quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

PÍLULA DO BOBO NÁUFRAGO AO MAR - Número 37

Tela de Thomas Helbig

No ensaio geral que ando fazendo pra reabilitar meu convívio social, estou encontrando velhos e bons fantasmas. Não são visões quiméricas, fantasia ou coisa apavorante. É gente viva. É água do mar. Ainda que água seja aquela substância fugidia, sem a solidez de determinados afetos. Gente, entretanto, formiga por todo (en)canto. Chamo fantasmas porque, por vezes, parecem vultos ofuscados pela realidade do sol. Pois que não há sol sem sombras. Este, muitas vezes, irregular colosso que faz brilhar os fios meus de cabelos brancos, mal simulados pela tinta dourada de praia. Ao meu lado, Thay, amiga de meio tempo em tempo bom. Tudo que desejávamos era inventar, delirar, sonhar. Ganhar movimentos a outros mundos, levados pelos ventos de outros lances. Ela, a língua e o dialeto da franqueza. Eu, o menino nobreza de até a última gota de sol. Nós, combinação mútua que nem sempre se permuta. E o que tínhamos era só uma rua, uma Pituba de uma esquina a outra. Tentei mudar de passeio, meio-fio, e encontrei Ana, a que cospe frases em salivas repetidas. Eu com o poder de controlar os destinos com meus pensamentos. Só preciso mesmo que eles sejam bons. O mundo assim, creio, deve ser ideal. Nós, beleza sem par, ímpares e desiguais. Ah, se eu fosse tão contra as opiniões que concebo antes da razão, tanto quanto enfrento o bloqueio das questões do meu coração, seria menos bobo, seria eterno verão. Ainda que, de acordo a Clarice, o bobo é capaz de ficar sentado sem se mexer por um bom tempo. Se me questionam porque não faço algo, digo: eu faço, eu penso. E observo a estrangeira de cabelos curtíssimos platinados, pele cor de bronze, estendida com seu e-book numa canga estampada de praia da Resende. "Tonight, Tonight", ouvia. Neste conjunto de espaços, corpos, vidas, pranchas e embarcações, meu papel é coadjuvante. Sou só humano, enquanto os demais são interceptações de luz. Fico sempre assim, meio parvo, sempre branco caucasiano. E sou apresentado a Fábio. Ele, sob a claridade que precede o horizonte. Eu, corcunda, marcas nas costas, bobo. Nós, espoliadores de algum clássico ensolarado, como as canções de Foster The People. Eu e ele distantes na mesma medida da proximidade de Mari e Lucas, em laços quase conjugais. Se penso que nem é tão fácil unir distâncias, quiçá casar opiniões e entendimentos, visto o short jeans puído, prendo o cabelo no alto com cordão em coque japonês, ponho óculos escuros quadrados, sandálias de couro, tornozeleira de macramê, camiseta branca nodoada de bronzeador e vou, mãos espalmadas, despedir-me desses mares de arpoador. Tal qual a máscara estampada na camiseta de Cris. Ela, atleta aos quase 50. Eu? Não sei andar de bicicleta. Mas se não posso ser gringo, neo-hippie, surfar ou ter pele negra, posso ao menos fingir, cozer, criar. Aliar o medo a um pouco mais de fascinação. Pouco samba e um pouco mais de verão. Dormi para além das horas, sozinho, olhando pela varanda de desordenados caminhos. Ele, o sol, reavivado. Eu, subitamente elogiado, sorvendo suco de cupuaçu gelado diante da vista acachapante, da ponta de areia ao mirante, um dia transformador. Num tempo que furtou o brilho da parte antiga da cidade de ruas estreitas e azulejos desgastados para levar luz cintilante à vista do fim da tarde da Concha, entre conversações, Aleeve, garotos vestindo Biodiversity e as saias das Lívias, desnudo outra vez este mundo, camada por camada, como corpo vivo a se encerrar. À beira-mar, ainda tive alguma visão de beleza. Um casal. Eles, macho e fêmea urdidos. Eu, fodido, tramado num cigarro perdido, na tentativa de adestrar meu papel social diante de espantoso céu azul. E as coisas desejam ser vistas assim, de ave, entre o violeta e o verde suave, e não pelo prisma razoável de quem só direciona o olhar ao sul. Eu, experiência solitária, dei-me o direito de ser vão por um dia. Olhei ao norte, à Savona, ou, até antes disso, à ilha de Giglio, no litoral da Toscana. Mirei ao fulgor do Tirreno para crer numa verdade inventada. Por estes dias quentes, dei-me, sim, o direito de ser bobo e vivi nova vida formada. Bobos são como náufragos ao mar. Têm tempo de ver, ouvir e, o mundo, tocar.

Marco Antonio Jardim

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

PÍLULA DE UM DIA DE VERÃO - Número 36

Fotografia de J. Henry Fair

Um dia e, após, o outro. Fico em vigília, repetindo a mim mesmo pra essa memória não se esvair com o vento que passa no litoral. Nem sempre esse despertar permanente funciona, mas conto com estranhas contribuições. Conto com sonhos. Ou com a mosca que, de tanto incomodar, só me resta o corpo levantar. Quando sinto o espírito, de novo, livre, uma brisa passa. "A praia passa tudo", profetizou Luísa, olhos semicerrados. E se meus pensamentos caminham no terreno do desinteresse, uma borboleta amarela e preta sobrevoa às 11h, perto dos rochedos do mar. Subo as pedras, mas nem lembro bem o nome do rapaz cor de magma. E se ele, por mim, insiste em lembrar, passáros cantam. Um canto de tal modo absoluto que soa singular. Estou ao contrário do rastro do bom senso na areia? Bobagem. Estas são as pequenas mágicas do dia, tão pouco examinadas. Que explicação então teria o longo e profundo abraço de Anike? Talvez a menina mais linda da noite e do dia. Depois vi um moço portador de alguma perda, mas o que ponderei é que ele parecia hábil, e formoso. E o jovem tão cabeludo ao pôr-do-sol? Pastor de cavalos das dunas. Estava em lótus, sob a sombra das flores de um pequeno arbusto e de uma imensa extensão de água salgada. O mar Cáspio. O mar Vermelho. Ou aquele de J. Henry Fair, do dia e da poesia de depois de amanhã. E amanhã pode até ser que a saudade vá embora. Tal qual gosto de pão de alho. Tão bom quanto rever Rafa, do Odeon. Ou o gosto de canela que Peter, o inglês, fez-me provar. E Cole Mohr? Gosto da cor dos olhos e da sua magra diversão. E a canção "I'm All Over It", de Cullum? "Olá Inocência! Parece que somos amigos há anos". E os pensamentos em ordem inversa? Os caminhos de Ponta d'Agulha; o cinema silencioso da Coroa; o desaguado choro artesanal aos ombros de Milly e Bárbara; o sagrado Graal de uma prece no lugar das sete ondas; as enseadas por trás desse mar alto às costas territoriais; a virada cheia de fulgor e o cotidiano sem interferências artificiais; a espuma branca sob o céu, sob o bronze da pele de Pauline e El., e a luz que eu compus pra você; as águas nos pés, os picos, os olhos encerrados e tudo mais saudade nessa liberdade de amplidão. E se, por breve instante, pensei que acabou, o melhor de tudo foi ter sonhado. Não quero mesmo pecar por apatia. Sonolência mórbida em cidades da costa é o mesmo que estado de letargia, de indiferença. E a minha crença é a que vem da onda ao me acertar. E não é que foi esse vento que me ensinou a nadar? Nada de janela, pois. Ei, olha só o que eu achei. A casa aberta ao perfume da maresia. É minha ciência, minha guia. Ou, quando vejo a linha do horizonte, é a voz da consciência ditando o coração. É a lei natural dos encontros. Ou, tão somente, um dia a mais de verão.

Marco Antonio Jardim

domingo, 8 de janeiro de 2012

PÍLULA DA BOA VIAGEM - Número 35

Em Serra Grande, tempos atrás

O registro exato de um sonho não me sai da cabeça. Havia subido uma serra numa estrada ladeada por mata silvestre. Incrustadas, várias casas de veraneio. Parecia que eu estava no Rio, num velho bairro, Laranjeiras ou Cosme Velho, ao lado de escritores e compositores. Numa curva, perto de uma casa, havia uma árvore gigantesca. Uma daquelas centenárias, como a jaqueira na trilha de volta da Engenhoca, em meio a blocos de concreto da construção embargada. O proprietário da casa abriu o portão, convidou para o almoço. Comida baiana, servida em cumbucas de barro. Depois ofereceu cocadas de tantos sabores e mostrou um espelho de água doce que descia sobre um gramado em declive. Lembro que tinham crianças por perto. Meninos nativos. Por vezes, minha mãe aparecia numa sacada. Nesta expansão de consciência, acordei. A propriedade do que é material ou palpável, fora da mente, é de um tudo tão diferente. Moro no alto do Guarani, um bairro suburbano, onde ainda é possível ver as pessoas nas portas das casas aos fins de semana e um horizonte sem mar. Na minha rua, a Castro Alves, há o mercadinho da esquina, o verdureiro do quarteirão acima, o cortiço ao lado do boteco com mesa de sinuca, o bar reformado ao estilo copo sujo e a casa abaixo onde se vende geladinho. Lá embaixo, numa esquina, um famoso bar de frutos do mar. Tem o moço que conserta bicicletas, o que laqueia móveis, o açougueiro e o do espetinho perto da casa de parede vermelha descascada. Não conheço muita gente, mas aceno pra alguns até a curva do Poço Escuro. Agora, por volta da noite e meia, ainda ouço gente arrastando sandálias, subindo a ladeira. Faz calor, é verão. Minha mochila está pronta pra viagem e aguardo o táxi. Entre um cochilo e outro, estou na estrada. Nai e André dormem nas poltronas ao lado, dadas as mãos. Entre um tempo e outro, estou fora da ordem, abrindo os olhos, aos planos da visão. Não sei bem se habituei à paisagem, mas, nessa autoestrada, de tudo que vi, chamou atenção a cor negra da pele do rapaz que encostou, em sombra e luz, o braço ao meu. Do outro lado da janela do ônibus, tudo é menino, menina, no olho da rua de Ilhéus. Na virada da costa, no alto da Serra Grande e nua, escuto "Girl From Ipanema" na voz crua de Amy. Abro o Carta Vieja aqui mesmo e tomo no gargalo, em memória ao reflexo das outras cores da cidade, mais bonita que em cartões-postais. Em certo tempo parece fogo, em outro parece paz, brilhando o sol a pino na feira, na praça quase lilás. E mais: parece mar. Estranho como está mais claro, aberto e simples. Até a pousada que elegemos, discreta, escondida depois de um corredor, ao lado de um pequeno bistrô de massas e cheiro de camarão. Tudo modesto nesse lugarzinho que não recordo o nome. Um pátio, com estrelas no piso avermelhado, ladeado por quartos fechados, de portas e janelas de madeira pintadas de azul. Por uma escada, Osório, o proprietário, cândido baixinho de olhos claros, leva-nos ao único quarto desocupado. Deixo as roupas sobre a beliche, os frascos nas tábuas embutidas, estendo os lençóis, espalmo o travesseiro e saio. Caminho pelas ruelas, já de tardinha, e, sim, tudo parece muito inocente, singelo, com a cor da terra corando na Concha e brilhando até os paralelepípedos da Ribeira. Praias mais vazias, o pão francês um pouco mais seco, os estrangeiros menos europeus. Ainda está lá o nítido farol, o sinal sob o sol, mas a vida parece mais real. Respiro fundo, porque sei que o mundo, atrás deste pano de cena natural, esconde segredos mais profundos. Deito e espero novo dia nascer. Mostro a polpa da minha mão ao sol. Azeito o sol nas boas vindas da falta que o mar me dá. Nesse início de nova manhã, choveu. E eu sentindo a mãozinha do pequeno nativo em minha tatuagem. E a voz de minha mãe ecoando: "Filho, boa viagem".

Marco Antonio Jardim