segunda-feira, 27 de junho de 2011

PÍLULA DOS LENÇÓIS - Número 14

Fotografia de James Welling


Vou dar nomes às peças de pano que cobrem minha cama. Tais alcunhas deitaram em meus lençóis e despejaram sobre mim suas correntes de água subterrânea. Enredei-me nestes finos e alvos cobertores secos (e banhados de suor) dos últimos quatro dias de retiro. Pode-se dizer que me viram seminu. Sentiram minha dor lombar, o estalo dos meus ossos, o movimento dos meus membros, o peso do dorso, os sons da respiração ofegante, os restos das roupas de antes, o sono e até o espirro de fluidos corporais. Os personagens tais, depois de passados os dias, ainda sussurram. Até então, o hálito quente e o olhar maquiado da ruiva que perguntou no que costumo crer. Eu juro, tenho também por hábito responder. E, por costume, toma-se o vestuário que adotei para esses dias: um pijama caseiro, folgado, leve e verde-musgo. Ou nada mais, a não ser uma peça que cobria das coxas à cintura, para facilitar o coito que cessou. Sendo assim, não preciso dizer nada depois. Minha mãe, admirada da minha resolução de me ligar à cama, arguiu: "Não vai ver o mundo, como sempre faz?". O maior dos mundos que vi tinha a extensão de um olhar que quase cerrou. De repente, uma mensagem que Lucas Dz não lamentou: "A coragem e a ousadia são as únicas que apontam a direção dos sonhos". No silêncio sepulcral do quarto, respondi: "Dormir e dormir são, no dia, meus únicos gestos de ousadia. Sabe o que fiz quando acordei? Dormi outra vez. Encontre-me, pois, em sonhos. Lá que sou todo coragem". Horas depois, Tam sentou ao meu lado para sugerir um lagarto. Mariana planejou ir a Belém. Lélia, de preto, sorriu seu rosto angular. Purki me deu uma caixa de Free. E, de Catherine Deneuve, inquirida sobre os cigarros, parafraseei o desejo: não sou um homem razoável quando deito. Sou a repetição não-interrompida do meu próprio nome, ressoado, quase irritante, por Lelé, para dizer que o almoço estava adiante servido. Em algum momento desses dias, olhei-me no espelho, rosto pálido, olheiras profundas, cabelos desgrenhados. Lavei o rosto, enxuguei com a própria barra da camisa e, de novo, estirei o corpo nos lençóis. Sou a fonética do longo descanso com o canal bucal semiaberto. Não, minha tia Lice, Cristopher Lee ainda vive, murmurei sonolento. Ela ficou a resmungar sozinha. Nem a espinha ereta, menos ainda a cabeça reta, sustentei. Outras três jovens deitaram comigo, peitos caídos sobre as mentes e as malhas das palavras persistentes que não escutei. Posso até contar seus milagres, mas não digo os nomes, porque, nesses dias, fui menos realista que minha própria fome. Dei volta e meia, dispensei as horas que, à revelia, passavam, e, outra vez, atirei meu corpo aos lençóis. Duduh ouviu meus discos. Vitor experimentou minhas roupas. Jardel me abraçou por longos minutos. Nada vi ou senti. Nada me envolvia tanto quanto, nesses dias, os tais lençóis. Brancos, protetores, tão amarrotados quanto apaziguadores.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 20 de junho de 2011

PÍLULA DAS BANDEIROLAS - Número 13

Bandeirolas
Registrei um sonho. Sim, eu parecia estar dormindo, com as imagens de mera fantasia se constituindo em meu espírito. Transcrevo o ato em público, para dar a ele melhor autenticidade. Era início de tarde de domingo na praça Tancredo Neves. Apesar do contínuo e agitado vento frio, a luz que apanhava a paisagem num movimento súbito, num lance de vistas, tinha um semitom que nem mesmo o sol adivinharia suas pistas. O tempo provocava alguma saudade. Creio que porque eu via me vendo nas crianças com chuvinhas nas mãos. E no senhor distinto, inconfundível em seu terno bem cortado, de alfaiataria, sustentando-se, por uma das mãos, numa bengala de junco, talvez cana-da-índia ou madeira de lei, e, em outra mão, segurando o braço de sua senhora. Os mais jovens, e mais alheios, caminhavam, de um lado a outro das aleias da praça, apressadamente, sem as sombras das bandeirolas notar. Uma sinfonia inteira de bandeirolas tomava o céu como mar, da praça ao vento, ali perto da igreja matriz, onde ergueram uma provisória vila de pau-a-pique a contento. A incomparável luz do sol derramava sua sombra de dúvida no largo e no asfalto até o piso português preservado no Jabur, onde me sentei para ler o tempo que passava entregue e nu. Aquele reflexo, da cor de um corpo em outro, fazia minha lembrança turvar. Eu ali, como numa quermesse de interior, ao lado da ciranda, da quadrilha e das fitas do pau-de-sebo. Vestido em camiseta branca, colar de cordas e tranças, calça solta, sandálias de couro, bracelete indígena, feito um vinho de cajú, da cor das ripas e do barro cru, a rememorar o quarto colorido de Marissa. Ainda que não escutássemos qualquer forrozeiro, o que vinha à mente eram os trechos de poesia de cordel, escritos a lápis nas paredes, em alemão, inglês, francês e outras línguas mortas que não mais sei lembrar. Tive apenas a sensação de que parte de minha formação moral estava lá, sob as bandeirolas. Fui chamado ao arraial para proferir um discurso. Usei de boa retórica, fiz gente rir e chorar, e terminei no jargão de que a paz do domingo começa em meu coração. Digo jargão porque tive que acordar da fala estropiada e as coisas no mundo da tarde materializadas pareciam um tanto entornadas, como a água servida da bacia aos pés do trovador. Na escadaria do casarão 116, o trovador era um sanfoneiro solitário, cego da retina, que fez da paisagem sonora minha declaração nordestina. Fiquei a conversar com Leli, que havia voltado do Canadá, e que, de lá, jamais tinha visto, em profusão, pequenas bandeiras hasteadas no ar pelas tiras de cordão. Ela me falou que as pessoas se apegam ao frio para ver o mundo se transformar. Eu já prefiro ver o sol brilhando assim, na praça, na seda do papel refletido pelas fendas. Foi este meu leilão de prendas: no lugar de pretender ver disco voador, um campo de roseiras e milhares de borboletas voavam, e a grata presença de amigos que acompanhavam a procissão. Purki e Di dividindo o saquinho de pipocas. Tam e Nai de óculos escuros. Clarinha com uma tiara de bolinhas de São João. Em lugar do Sauvignon Blanc, quentão. No cardápio, nada de fettuccine assim. Comíamos amendoim. Sem molho branco, sem noz, pimenta ou manjericão. O sabor era de infância e maçã do amor. No pouco tempo que restava, antes do cair da tarde, vi renovar e brilhar um sorriso em duas meninas gêmeas vestidas de chita, estampadas a cores inteiras, como as bandeirolas sobre as fogueiras. Cumprimentei o rabequista Daniel, que acompanhou minha vista ao céu pontilhado de aquarelas. "Quais cores você vê nestas formas que voam?", perguntou-me. Pois que vejo primeiro as bandeirolas amarelas. Tudo o mais, ao por-do-sol, pareceu ainda fantasia acalentada. Tão fora que seja dos costumes quanto, da igreja, a badalada.

Marco Antonio  J. Melo

segunda-feira, 13 de junho de 2011

PÍLULA DO DOMINGO - Número 12

Eu no domingo

Enfim, ei-lo que chega: o despertar. Acordei, contente com minha própria sorte e mais forte que o habitual. Tirei do sono também um desejo, quase uma real ambição. O de fazer o tempo parar. Sentei na cama e respirei o ar pelo nariz. Prendi o tempo no pulmão, calcei as meias, vesti o roupão e me enrolei ao cobertor. Ora essa, hoje, por favor, seja domingo também. O que pede um cachimbo para tragar este tempo e além. Aspirei, de novo, a fumaça do frio que sentia e expirei o dia para não fazê-lo cessar. A luz no quarto parecia cinza verde, ou malaquita. Não, cinza azul, azurita. Da cor das paredes, azulado. Ou azul de cobre, quase dourado. No sentido próprio ou figurado, porque meu cachimbo é de ouro, feito um estouro de balão. É que acordei assim, apaixonado, inteiro coração. Arrebatei a multidão de minha casa, despertei o pequeno grande Ícaro, o fiz tomar um banho, um café em xícara branca e o levei à franca manhã. O fiz como se tivesse passeando a mim mesmo, só para ver no rosto dele um sorrir. Ícaro é um touro valente, um tenente. E eu sou seu capitão. Segurei em sua mão direita, porque a esquerda estava dedicada a Quel. Quanto apreço em vê-la, como ver o domingo nascer e morrer. É que ela me enxerga maior, ou melhor, e depois diz que não sei tão bem querer. Amiga vigorosa, inteligente, que olha o tenente ainda frágil de mãos dadas com o capitão. Ela, que é tração sobre o dia, e eu, o capitão ainda fraco, que poderia cair no buraco. Ela que esteve no Rio entre a gramática e a projeção, a praia à noite e o filme de Almodóvar. Quel e seu abraço partindo em pleno domingo, sem pano de fundo ou moldura. É, do tempo, a mais pura expressão. É meu pão com gergelim, tomate seco, queijo branco e peito de peru. É meu aceno a El. "Como vai, pessoa?", perguntou. Vou indo, findo o dia de ontem. É que sigo hoje com certa fome de viver. Entre uma mordida e outra nas horas que se apresentam, bracejei a Glauber, o vendedor de sorvete. E ainda aos olhos claros de Rhaic. E ao doce beijo de Lucas na manhã terminal. Acenei ao reflexo do meu espírito livre. À minha alma febril. A Andy Warhol, à nesga de sol, aos pingos da chuva que ontem caiu. Ainda estão a brilhar. Ah, vou contar um segredo. Domingo reacende minha vontade de reconstrução. É que vi, um dia antes, o fantástico Sr. Fox na televisão. Hoje, e adiante, nos próximos fins de semana, o que eu quero mesmo é ser John Malkovich, ou Alice. Todos os signos que, um dia, me disse. E antes que eu tome ciência que este dia terminou, responda-me: por que toda essa força estranha, todo esse fulgor? Por que essa manha, manhã de imaginação? Num piscar profundo de olhos, passou. Olhei o quarto em volta, agora escuro, e fez-se um buraco e um muro. Fim de domingo tão breve assim? O buraco é fundo em mim. Acabou-se o mundo. Deitei, dormi, arrefeci.

Marco Antonio J. Melo

sexta-feira, 3 de junho de 2011

PÍLULA DOS PARÊNTESES - Número 11


Para quem julga que não vivo dias de interesses comuns (como já afirmaram), daqueles de cada um, ou que invento uma coisa que se dá como real, tal qual Gutenberg, entre as histórias, os tratados e encontros que conto aqui (como também já divulgaram), meu dia, do nascer ao pôr do sol, é absolutamente regulamentar, fluxo e refluxo do mar. Primeiro, tenho, mais restritamente, uma manhã desaparecida, no tempo, na ordem e no lugar. A crise (quase que efetivamente física) de não conseguir despertar, vai mais longe do que eu posso supor. Chego a cogitar, entre um sono e meio, que, se não irei desempenhar um esforço (por receio), daqueles de sol a sol, pelo menos darei ordem ao tumulto do meu quarto. (Ledo engano). Segundo assim, marco com meu próprio nome que um quarto desorganizado vai do templo interior ao pendor. O máximo do adormecimento que registro é o acalento de um sonho com Sil. Ela me levou para um canto e disse assim, terminante: "Você precisa, de agora em diante, cuidar da respiração". Hein? Então, entre projetos intermináveis (que pouco resta a intenção de fazer), planos emperrados, palavras em revisão, jornal que já passa do prazo e a anatomia incompleta do coração, algumas coisas resistem (e podem dizer pelo dia, ou pelo ar). Sento com o pequeno grande Ícaro para falar de poesia ou traçar uma recuperação (em Matemática, claro), faço uma audição desatenta de Charlotte Gainsbourg e canto baixinho a chanson. Se bem conheço as reações do meu corpo (e só eu mesmo posso fazê-lo), devo estar a qualquer momento, entre o vento e a umidade (já que os mesmos não posso ser). Devo apanhar uma chuva, para não olhar o espelho e (dizer que) foi tudo refletido em vão. E duas boas circunstâncias eu descrevo: Raul passou de bicicleta e voltei a encontrar Natália, a loira (Ah, as esquinas dobradas da vida). Deixaram o exemplar de uma revista sobre a mesa. O título: "O Poder da Autoajuda" (para mim?). Passei um traço em linhas dignas de nota. Numa delas, um escrito sobre os esquecimentos, os enganos dos sentidos e outros lamentos coletivos. Noutra, o trecho de alguma coisa dita, no ar em movimento, por Michael J. Fox (de volta para o futuro, pois). Para quem julga (ser) estranho que eu encare minha mortalidade, até que aprendo algumas lições. Meu jeito de ver as coisas (vai) além das necessidades e das canções. Minha habilidade em (bem viver) dias santos além de outros tantos. Minha recompensa (muito além) da paciência. E, aqui ditos, meus dias (na face externa) dos parênteses descritos.

Marco Antonio J. Melo