmãos, todos lambendo os lábios, refazendo o calor temporão. No centro da mesa farta, a mãe de minha alma aparta minha fome. Não há lugar como o lar e o fogo que consome no fogão. Não mexe, pois, comigo não! É que jamais ando sozinho. Saravá ao meio de um só caminho! Verbo que uso no suor, secreção opaca do gosto do peito salgado, do leite marinho.

Marco Antonio Jardim

sexta-feira, 6 de abril de 2012

PÍLULA DE NOVA CASA, NOVO TEMPO - Número 44


Pessoas mudam de ideias e roupas. Eu fico a tentar mudar os hábitos, mover a casa. Com destemor, peito aberto, sem deixar a coluna arquear ao carregar móveis, pequenos objetos e as boas impressões que a memória há de conservar. Na madrugada, perto da noite, sem medo de amar um novo tempo e ordem, abrindo caminhos, portas, janelas, mudando as coisas que podem ser mudadas, transformando o deserto de ideias da velha moradia em coisas da alma. Em certo momento, já noite, ao lado do entardecer, sentindo o vento no rosto, sentei numa almofada e contei estrelas em despedida. Não sei mais nem menos da vida, mas sei que ela existe e que já era a hora, desde o meio dia em pleno sol, de por tudo em outro lugar. Fiz meu silencioso ritual de separação dos cômodos vazios e recantos escuros, da rua inquieta, de pessoas e sombras que me vigiam dia e noite, da habitação mais cara ao coração, e transformei. Desci a rua do poeta e subi a 1º de Maio na manhã que seguiu ao dia seguinte. Por onde estou agora a morar, a sintonia toda é aquela que eu devia mesmo esperar. A da estranha sensação de pertencimento. Ou, como previu Sarytta, estou indo a novo rumo, novo tempo, novo alvorecer surgindo. Na composição da travessia, só me despedi, afinal, do reflexo das coisas. Do aceno fugidio na plataforma, a estação por inteira é mesmo a vida. E meu tempo, nela, é quando. A velha casa, portanto, não me segue mais. O novo tempo é o que basta, além do cool jazz. É tudo tão recompensador, diante deste inspirado compositor que é o tempo. Posso ver o céu azul da ampla janela do meu quarto e um horizonte tão vasto que mais parece que vejo o mar. É de lá que fito e saudo o infinito. Meu quarto é um rito de corredor arejado, sofá colorido, revisteiro de Paris, um closet, uma mesa de estudos, objetos que contam histórias e um espaço para praticar yoga ao lado da cama de casal. Tudo está tão no seu devido lugar quanto o barulho da água e do ar. A luz corre, inteira, por uma das salas, e se faz indireta até a orquídea sobre a peça de madeira marrom. Há livros por toda parte. De Khaled Hosseini a Ernest Hemingway, de Voltaire a Kardec, e outros títulos que bem sei. Há quadros em todas as paredes, pintados pelas mãos de minha mãe. Há janelas, vitrôs e frestas por todos os lados. Há mais janelas que todas as que há no mundo. E a gente se ilumina com os dias que chegam de fora pra dentro, por vezes em matizes de azul profundo. E a gente serena quando a tarde cai no tempo. Eis que o tempo, enfim, venceu. Enquanto isso, à nossa volta, as vozes de Marcela e Milena, crianças brincando de bola no village, gente caminhando sem pressa, famílias, sons de pássaros, uma jaqueira e um limoeiro. Pelas redondezas há mercado, marcenaria, lojinhas, padaria. Uma venda de frutas e verduras, um bar e uma praça onde levo o cão pra passear. Como num subúrbio de riqueza imaterial, se pudéssemos ter a fugacidade para ver tudo, mais bem que mal, de fato sentiríamos tudo. A velha casa já cede lugar, já se desfaz, como vislumbre ou vaga lembrança a outros silêncios mais e ao olhar embevecido neste novo lar que fica lá detrás do mundo. Ademais, a velha casa já era monte de tijolos moribundos sem pretensão, fechando as portas do meu coração. Agora, ela é um espaço vazio, com um só habitante solitário que nada possui. Sem anseios, sem movimento. Adeus velha casa. Feliz novo tempo.

Marco Antonio Jardim

sábado, 24 de março de 2012

PÍLULA DO OUTRO LADO DA LUA - Número 43

Cena de "Viagem à Lua", de Georges Méliès

Na observação de mundo em que me coloco, um lugar com algum privilégio, nada parece pequeno ou insignificante. Pode ser a janela de um trem, de onde olho, distraidamente, a paisagem exuberante cheia de vales, curvas, matas e bichos nativos, descendo pela estrada de ferro de Teresópolis ao Rio, ou o espírito concentrado sobre a lua, acostumado, talvez, a qualquer outro satélite aparentemente estático. Façam sol, façam chuva das coisas vistas, as palavras têm leveza. A essência do que é pouco espesso, seja pluma ou alumínio, não está justamente em melhor apreciar as coisas do mundo? Numa de minhas marcantes visões, vi, sobre o mar, tal imensa, cheia e alaranjada lua ao fim do dia, displicente tanto quanto o aro que ao seu redor surgia. Sorria a lua para mim, como numa cena de Georges Méliès. Passei as vistas pelos cantos do vagão e ninguém mais parecia perceber, entretidos que estavam os passageiros em malhar os próprios pensamentos na poeira dos trilhos. Os homens ou os astros? Quais deles são mais antinaturais? O satélite da Terra ou o homem em sua forma ocasional? Se tão crescente é o comboio ferroviário, o assento, o vidro úmido, não devo ser, portanto, o único a dar respiro à paixão. Se fosse eu só em minha espécie, suponho que não existiria nem mesmo amor, sentimento visto, por aí, rindo, pasmo, em consonância com a passagem do tempo na estação. O riso é este poder universal, comum a todos, mesmo às expressões mais sisudas que ocupam a primeira classe, tão cheios de si quanto da obsolescência do saber. Decidi, então, buscar. Estão próximos aqueles que são um pouco mmais amáveis. Comecei por eles. Edmarcos, por exemplo, jogador do desporto mais popular, porém despovoado, deserto e triste, estava acomodado à minha frente. Dele, o riso é só contração de face e boca. Sem alma, sem júbilo, projeto de amor pouco viável e, para tantos, nada desejável. Sem os sabores de sorvete de coco, tapioca e cupuaçu que o vi tomando no vagão do meio. Mantive o olhar atento ao que lia sobre o Rio e anotei suas expressões. Rio, rindo comigo mesmo, do moço que pedia os bilhetes, outro de molho agridoce. Tão autômato atendente em seu olhar europeu que possuía nome que não mais sei. Uma senhorinha festiva, ao lado de uma criança que se esmerava em tentar dar fim a uma mariposa pousada sobre a cortina dourada, dando-se conta do semblante circunspecto do bilheteiro, ditou, em alta voz, em citação a Oswald de Andrade: "Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o Brazyl tinha descoberto a felicidade". Ditoso fiquei, pois, quando fui proibido de acender a cigarrilha e parei no afã da falta de ar da passarela mestiça para me assumir verão. Pela primeira vez em dias, peguei-me num riso sardônico dos que a sério não se levarão. Eu me esqueci em riso, decidido a me achar na margem do mar e do Rio. Deixei minha bagagem no vagão e, dentro do tempo que me foi dado, saí para caminhar pelas redondezas. Parece existir um espírito novo que resiste na orla. Rapazes que vestem roupas femininas e moças em vice-versa. Trajes sumários à beira-mar. Homens desposados em busca de satisfação sob os tecidos leves dos maiôs de agora. Escutei, ao longe, o instrumento de sopro do amolador de facas e, ao eco, o triângulo do vendedor de taboquinha. Na costa, bem ali na linha, a que separa o mar dos paralelepípedos, ou o oceano de um continente revitalizado, havia um vendedor de água de coco, Renato. Sob sol a pino, dorso nu da cor de crustáceo, calças de tecido cru amarradas por um cordão e dobradas até o tornozelo, e imenso chapéu de palha, ofereceu-me água. E eu cá, com meus botões, sonhando com o chá de hibiscos servido por minha tia Régia. O vendedor riu do meu ar presunçoso e disse: "Senhor, moro na Babilônia, mas não sou daqui". De onde, então, todas aquelas cenas inesperadas que me deixavam algo que boquiaberto? Nunca vi antes nem no Jardim de Alá, ou dos Namorados em Petropólis, nem na Lagoa dos Patos, muito menos na esquina da Rua Piauí, no Engenho de Dentro com a Maranhão. Até os cheiros, de sarapatel, bife acebolado, carne do sol, frutos do mar e pimentão, pareciam render uma nova existência. Que fazer diante de tal contigência? Aceitar o zeitgeist? As coisas no Rio parecem ser assim mesmo, por vezes dor, mas tão logo sussurram ou gritam uma expressão de amor em esquina. Do Kana Kaiana baiano ao Bonfim, do Redentor ao Ed. Manhattan, até o copo de destilado nas mãos cheias de anéis do barão bicheiro. Olhei o relógio de bolso, voltei à Estação Leopoldina e sentei num dos banquinhos de ferro fundido da plataforma. Vi um rapaz de traços orientais em pele negra. Ele me olhou nos olhos e se apresentou. Marcos, tal qual um São Sebastião ao estilo Yukio Mishima. Dei a ele minha pulseira de cascas de frutos secos revestidos a ouro e voltei ao trem para seguir viagem. No momento em que olhei para o perfil desta figura que diminuía à medida que o trem partia, estremeci com pagã alegria. Minhas mãos iniciaram um movimento que nunca tinham sido ensinadas a fazer, o de despedida. Senti alguma coisa secreta, radiante, subindo de dentro de mim. Subitamente jorrou perdida em tanto meio sorriso e nua. De minha atenção flutuante, o que para mim é tão produtiva, sobrou-me, outra vez, ao longe, a visão do outro lado da lua.

Marco Antonio Jardim

domingo, 18 de março de 2012

PÍLULA DO FEITICEIRO - Número 42

Iogue sobre a Pedra do Sino, montanhas de Teresópolis

Dos poucos momentos em que abro os olhos - o que normalmente faço para observar, pelo espelho, se minhas posturas estão corretas - percebi que você tem profunda dedicação, contemplação e reverência. Perdão por manter meus olhos abertos em observação, mas é muito bonito de ver. "Que memória romântica e sensível! Como me percebeu? Admiro imensamente essa fluidez com que as palavras são encadeadas. São cenas onde podemos ver, ouvir, sentir cheiro, tato e paladar através de palavras. Suas letras fizeram ativos todos os meus sentidos". Foi uma impressão. Aliás, foi além. Subi as escadas, vi seu rosto e uma expressão que não reconheci. Vi uma moça bonita e um senhor com típico semblante. Abracei Carlos, falei do zodíaco, mas, no canto dos olhos, só observando. Dei um meio sorriso a você, não sei se atentou. E enquanto eu calçava meus sapatos, você olhou. Gosto quando olham e leem o que veem. São pedaços de realidade. Desculpe a longa tergiversação. Às vezes sou lírico, outras prolixo. "A moça? Minha irmã. O senhor? Meu pai. E eu percebendo seus sorrisos e olhares de maneira natural, espontânea, retribuindo. Senti-me visto por dentro, desarmado, despido. E gostei. Moro num lugar onde há muito de mim, onde há calmaria, montanhas em todas as direções, revoadas de periquitos, beija-flor na janela, brisa sempre fresca e inverno frio. Sempre há música ou comidas, ou os dois. Não há, pois, o que desculpar. Está sendo agradável". Gosto dessa conversa compartimentada. "E do que mais você gosta?". De todo dia ser diferente. Penso que amo, às vezes penso que não. Entretanto, hoje penso no exato instante. E, daqui a pouco, poderia lançar um livro, fazer algum sucesso e passar um tempo na Europa. Você aprende a amar? "Já mudei de cidade, casa, amigos, por vezes por obrigação, outras por vontade. Sempre tive que aprender a amar. Qual o dito que carrega consigo?". Uma camiseta de domingo, trechos de livros, capas de revistas, coisas que vou absorvendo devagar. Minha citação é que, nesse momento, vou me levar a passear, almoçar meu prato de comida chinesa preferido, comprar um vinho, um disco, um filme de amor, pra me gostar, me amar. Quer ir comigo? "Convite tentador! Tenho tido tempo pra pensar. Tempo no ônibus a caminho do hospital, tempo para ler o mundo, tempo para meditar. Qual o seu tempo?". O de alguma canção. O de dançar sobre a cama ao som de um disco de verão. O tempo dos livros de cabeceira. Você gosta de sorrir? "Sim. De chorar também". Curioso. Sorrio pelo motivo mais banal e pelo mais profundo. Gente me faz sorrir, piadas nem tanto. Boas histórias, cenas inesquecíveis, rostos bonitos (sorri muitas vezes olhando o seu), cheiro de tempero. E choro com cena de novela e filme antigo. Você se acha bonito? "Por dentro sim. Por fora, nada de extraordinário. E você? Quais seus grandes prazeres de viver?". Comer, dormir, rezar, sorrir, amar, ler, escrever, sonhar e silenciar, entre outros inconfessáveis. "Pois eu gosto de cozinhar, de praticar yoga, de estar perto de meus pacientes, de viver música, ouvindo, assistindo ou tocando". Então você toca instrumentos? Encantador! Por que não casou? "Porque não tenho um canteiro pra firmar minhas raízes. Mas toco piano e me divirto com acordeon, pandeiro, triângulo, castanholas, flautas e percussão". Então você é um feiticeiro. Logo desconfiei. Como sentia falta de conhecer alguém de espécie assim. "Mas feiticeiros vivem em linha tênue". Contudo, são eternos aprendizes. Sempre estão pasmos com o mundo. Boquiabertos com as coisas que passam à frente. Quase perdidos. Explica o porquê do seu nome ser tão bonito quanto você. "Eu gosto do seu. É forte, charmoso, imponente. Quero conhecê-lo pessoalmente". Logo hoje que estou tão frágil, sem luz e acuado? Tem um abraço de cinco minutos pra me conceder? "E uma troca de olhar, se também precisar. Você tem medo?". Sou ponderado e sereno, mas também sonhador, desprendido em excesso. Você pode ficar um pouco mais? Se tivesse por aqui, roubaria um beijo seu. "Estou no sofá com forro de partitura, um banquinho de madeira crua à frente, uma estante de livros, uma viola caipira à direita e plantas à esquerda. Quero só ser especial. Nem mais nem menos, nem igual". Como o que vê no trajeto que o ônibus faz? "Pego o ônibus na Rua do Catete, passo pelo Aterro do Flamengo, por baixo dos arcos da Lapa, em frente à Central do Brasil, passo pela linha amarela e caminho um pequeno trecho até o hospital. São pedaços de paisagens". Nossa! Minha vida é assim todo o tempo. E não sou eu quem dito. É mágica, ou feitiço. Gosta de cupcake? Ou de beijo na boca? "Gosto muito de você. E da chuva que cai forte lá fora, com os pingos brilhando nos paralelepípedos, sob luz alaranjada, típica do interior. Estou feliz e confortável". Então explica como ainda eu não tinha visto você no mundo. "Não sei. Temos tanto em comum, não é?". Bigodes de foca, nariz de tamanduá, bico de pato e jeitão de sabiá? É tão lindo. Deixa assim como está. "O que você faz comigo? Dê-me o que puder me dar e, em troca, terá tudo que posso te dar. Impossível não te amar". Seria amar, portanto, envelhecer querendo te abraçar? No final, será o que não sei, mas será.

Marco Antonio Jardim

quarta-feira, 7 de março de 2012

PÍLULA DO PEITORIL DA JANELA - Número 41

Imagem de Tim Jarason

Sim, estou na extensão da dimensão do paraíso, do luxo de espontaneidade natural, de alma recompensada. De alguns dias pra cá, meu olhar cerrado se assenta num mar interior, a uma quadra da janela do apartamento. À meia altura da imensidão, abro as persianas de madeira e respiro ar e maresia. Reminiscências ainda da serra, enumeradas. Não como o mundo de cadáveres enunciados sucessivamente no poema de Colombo, mas com um intuito bem longínquo de me livrar delas. À frente dessa janela, uma criança sorri tocando o sino da trave. Mãe e filha passam caminhando, de mãos dadas, vestidas de primavera, ao longo da sacada amarela do casarão da Câmara. Operários, sentados em fila numa sombra de meio-fio, tocam o tempo chupando melancia. De algum espaço gourmet, um cheiro de bolo de puba. E o eco sussurrado de "Louisiana". Um moço, com roupas em desalinho, passeia com cães Basset. E um certo amanhecer cheio de neblina persiste sobre a serra. Alguém, que não enxerguei quem, grita uma declaração de amor. Um jovem pai ensina a filha a andar de bicicleta. Num poste, um cartaz mostra John e Yoko na cama de um hotel, pedindo paz. Avisto o sobrado, ao lado da igreja da Capelinha, antes assombrado, inaugurando agora uma escola de balé. De um carro em baixa velocidade, posso ver um menino cheio de gracejos sorrindo pra mim. De um raro avião no céu azul, um sinal. Um senhor, balançando uma amendoeira, tenta espantar os pássaros. Um outro anônimo, em frente ao banco da orla, acena a esmo. Vejo, encostado no peitoril da janela, uma garota de cabelos cor-de-rosa. E um companheiro se apoiando nos ombros de outro que pilota uma motocicleta. Puxo meu short Soul Carioca sobre as coxas, pra sustentar uma perna sobre a outra. Recordo o gosto do torrone, a conversa amena e o jardim de Rafaela. O convite de Helinha para um jantar à beira-mar. Repasso um poema de Ezra Pound. O que rima sensibilidade e radar. Ou a conversão da "Conversa Infinita" de Maurice Blanchot. A madrugada. Os verbos da doação de jeans à Cotton From Blue to Green: reciclar, reutilizar, reduzir. E o sotaque esmerado de Will. Também a sugestão de Túlio a Clarah Averbuck e suas coisas esquecidas atrás das estantes da praia grande no escuro, do que aconteceu em Woodstock e do cheiro de chuva na última sexta-feira. Da feira de biscoitos, pão de alho e requeijão que fiz ao lado de minha mãe. Da frase do rapaz na fila do Candeeiro: "Te vejo há dez anos". Debruçado no parapeito, vejo até o mar do Rio de Janeiro. E a nascente do Orinoco na América do Sul. E a posição do bailarino no gestual iogue de Kenio. Vejo Don e o dia passar. E a pungente dor de Émile Friant. "Há tanto tempo que te amo", parece dizer lá da esquina onde sumiram os homens. Apagando o cigarro na neblina, onde homens outros sumirão. E o choro de despedida do casal. O luxo do semileito, o leito, o sono do leitor. Estou, sim, de olhos fechados num paraíso, tamanho o esplendor. Só solitários inveterados como eu para dar demasiado valor especial a imagens e sensações que se correspondem assim. Debruçado na travessa inferior dos marcos da janela, nada mais vejo além de pegadas. Nada além de registros, lugares vazios e histórias cruzadas.

Marco Antonio Jardim

sábado, 25 de fevereiro de 2012

PÍLULA DA DOLCE FAR NIENTE - Número 40

Cena de "Into The Wild"

O sociólogo italiano Domenico De Masi deveria voltar a ser influência dos meus dias. Destes que me disponho a responder a mandriice alheia. Se me consultam é para perguntar quem tem pé de abacate, piscina inflável ou cão sem dono. Indagações sem aparente coerência, como os riscos que faço na palma das mãos e que termino por manchar as roupas claras. Minha medida de duração de tolerância está entre passar pela ponte de casa, em dia claro, e chegar ao observatório da solidão na madrugada semivazia. De um lado a outro, a abulia tem dois mistérios: o da poesia e o daquele que a lê, com as devidas interseções. Daí começo a me vestir de pedaços de panos velhos, para alegria de Raquel. Naturalmente que não estou falando do traje Calvin Klein que vesti no casamento do meu irmão, porque este provoca certa culpa. Nem das roupas neutras dos dias de sábado, vestes que não são ácidas nem básicas. Falo é de me vestir independente, feito ócio criativo. Com um pouco de recato, claro, porque é uma questão de conservação. Dizem que ando mais careta, chupando bala soft, ouvindo Sade, soul, jazz. Outros dizem que quero ser notado, não exatamente amado. Todas notícias de botequim. O que desejo é a junção de certo ar de naturalidade e outro punhado de liberdade. Into the wild. Minha esperança é que voltem a declarar (e difundir) o saudoso hábito do bom gosto. Seria uma ideal e suave indolência, meu dolce far niente. Algumas cenas me ocorrem, corroborando esta sensação: Luan de preto na webcam, Ros vestindo uma boneca pin up, Guto elogiando as vicissitudes da vida, os sorrisos de Mila e Breno no altar, o abraço leve de Jardel, o beijo de Di em sonho e Ana Paula, às 5h, numa esquina fria, falando sobre o suíço Stephan. Saudade de certa juventude e de mim mesmo assim tão frugal. De escrever em meu velho moleskine no topo da montanha. De alguma essência entre o sopro do dia e outro do crepúsculo. De ser célebre pelo que sou, não pelo que visto. De caminhar despido. Chamam tudo isso de geração schuffle, mas estou mesmo é retirando a roupa toda, retrô ou vintage, pra caminhar cantando, pensando nas invenções dos séculos. Cinema, rádio, avião. Foguete, biquíni, psicanálise, comunicação. TV, carro, globalização. Amor. Tiro a roupa porque fico me perguntando sobre certo torpor de minha essência, bem-estar, conforto e equilíbrio. Tirei a bermuda utilitária sem grife, a camiseta verde com estampa de estêncil, a cueca de listras e ando nu. Se criarem um jeans humanizado e eu perceber que estou, de certa forma e fato, transformado, volto a me vestir. Por enquanto, vou revolvendo a memória e fico tentando entender o que aconteceu pra eu digerir. O presente soa como um país estrangeiro, muito bem postado em seu terno cortado de viés em morno tom de azul. Meu irmão casou e me perguntam se não farei o mesmo. Sorrio em canto de boca e digo que, quem sabe, um pouco mais ao sul do tempo, depois de rodar o mundo. Sou só um cara jovem, de trinta e poucos anos, em que a única extravagância é ficar nu. Minha impressão de futuro é olhar o horizonte do alto, por vezes com um cigarro aceso, sem a pretensão de ser antena do futuro. "O futuro não será dos velhos cardeais, nem dos velhos políticos, nem dos velhos magistrados, nem dos velhos policiais. O futuro pertence aos jovens", escreveu o cineasta Pasolini em 1973. Eu sou, então, esse passado desataviado e um futuro, quem sabe, desarmado, desafetado. Nu e cru: sem disfarce.

Marco Antonio Jardim

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

PÍLULA DO LEDO ENGANO À PAIXÃO - Número 39

Eu, apaixonado

"Por que morrer com a desgraça do sofrimento? É melhor morrer por envenenamento". Recordo desse posicionamento pessimista de um documentário chamado "Jogo de Cena", carregado de olhar incrédulo, de cor negra, porque me faz pensar no cessar da consciência quando alguém escolhe não se apaixonar. Os cândidos creditam, ao termo paixão, os bons, ternos e belos sentimentos. É como enamorar-se perdidamente pelo firmamento. Por um espaço tão cheio de existência que tudo parece, deveras, mudar de cor. Nada tão próximo assim dos termos do amor, mas os apaixonados guardam relíquias, devoções, lembranças e recordações das estrelas. Sensação parecida me provoca o antigo apartamento de Cecye. Aqueles cômodos têm um inteiro significado de retiro particular. O chão de tapulho arranhado, o pufe de couro, a samambaia. O mousse de maracujá com sementes, a janela de onde se via o parque, a sombra boa de Thiago e o All Star de Indhira. A figurinha gasta no guarda-roupa vazio, onde se lê, de Maryse: "Nunca mais, nem morta, não quero, não posso, não devo. Humm...Então tá". É paixão. É deixar-se de existir para escutar aqueles passos aguardados no corredor, rememorar longas conversas no sofá, vendo a luz da tarde cair num sorriso franco. Até a cor cinza-cobre no centro da cidade parece ter algum encanto. "Se esta rua, se esta rua fosse minha...", cantou, chorando, uma personagem da vida real, num pedido de perdão. Ah, as fraquezas da paixão. Já é manhã de Carnaval, sento na cama vestindo uma samba-canção com estampas, tomo um copo com leite gelado e faço anotações no diário amarelado. Afirmam que pareço ridículo assim, mas sou daqueles que foi acometido pela conjugação do verbo apaixonado. Eu ainda estava desfiando o rosário da solidão, mas...e aí? Como fugir desse clarão repentino, misto de silêncio e de um olhar demorado, embevecido? Como se qualquer coisa dita fosse, assim, uma façanha. "Faça o que você ama", gritou a sanha da propaganda do Blackberry em canal fechado. Num dia, o cheiro do capeletti tomou o vácuo, no outro, verduras grelhadas atenuaram o calor. Os sentidos parecem ficar mais apurados quando se empresta paixão até a momentos de dor. De gusto ou palatare, provo as iguarias destes dias sentimentais. Quesadilla florentina no Blanco's e pão de três queijos com almôndegas, peito de peru, bacon, cheddar, molho de cebola agridoce, rúcula, azeitona preta, pimentão e cebola roxa do Subway. E provo das largas palavras contadas por Leo na tarde inteira. E uso o coração como expressão maior da cabedeira do meu pulsar. Os apaixonados são tão assim, piegas. Veem libélulas como há anos não viam, em forma de alma ou memória. E a luz, outra vez, muda de tonalidade em meio às pessoas quaisquer apáticas que viram as esquinas, as cidades. Paixão é como fim de tarde. É o tempo eterno entre um "olá" e outro "até", e o hiato repousado entre eles. Paixão: parece mesmo ter um significado igual ao eco do som da razão. E ao único gesto exato e humano que conta uma completa história. Das quinze às três horas da manhã de domingo. Tantas outras vozes catalisadas ali, em torno de uma camiseta rosa ou da voz de Marlua. Parece uma busca vibrante, amotinada e nua pelo sentido da vida vigente. Ah, essa apaixonada gente. Por que, então, não pode ser suficiente? Por que não colocar os sonhos bons no caminho daqueles que são descrentes? Por que, então, não ficar mais tempo? Revisitar o vento com esse ar de romantismo. É só apreciar meu novo corte de cabelo, meu magnetismo, meu prazer de viver. "Sob o manto da noite que me cobre, sou o senhor do meu destino, sou o capitão da minha alma", declamou um ser apaixonado. Os críticos afirmam, roídos de inveja, que ele perdeu a individualidade de tão fascinado pela vontade de ser. Ledo engano dedicado à paixão. Na minha reticente visão, creio que é só um desejo de abrandar a alma em rigor. Vai entender se não estamos nós, os apaixonados, falando mesmo é de amor.
Marco Antonio Jardim

sábado, 4 de fevereiro de 2012

PÍLULA ONDE A carNE naDA valE - Número 38

Colagem de Bäst

Onde a carne nada vale, nada mesmo poderia ser mais transformador do que acreditar na tradução atualizada e literal desse carnaval que a gente vive. Mas nem tudo está conforme o costume geral. Tem aquela história cristã das festas regidas pelo calendário lunar, mas o fato é que ninguém olha muito pro lado de lá. Nem abrem concessão às minhas historinhas contadas, requentadas, repetidas, tão liquidificadas que parecem invenção. "Em pleno 2012 e vocês ainda dão credibilidade a Marco Antonio?", questiona Ana Clara, com sua altivez usual. E quando o usual é a única frequência, só se admite o extraordinário quando este atinge a essência. O mundo não enxerga a mim, nem a você, Ana Clara. Olha pra Berlim, Nice, New Orleans, Veneza, Toronto, Rio, Recife ou Salvador (sem policial). Seja onde for, bocas, peitos, coxas, bundas e paus. Cada vez menos, o olhar do mundo sente músculos involuntários. Um artigo na internet até perguntou se ainda existe amor. Em quartas de cinzas, o que rima com o mardi gras é sexo casual. E cheiro de frango assado, temperado ao gosto dos pernambucanos. Ao gosto dos umbus de Larissa. A outras frutas que eu desejaria chupar. No deserto da alma da cidade, o que há de sobra é paladar, depois de outros sentidos para assaltar. E os tufos no asfalto, quase Arizona. Lugar de abandono. Poucas esperanças. Algumas nos textos de Lya Luft, outras no livro que o taxista lê. Mas se a significância for a renúncia, é nesse bloco que desfilo. E determino a roupa de baixo (que já levaram), a mídia de impacto e o efeito da ilusão. Da história da doce lichia a outras fotografias, é o que danço. É o fado do carnaval. Não sou pop, não tenho clipe no Youtube, não estou no BBB, não sou convidado ao Circo Voador, nem sou amigo de Madonna. Tenho palco embaixo do chuveiro, minha bermuda é Riachuelo, faço ritual para o cabelo e não sinto a menor empatia pelo público juvenil. Mas o que melhor sei fazer, além de ser hostil, é compartilhar. Uma novidade boa, uma promoção, uma carona ou um tempo à toa pra ouvir seu coração. Não convenci? Então vou fazer carão pra ser it-boy, mostrar a cueca ao sair do carro, ser junkie ou l'enfant terrible. Vou pra festa popular, ser do universo big star. Ser iconoclasta, gênio e contestador. Ter um amigo encantador pra um dia inspirador até o fim da Rua do Alecrim. Não tenho iPad, mas ainda é tão romântico folhear um livro de papel. Não tenho apartamento, mas pago a conta de luz das minhas memórias. Minha contribuição, portanto, é muito mais que a manteiga do mês. Não faço a ponte aérea, mas tenho tempo de sobra pra planejar. Vou do Marais, ou da Liberdade ao Paraná falar de estrelas. Sem ambições de trio elétrico, eu sonho. Quase sempre sou eu mesmo nos sonhos, mas desconfio se não serei, de fato, eu mesmo pra sempre, com a respiração cansada, uma queda pelo cinema obsceno e o vício troglodita do cigarro. Minha vida é uma escola deserta e de samba vice-campeão. Nessas ruas vazias, sem fantasia ou plateia na arquibancada, posso olhar o que ninguém ainda viu. Olhar via celular. Onde mais uma louca me perguntaria qual, de fato, é minha viagem, senão aqui? Não somos extraordinários, Ana Clara? "Não somos ordinários, como toda a miopia nos leva a crer", respondeu Eliane Brum em seu lugar. Sou, mesmo sem crédito, uma colagem de um tempo deliciosamente real. Dizer que meu coração tem a idade daquilo que amo, não me soa nada mal. É o carnaval que a gente vive, afinal.

Marco Antonio Jardim

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

PÍLULA DO BOBO NÁUFRAGO AO MAR - Número 37

Tela de Thomas Helbig

No ensaio geral que ando fazendo pra reabilitar meu convívio social, estou encontrando velhos e bons fantasmas. Não são visões quiméricas, fantasia ou coisa apavorante. É gente viva. É água do mar. Ainda que água seja aquela substância fugidia, sem a solidez de determinados afetos. Gente, entretanto, formiga por todo (en)canto. Chamo fantasmas porque, por vezes, parecem vultos ofuscados pela realidade do sol. Pois que não há sol sem sombras. Este, muitas vezes, irregular colosso que faz brilhar os fios meus de cabelos brancos, mal simulados pela tinta dourada de praia. Ao meu lado, Thay, amiga de meio tempo em tempo bom. Tudo que desejávamos era inventar, delirar, sonhar. Ganhar movimentos a outros mundos, levados pelos ventos de outros lances. Ela, a língua e o dialeto da franqueza. Eu, o menino nobreza de até a última gota de sol. Nós, combinação mútua que nem sempre se permuta. E o que tínhamos era só uma rua, uma Pituba de uma esquina a outra. Tentei mudar de passeio, meio-fio, e encontrei Ana, a que cospe frases em salivas repetidas. Eu com o poder de controlar os destinos com meus pensamentos. Só preciso mesmo que eles sejam bons. O mundo assim, creio, deve ser ideal. Nós, beleza sem par, ímpares e desiguais. Ah, se eu fosse tão contra as opiniões que concebo antes da razão, tanto quanto enfrento o bloqueio das questões do meu coração, seria menos bobo, seria eterno verão. Ainda que, de acordo a Clarice, o bobo é capaz de ficar sentado sem se mexer por um bom tempo. Se me questionam porque não faço algo, digo: eu faço, eu penso. E observo a estrangeira de cabelos curtíssimos platinados, pele cor de bronze, estendida com seu e-book numa canga estampada de praia da Resende. "Tonight, Tonight", ouvia. Neste conjunto de espaços, corpos, vidas, pranchas e embarcações, meu papel é coadjuvante. Sou só humano, enquanto os demais são interceptações de luz. Fico sempre assim, meio parvo, sempre branco caucasiano. E sou apresentado a Fábio. Ele, sob a claridade que precede o horizonte. Eu, corcunda, marcas nas costas, bobo. Nós, espoliadores de algum clássico ensolarado, como as canções de Foster The People. Eu e ele distantes na mesma medida da proximidade de Mari e Lucas, em laços quase conjugais. Se penso que nem é tão fácil unir distâncias, quiçá casar opiniões e entendimentos, visto o short jeans puído, prendo o cabelo no alto com cordão em coque japonês, ponho óculos escuros quadrados, sandálias de couro, tornozeleira de macramê, camiseta branca nodoada de bronzeador e vou, mãos espalmadas, despedir-me desses mares de arpoador. Tal qual a máscara estampada na camiseta de Cris. Ela, atleta aos quase 50. Eu? Não sei andar de bicicleta. Mas se não posso ser gringo, neo-hippie, surfar ou ter pele negra, posso ao menos fingir, cozer, criar. Aliar o medo a um pouco mais de fascinação. Pouco samba e um pouco mais de verão. Dormi para além das horas, sozinho, olhando pela varanda de desordenados caminhos. Ele, o sol, reavivado. Eu, subitamente elogiado, sorvendo suco de cupuaçu gelado diante da vista acachapante, da ponta de areia ao mirante, um dia transformador. Num tempo que furtou o brilho da parte antiga da cidade de ruas estreitas e azulejos desgastados para levar luz cintilante à vista do fim da tarde da Concha, entre conversações, Aleeve, garotos vestindo Biodiversity e as saias das Lívias, desnudo outra vez este mundo, camada por camada, como corpo vivo a se encerrar. À beira-mar, ainda tive alguma visão de beleza. Um casal. Eles, macho e fêmea urdidos. Eu, fodido, tramado num cigarro perdido, na tentativa de adestrar meu papel social diante de espantoso céu azul. E as coisas desejam ser vistas assim, de ave, entre o violeta e o verde suave, e não pelo prisma razoável de quem só direciona o olhar ao sul. Eu, experiência solitária, dei-me o direito de ser vão por um dia. Olhei ao norte, à Savona, ou, até antes disso, à ilha de Giglio, no litoral da Toscana. Mirei ao fulgor do Tirreno para crer numa verdade inventada. Por estes dias quentes, dei-me, sim, o direito de ser bobo e vivi nova vida formada. Bobos são como náufragos ao mar. Têm tempo de ver, ouvir e, o mundo, tocar.

Marco Antonio Jardim