quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

PÍLULA CHEIA DE SAUDADE DO MUNDO - Número 34


Tem lugares que lembram vida, histórias, caminhos. Lembram destinos inteiros. Cenas de filme em preto e branco também. Uma brisa que passou pela janela. Amores, amigos, afeições. Tem lugares que são a cara de alguém. Que estão descritos em livros, mesmo os que ainda não foram publicados. Lugares que foram fotografados numa viagem inesquecível. Lugares que se sonha e outros que a gente transforma em quadro com moldura azul. Tem outros que a própria vida vai fazendo. Uma rua, uma casa, uma praça, uma praia. E até uma cidade inteira de memórias. Mas de todos os lugares bons, o melhor é aqui e agora, lembrou Stela, citando Gil. É desse que não quero esquecer. Mundo que penso e que busco por formas novas. Saí da pupa da Pedra do Sal, lugar de bambas, aos pés do Morro da Conceição, na Gamboa, e desci pra cortar o cabelo, jogar pra trás, mostrar o rosto inteiro. Preciso de pele nova, marrom. Pra refletir algum dourado do creme de damasco. Pra interagir, fluir, ouvir o cantar de galo que diz que o tempo passa e o mundo também. Atravessar a estrada do próprio instante. Aí a gente abandona roupas usadas e veste valores. A gente esquece os mesmos lugares e busca um caminho distinto. A gente abre os olhos e só fecha ao bom descanso. É o tempo de travessia. Primeiro numa vila, na Lapinha, depois Belo Horizonte. E aí o destino que liga Minas ao porto, ao mar. Mundo inteiro azul esse. O short jeans, velho, desbotado, bom de usar. Mundo livre esse há. E ser livre é, em meio à angústia da saudade, calar pra ouvir "Summertime" no folhetim. É o centro de Tóquio calado no tempo, talvez 75. É ver trens, aviões e nuvens passando. Dá pra ver a lua cheia a olho nu. Artistas, malucos-beleza, famílias inteiras em busca de encontros transformadores, únicos. Mundo resistente esse. O da força da alma em não ceder à falta de ar. Estou falando de Kiki Joachin. De viver como se não houvesse mesmo o amanhã. De comer o doce predileto, abraçar um cachorro, fazer foto com quem se gosta, batizar estrelas com o próprio nome, acreditar que uma partícula pode explicar o mundo. Mundo de símbolos esse. De eternidade, enchendo a graça da gente de esperança tardia. Mundo de alarde. De topless em St. Bart. De Cris com esmalte fluo. De Dorgi em lítio e entropia hipster. De Mickey e Mallory em "Natural Born Killers". De Dalila atravessando uma faixa de pedestres. De Etiópia, regime híbrido, museu de povos, novela meio esquecida. Mundo inesperado esse. O sumiço de Alex O. e o sorriso de Alex O. num fim de semana em Santo Amaro. Mundo quente esse. Bom de chupar picolé Capelinha no Solar do Unhão e desapegar, como Nalim costuma sugerir. Ela que chegou, abriu portas e janelas, e foi. Minhas irmãs também vão. Meu filho vai. Pra onde vou? Fico tão cheio de saudade que qualquer beijo de cinema me faz chorar contido, meio que escondido pra depois aliviar. Se eu dominasse esse mundo, cada dia seria o primeiro do verão. Cada coração teria uma canção predileta. Toda manhã a alegria nasceria repentina. Esse mundo seria um lindo lugar para se tecer sonhos e sorrisos nos rostos vistos. Em cada céu, um por-do-sol. E garças brancas no amanhecer. Sem sombras de esquecimentos e árvores alheias. Mundo pra se ver gente, regar plantas, amar rosas e preparar-se ao infinito, ao mar. Um dia, num mundo saudoso assim, a gente aprenderia a amar.

Marco Antonio J. Melo

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

PÍLULA DA BUSCA POR BOAS NOTÍCIAS - Número 33

Imagem da Praça Tahrir, no Egito

Busco uma boa notícia. Ainda é mais cômodo esse percurso do que ser o poeta da esquina que recita versos pra uma multidão que só deseja as vestes. Conheço pessoas, por exemplo, que não sabem que o Haiti é aqui, na América, e não na praça Tahrir. Ainda me impressiona saber que os habitantes de Port-au-Prince, capital do país sem nação da Ilha de Domingos, estão no limite da barbárie. Ainda fazem fogueiras alimentadas com corpos. Os "fortes" matam por pouco. Os "fracos" dormem pouco, nas ruas, longe dos restos da cidade e perto uns dos outros, na vã tentativa de evitarem a morte e o roubo daquilo que não mais têm. Parece ser a volta dos tontons macoutes, agora sem um único Papa Doc. O Haiti é um lugar ou um furo? Porque os do Egito se satisfazem em cima do muro. Procuro uma boa notícia. Um registro sísmico da alma. Para sorrir como Dona Tereza. Uma gargalhada farta e genuína, mesmo sob o som da chuva no telhado de zinco. "Dá água na boca", justifica ela sobre o riso alongado. Na pequena TV, ligada na cozinha, enquanto Dona Tereza servia bolo de erva doce, via-se uma reportagem sobre duas ossadas encontradas na Espanha, datadas de 6 mil anos atrás. Ossadas de duas pessoas que estavam abraçadas, num suposto vínculo de amor. Afeição, querer bem? Ou atração, satisfação? Descubro uma boa notícia, uma resposta aguda a uma pergunta astuta. Mas nem sempre o que escrevo ou o que sou desperta sentimentos semelhantes. Para Di, o neologismo cunhado (e mal dito) é chamado de "pilulismo". O que significa - ainda que sob circunstancial mas cruel sarcasmo - algo que não lhe parece claro. Ou clarividente, como diria um bom amigo, outra vez aprisionado. Talvez, para Di, não seja tão óbvio que eu esteja me referindo a Di Cavalcanti, imerso em dúvidas quanto à sua liberdade como homem. São as armadilhas do senso comum. Porque falo mesmo para confundir, enquanto ele continua estando, não sendo. Divulgando notícias, enquanto desejo tão somente as boas. "Você tem uma sensibilidade, uma peculiaridade comportamental, uma forma de escrever caprichosa (caprichos supérfluos explícitos e tal). Às vezes, isso vaza aqui e ali, e, de repente, você, em seu também egocentrismo, nem nota que se entrega", disse, a mim, William, um bardo às avessas, afeiçoado ao mundo particular. Thalles, homem médio, equilibrado, sem excessos e sem carências, foi ainda mais lacônico: "O que você escreve é uma baboseira. Não tenho paciência". Torno públicas as boas notícias, pois. Em maior número possível, porque me parece que o mundo gosta é de destroços, mais visíveis na madrugada. É uma garagem em pedaços ali, bolsas e sapatos jogados no chão de acolá, uma segunda-feira inóspita adiante. Quanto espaço sufocante. Minha semana, portanto, só começa na terça. É quando cedo ao trivial. Volto à área dos fundos da Casa d'Arquitetura, sento no banco de madeira gasta, fumo um cigarro. Por vezes, Lara, Aline e Ana me acompanham em amenas conversas de primavera árabe ou verão. O sol acende o vermelho da parede sem grafites e as pétalas de flor de pitangueira forram o chão. Nestas horas passageiras, sinto saudade do pequeno grande Ícaro. Não mais o verei por longos meses. Sinto o cheiro de boa comida que vem do andar de baixo. Sinto a sombra de um lugar real. Boas notícias são bem-vindas, como brisa na face em dia quente. E qual dos rostos é o meu? O que espreita o mundo, o zeitgeist, ou o que olha pra dentro, pro espírito do tempo interior? Há oito anos, enviei um e-mail ao codinome Vezzio. Exatamente às 14h56 do dia 25 de janeiro. Do rebordo, eis que ressurge esta pessoa com outras informações e lembranças. Pergunto se o limbo está no mapa dos meus sonhos. Como o que se repetia quando criança. Toda noite, eu caminhava por um campo sombrio, sob a lua cheia, então via um sobrado antigo e uma árvore espessa. Escutava o som de um piano, via luzes acesas e acordava. Que venha desse lugar descascado pelo tempo, desse purgatório, boas notícias. Mesmo que sejam, no fim das contas, um lugar comum.

Marco Antonio J. Melo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

PÍLULA DO QUE FALO E DO QUE CALO - Número 32

Imagem hiper-realista de Alex McLeod

Quero falar de ausências. Falta de grana, de portas abertas, da compreensão de algumas pessoas do meu círculo, falta de alegrias repentinas. Quero exprimir a sensação de impotência, abatimento, de carência e sufocamento. Passa-se meio segundo e quero dizer outros sinais. Do impacto de trinta bombas atômicas. De 200 mil mortos. Dos que ficaram, que agora saqueiam, roubam, estupram e matam. Quero discorrer sobre o estado de vida "solitário, miserável, sórdido, brutal e curto", do qual escreveu Thomas Hobbes há séculos. Da guerra de todos contra todos. Quero falar do embate espiritual com a morte. A velha senhora que palita os dentes, como asseverou Lya Luft. Amarga morte, de semblante falsamente piedoso, que se esgueira pelas frestas do portão da vida e pelo corredor da espera, de cabeça baixa, minando os vestígios do tempo. "A melhor invenção da vida é a morte", sentenciou Jobs. Estamos cercados por este querer. O mundo inteiro está vendo, por cima, por baixo, pelos lados, andando, voando, acenando. Cercados da cessação definitiva. Da imobilidade e extinção. Quero expressar a perda de beleza, de afetos, de cobrir e descobrir, do tempo de paz ou mesmo o de luta. Há muito grito, pouco amor. Quando penso num dia, passaram-se anos. Quero perguntar se ainda há tempo de mudar um pouco o mundo. E quero também afirmar as esperanças. As almas soterradas que são salvas. A motivação genuína em torno das tragédias dos dias. Como uma prece, uma oferenda, um próximo passo. Como um rito de passagem do instante. Do lugar sagrado, do tempo, do bosque e do coração. Do universo em comunhão. E da roupa que foi guardada para este dia. Dos anônimos que desejam mudar, crescer, mesmo que doa. Do respirar coletivo, um ato venerado. Quero discorrer a angústia no entulho da frente de casa. Descer, caminhar, lutar contra o termo. Quero declarar guerra contra a falta de contentamento e o terremoto de alguns graus no assentamento da minha relação com os outros. Quero me conhecer e pensar que passa. Que pode ser um vislumbre iluminado na paisagem triste. Ao som de "Alley Cats" repetidas vezes, quero falar, conversar breve, suave. Amar o que faço, ainda em vida. "Eu queria falar de música e partida", disse Brena, contemplativa. Pois quero manifestar. Flertar com as três gordas meninas. A vestida de bolo, a do velório, a do nada. Quero contar o amanhecer. "Irresistível", descreveu Ana Karla. Quero um dia ser como o dia, inspiração. Apostar no belo do estranho, coser Pina Bausch e Caetano, falar de memória e amor. Exercitar o senso de humor. Para o estranho, dizer: "Obrigado pelo vinho rosé". Quero discursar ao púlpito. Ser político, diplomata e jornalista, historiador e jurista. Ser poeta. Ser. "Vem dormir no meu terraço", convidou Juelton. Vou com robe de seda japonesa, malas Louis Vuitton, tirar a camisa em público, no colo deitar e, sim, deixar falar. Unir os eixos de mim, ao gosto do picolé de amendoim, da camiseta Beach Culture. Filosofar o riso e professar o pedido pra que devolvam meu sol de luz perpendicular. Deixar que um novo alguém pouse os olhos em mim, que me coma e me beba um copo de mar laranja profundo ao navegar o meio do mundo. E se, ao lado desse oceano de ausência, num sopro de solidão, eu ouvir outras vozes falando, quero calar em devoção.

Marco Antonio J. Melo