quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A PÍLULA DE MRS. DALLOWAY - Número 52

Ilustração de Julien Pacaud

Tenho já a primeira frase, a primeira expressão: "Mrs. Dalloway disse, ela mesma, que iria comprar as flores". Talvez esteja estalando língua distinta da minha, mas parece refletir certa proximidade com o mundo. Escutar outras vozes, em outros idiomas, outros gemidos mais fundos. Ter também outros casos. Em todo caso, aconteça o que acontecer, o quanto antes ela quer ser. Neste conjunto de espaços, corpos e seres habitados, que não é mais o mesmo, que há pouco tempo mudou, quer existir. Ter as imperfeições apontadas por si mesma, não por olhos alheios. Não quer união legítima, constituída e simplificada por um elo de metal dourado. Quer amor em excesso. Não quer nenhum destino deslumbrante para celebrações privadas. Este é o sonho de Marcela, não dela. Nada, a ela, é pouco espaço. Ainda que passe o passo de um para outro, ela quer a universalidade, a totalidade de coisas e pessoas. "Então, num fim de tarde qualquer, poderíamos tomar café", convidou Lara, uma amiga. Ela não quer. Sua vontade é fechar alçapão, cortar luz e ar e anular a irritante voz da velha vizinha e seu desventurado gato. Que se afastem os que não partilham dessa filosofia. Vazia é a que não se sabe o rosto, nem cor de pele, mas se agasta, deplorável, com o berro de suas palavras. Ela quer é que se complete, que se transborde sua voz escrita. No fundo quer é momento, espaço-tempo, pessoas. Prefere a sineta do moço dos picolés. "Coco, goiaba e creme! Tangerina, tapioca e doce de leite!", grita sempre, entre pilhérias e momices. A doce festeira Diane chegou a descrevê-la, certa vez, turvando a visão: "Você encanta". Ledo engano. A verdade é que ela se dobra sobre si mesma, servindo tão-somente de imitação da vida. Como mariposas e libélulas que por agora vêm surgidas. Num instante é nuvem. Noutro é praga e partida. Ela endossa que vai encher os bolsos de pedra, mergulhar o leito de um rio e morrer aos 40. Não cabe mais em si. Deixa-se romper. Cai em si só chuva fina no feitio de confissão. Ela? Solidão. Poesia que mapeia chão e mundo, alívio, triunfo, revolução. Alimenta a alma com alpiste, num jeito explosivo e esquivo de quem, no fundo, nada quer. Ela é a vida inteira em um único dia. Vai a festas para abafar o silêncio, escreve a totalidade das coisas, vai de mulheres e homens, pega pelas mãos crianças e velhos, doendo solidão insistente. "Quem dera pudesse a dor que entristece fazer compreender os fracos de alma, sem paz e sem calma", cantou-lhe Ângela. Sua irmã mais velha oferece ameixas frescas e sabonete de cacau no disfarce de refrescar sua alma. Sua mãe prepara o almoço de domingo. Seu sobrinho nota que ela escuta canções de outrora, mostra-lhe um pássaro morto e pergunta: "O que acontece depois que se morre?". "Retornamos ao lugar de onde viemos", responde ela, alheia. Alguns homens insistem no ato ou efeito de parecerem próximos. Bruno, de longe, vem vê-la. Flávio persevera uma visita íntima. Seu primo Tarlyson a tem por incomum. Um homenzinho giboso a convida para o teatro. Um outro, quase em torcicolo, a devora com os olhos. Um terceiro, anônimo, num gestual lascivo, a aguarda numa esquina escura. Nem mesmo os mais moços e nobres lhe parecem apetecíveis em formosura, como aquele enfermeiro sisudo de todas as noites na estação. "Sua vida é tão banal", aparenta ele, julgando-a na expressão. Até de quem ela almeja apregoar o nome nos classificados ou nos locais públicos, não se faz justo, antes comprometedor. Ela só lê, dos pequenos aos maiores gestos, interpretando os ingênuos pensamentos dos homens. E, observe, seu encantamento de mundo só se faz maior assim. Todos os seus sentidos ali na coluna vertebral meio arqueada, anunciados e falidos, onde se lê, sob ironia mordaz, "Visionary. A tributy to creativity". Ela é como o sol que cobra caminhada rápida depois da escuridão. O mar brando, de maré baixa, que exige saudade do sertão. É, outra vez, chuva fina que dança, reza, moe e lamenta antes de cair. É estrela que só se alcança quando sonham com ela. É pôr-do-sol só para quem sabe ver. É vento para quem vira sua esquina. Para Núbia é cheiro de mato, para ela é tão pequenina que - se cresce - se esquece. É ar fresco arrepiado em corpo molhado. Essência, porque pouco se pensa. Desses sentidos, Núbia, nada ela é porque não é de graça. É simples, comum, mas escrava da culpa moral e do tempo porque, ainda por cima, tem de enfrentar as horas prestando contas pelo ponteiro a "um mundo atento a não perdoar". Ela se despede, então, num exaustivo fluxo de consciência, das pessoas que mais amara na vida. Escreve, antes, duas cartas. Na primeira, conta que sente não conseguir passar por novos tempos difíceis. E que não quer revivê-los. Na outra, nem sequer consegue escrever ou ler. Livre do peso das obrigações e num desfrute pessoal de além carne, já tenho, dedicada a ela, a última frase, a última expressão: Mrs. Dalloway sou eu.


Marco Antonio J. Melo

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

PÍLULA PELO RECOMEÇO - Número 51

Tela impressionista de Van Gogh
No toque da alvorada, depois da perda das horas, acordei de sonho luminoso. Um reencontro com meu irmão Breno, na Chapada. Avivei o texto de sua voz em pensamento, enquanto a luz invadia o quarto. Olhei-me no espelho e vi constelação em minhas costas. Muito próxima do Polo Sul Celeste. Despertei e, sob neblina, eu não estava só. Mulheres campesinas me cercavam, segurando balaios de palha, derramando pétalas em mim. Senti o cheiro, afundando no chão. Cheiro também de pão. Eu vestia o traje menos amarrotado. Vestia minha vida simples. Ainda sonolento, caminhei sob o eco da voz de uma ninfa grega consumida por amor a Narciso. De tudo, ele lhe deixou a voz. "Confesso que eu gostaria que você não fosse o que é", disse pelo fim. Passaram por mim os últimos boêmios e os primeiros operários. Tirei da bolsa o maço de cigarros que não trago mais, joguei ao chão, juntamente com a resposta de não lembro quem, de cor marrom. "Meus olhos marejaram, preciso digerir o que li", divagou o homem sem rosto pelo fim. Tocava James Newton Howard, temas de filmes. Passava o tempo por meu rosto, meus jardins, minha cidade de interior. Refletia meu espírito margeado pela sombra da cerca do Poço Escuro. O clima estava impreciso, entre o frio e o ameno. Sons de folhas secas de milho ao vento. Segui suave, vivo após alguma morte, sem temer que me enxergassem. Naquela rua, no alto de um dos novos prédios, tem uma imensa estátua de anjo. Normalmente brilha ao sol. Sentei num banco da Virgílio Ferraz, por onde, submerso, passa o Rio Verruga, paisagem sem definição. Algum tempo eu tinha, então abri o diário para rever as impressões de Odilon. "Tenho saudade da Cíntia. Às vezes a vejo e a acho linda. Parece pessoa que não vou mais ver", lembrou pelo fim. Ri sozinho, onde meus pés fincaram alma. É que recordei a visita das minhas tias. Sempre carrego a sensação de que será a última vez. É que evoquei o abraço de Kenio. Onde me perco e me acho. Onde para o tempo no mar do coração. Onde me volto às origens, fora de quartos e salas, refugiado em tempo real. É a construção social da realidade, diriam Peter e Thommas pelo fim. Ou falariam de amor. E por discorrer em candura, Adla me procurou. Pomos à vista nosso perdão. A neblina ainda deixava o horizonte um tanto indefinido. Levantei do banco e segui a manhã do meu novo caminho. Passei em frente à Câmara. Gosto de observar aquele velho casarão restaurado, amarelo, a fachada secular, os passos de assombração. Desci pela esquina do hotel desativado, no beco do Candelabro. "Qual de vocês não acha belo quando ele desce, quando deixa tudo translúcido?", ouvi alguém sussurrar pelo fim da lojinha de artesanato. Deixei-me guiar pela avenida, entre estabelecimentos de roupa e de frutos do mar, por cima de folhas caídas, até achar outra praça. Numa das mãos, eu carregava um livro de Isabel Allende, e noutra, uma bebida gelada. Percorrer o caminho assim é como um convescote de manhã cedo. É a tradução de meu universo em algumas boas palavras, a essência do meu entendimento de mundo. Viver manhã assim tem certo sabor. De beijo leve, como o que Duh desejou dar. "I Think, I Love", eu escutava, pelo fim. Pensei que, talvez, Guilherme pudesse estar na sacada da janela. E estava. Semblante grave, analista. Horas mais tarde o vi tão absorto, dormindo no sofá de Ana. Quando acordou eu queria ter dito "Olá, estranho". Pelo fim da voz calada, eu não disse. O céu, já a esta hora, não se achava nublado. Há tempos que não ficava assim. Subi as escadas. Ana que me recebeu. Numa parede da sala, uma réplica impressionista. A cor da luz ali anunciava o passar do meio dia. Raquel me ofereceu uma taça de Cabernet Sauvignon rosado. Na copa, falava-se do Rio. Sérgio lembrou o mármore de Carrara, as construções históricas, o bonde, o burburinho do Santa Teresa, o Montmartre carioca. Renata, de Minas, ensaiou um sotaque peculiar. "Vou te escrever uma lista para você sentir", disse Raquel, sorrindo pelo fim do corredor, apertando os olhos claros. Relembrei o quanto é delicado viver, de uma forma ou de outra, em cada esquina, em cada rua estreita. Luc anunciou o pôr-do-sol. Fomos todos à sacada. Tinha um cheiro de magnólia no ar. Cheiro de nova estação. Já era quase noite, quase frio. Tempos depois, num quarto de hotel, ouvíamos um fonograma e Di confiava singelas histórias. Leandro, o de olhos cor de mel, abraçou-me, deu um beijo em meu rosto e se despediu. "Cuide-se", falou, pelo fim, como um clarão. Voltei à minha casa, ao meu quarto, ao meu tempo de então. No toque do ocaso, entreguei-me de novo ao sono. "Devagar a gente se acostuma a tudo", quase ouvi de Camus, pelo fim da impressão do dia. Afinal, de onde mais vem inspiração?
Marco Antonio Jardim