sábado, 23 de abril de 2011

PÍLULA DO SONO - Número 5

Eu, apenas dormindo

Se alguém me perguntar o que mais me apraz na vida, responderei: dormir. Aliás, entregar-me ao sono está além do prazer, é consolo. Chegar em casa, de noitinha ou pós-noitada, seja lá a hora que for, despir-me das roupas de cima, deitar o corpo na cama, passar a pele na extensão dos lençóis, produzir calor nas partes sensíveis, um gozo sem cópula. Não há doce mais gostoso que comer a si mesmo em sono e sair do cru tecido de um mundo sem tanto sabor. Por isso que, se interrogam qual o estorvo maior na vida, afirmo, sem mover as pestanas da manhã: acordar. Despertar é como coito interrompido. Não é excitante. Ao contrário, é bem mais sobressalto seguido de suplício. Sugerem que estou débil em minha inversão de valores. Que há de errado no deleite de sonhar, pergunto ao apresentador do Fantástico. Pedem exames médicos, resultados clínicos, terapias e eletrochoques. Compreendam, não acordo às seis da manhã, fato. Digamos que chego a levantar o bom ânimo. Ergo primeiro o dorso, como Moisés levantou no deserto a serpente. Estendo braços e pernas, bocejando. Até que tento expandir. Mas que fazer quando certas partes do corpo permanecem rijas, como a me lembrar que dormir dá profunda satisfação e acordar parece ser aflição, agonia? Para vergar estas partes, só mesmo o jorro de água fria, e os pensamentos em névoa ainda não se pensarão. Sim, todo santíssimo dia eu desperto assim, com certa distração, com as estruturas firmes e dilatadas, com resquícios de polução. Trocando em miúdos, com ereção peniana. As duas estruturas tubulares que seguem o comprimento do pênis, os corpos cavernosos, ficam cheias de sangue. A culpa é do mangue do que ando sonhando. Não tem desculpa, então. Tenho é que me arrastar para a estimulação mecânica do desjejum. Digo "bom dia" com olhos semicerrados, como se dissesse "boa morte" aos encarnados. Penso na roupa, no banho, nas coisas vãs. Tento comer a manhã, ou vice-versa. Resisto. Não funciono às segundas-feiras. Definitivamente, acordar é uma detumescência. Explico: o inverso da masturbação. E o moço do salão ainda grita: "Olha o frescor do dia!". E eu ainda na dureza da forma, me apoiando na parede, a cabeça pendendo para o lado oposto ao da gravidade. Por favor, tirem-me o vasodilatador. Lembro vagamente de ouvir "Far From The Sun", de Bebel. No que me desloca, em júbilo, daqui para o céu da ejaculação involuntária. Ah, o sono. Em mim varia de um minuto a horas, antes de acordar e subir a ladeira do desânimo. Não penso que seja mácula ou profanação, porque meu sonho erótico é como um fim de tarde no murinho ou na embarcação da praia da Pituba tomando sorvete de açaí e cupuaçu. Um contentamento quase impossível porque, do fundo, sei que vou acordar para ter de escutar perguntas intermitentes. De quando em quando, algo como "Você já pensa o que vai fazer com o décimo terceiro?" ou "Por que você nunca transou com Cecye?". Durmam-me! Deve ser o frio que me alimenta a vontade de ficar estirado à cama, roçando com as cobertas, com a consciência, assim, suspensa, tirando do tempo a fadiga de me gastar. Que sensação agradável esta, entre o real e o sonhar. É o estado da bem-aventurança em que vejo cenas sem aparente explicação. Um surdo-mudo dando a volta ao mundo com as mãos; um sujeito quebrando vidros de carro com galhos de árvore; outro homem com o coração em chama; e eu dormindo o sono dos justos na cama. Todo o resto, além das partes do corpo, parece não sentir, mas dormir não causa mal ao organismo. Há algo mais íntimo do que dormir consigo? Ao que se justifica, então, porque dormir causa ereção.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

PÍLULA DA DECLARAÇÃO - Número 4

"Pequena Abelha", de Chris Cleave
Recentemente tive um fim de semana tão abaixo da superfície quanto relativo. Quero dizer contido ou me fiz entendido? Foram dias de sol com poucas nuvens. É como estar na singular casa de Tam. A começar por ela, com gestual largo, reações em alto grau, defesas expansivas e um jeito tão afável de olhar que dá vontade de amanhecer. Sinto isso quando ela me vê. Ou quando observa Luc ou Lilo. Tam é uma conversa inteira, com todas as suas partes, toques, braços e ombros de cada um de nós. Faz movimentos de mãos e dedos que só pertencem a ela. É como uma cena de cinema que tento lembrar, enquanto que, de súbito, ela some sem avisar, só pra ter o prazer de, no meio de tudo ou nada, simplesmente tomar um banho. Talvez seja um arranjo encantador de "relativizar" a vida. Relativizar, para Tam, é a maneira que ela encontra de sempre ver os dois lados. Acredita que até as verdades ditas, ou reeditadas, ou ainda meias verdades, dependem de certas condições. Nada é tão absoluto assim. Vejamos: Sócrates, Platão, Aristóteles e Kant ou a Playboy com Fernanda Young? Lady GaGa ou Beyoncé, quem é mais drag queen? Depilação com cera quente para meninas ou para meninos? Oiapoque ou Chuí? Cão chinês de língua azul ou labrador cor da noite? Cigarro, vodka ou sushi? Baixada Fluminense na Rede TV ou clipes cerebrais do Lab MTV? Tam bem pode ser desordem, confusão, vozeria, como pode decidir bem deitar e dormir. "Disseram-lhe então os seus discípulos: 'Senhor, se ela dorme, curar-se-á'". Lembro vagamente de outras garotas, as do Lid & Cris. Uma coleciona amantes ocasionais, outra não consegue andar de salto, a terceira é psicóloga de salão e uma última vive sob efeito de morfina. Nenhuma delas parecia Tam. Esta última é como uma imaginação sem fundamento, uma ideia vã, incoerente, mas à qual o espírito se entrega completamente. Um sonho, portanto. Luz do sol às seis da manhã em elementos combinados. O Shangri-la de James Hilton com seu horizonte perdido de montanhas do Himalaia. Sede de panoramas maravilhosos e onde o tempo para num ambiente de felicidade, de convivência harmoniosa entre pessoas de diversas procedências. Tam bem pode ser yoga ou dança do ventre. Fruta ou carne. Uma cordilheira, uma pequena abelha ou tão somente a Serra do Marçal. Caminhar ao seu lado é como estar numa trilha campal, num riachinho ou num mar de ondas altas. Bem que dizem que o Shangri-la também pode ser, para uns, lugar assustador e opressivo, de onde se resolve fugir. Mas Tam é uma canção. Talvez "Growing Pains", de La Roux. "Meu coração derrete feito plástico" por você. E os dias desse fim de semana seguiram ensolarados, à beira da piscina, com picolé de tâmara tangerina e seu testemunho final. Nem bem nem mal, nem superior ou inferior, apenas agridoce. Dias de duração indefinida, de transformação. Para Tam, a riqueza do dia está em sua imensidão. Seu verdadeiro olhar assim é minha declaração, é parte de mim. Tam sou eu, ou você. Tam bem pode ser.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 11 de abril de 2011

PÍLULA DO EFEITO - Número 3

Na falta de um sítio eletrônico, de uma observação de valor ou minuciosa apreciação do mundo, na privação do feedback, da fama, da autopropaganda e até da poesia lírica, aquela de arrebatamento pessoal (ou puramente sentimental), que bom é voltar a escrever em algum lugar que todo mundo possa ver. Não tão vasto assim, vá lá. Mas, até onde a vista alcança, as pílulas têm rendido - e os efeitos quase farmacêuticos também. Uma tragada da substância ingerida: o jornalista Luís Salviato disse que o caos de mim desperta interesses. Vai saber, mas Pri França, que também tem se movido pela esfera do mundo, aproveitou pra pedir, direto da Alemanha, uma ligação entre meus pensamentos materializados e seu canal de ideias. Ou seja, nesta coisa de rede, só mesmo minha alma é que não se tornará palpável. O fato é que eu havia perdido o bonde aos 17, quando parei de escrever poesia no verso das provas. Depois disso eu só vivia a firular, iludir, distribuindo placebos com o que escrevia. Como numa defesa de logotipo. Recentemente fiz a de um coletivo de cinema-educação, o Kino. Viajei na maionese de um preparado inativo: falei de conjunção, objetivos comuns, formas geométricas, traços, fontes, cores e mais um monte de receitas para satisfazer o doente. Ops, o cliente. O fato é que minha precisão dava a garantia de que ele teria dificuldade entre escolher uma coisa ou outra. Foi um estudo controlado, mas com a pertinente observação: não gosto de maionese, prefiro creme de leite. Então, depois de longo tempo, as pessoas voltam a tomar as minhas drogas lícitas e afirmam: "Têm gosto de chiclete!", com o mesmo tom de quando eu afirmava o gosto por Biotônico Fontoura (sem Emulsão Scott, pelo amor de Deus!).  As pílulas, sim, são contagiosas. É como ouvir "Empire State of Mind" sem estar na 5ª Avenida, ou fechar os olhos para dançar Zoot Woman e, quando abri-los, descobrir que a pista é a do Zoo. Ok, tenho certo pendor para a autodepreciação, mas o sabor que fica no final é agradável, quase doce. Outro efeito novo é que estão me pedindo posicionamentos. Não insistam, porque quando falei da Subterrânea, por exemplo, foi uma tragédia. Teve quem passasse mal. Lembra daquele "produtor", bem a caráter do deslumbre, a quem chamavam de Gollum ou Sméagol? Pois é, foi um deles. Teve vertigem, cegueira momentânea, perturbações. Então é melhor que eu tenha certa adequação ao falar ou escrever. Cada átomo ou elemento químico das palavras têm de estar perfeitamente combinados para constituir um invólucro destes. Senão desanda, como mandinga. Tem gente próxima que tomou e mudou uma ideia, não migrou pra São Paulo, alugou apartamento novo e riu sozinha. Meu irmão, depois que ingeriu, ligou. Falou de dança sagrada, de mantras, de saudade e, claro, cobrou o agasalho que eu não quis devolver. Nalim cortou os cabelos bem curtos, passou a vender um artesanato mais elaborado, faz doces de gengibre e sabonetes de raízes do cerrado. Minhas cápsulas dão conta até do paradeiro de alguns, como o sulista Zé e a argentina Pâmela (ainda que ele insista em não tomar banho e ela em não usar absorvente). Pílula, portanto, é coisa feita pelo coração. Se existe razão? O que posso afirmar é que tem fórmula molecular. Tem consistência firme, globular. É tão lisérgica quanto uma sexta-feira em Nova York, mas não tão anticoncepcional. “Welcome to the bright light!”. Tradução livre: tome sua pílula.

Marco Antonio J. Melo

sábado, 2 de abril de 2011

PÍLULA DO APAGÃO CRIATIVO - Número 2

Tela de Marcus Antonius Jansen

Quando eu não souber o que fazer nem o que dizer, melhor que eu saia de cena. Provei o gostinho amargo do apagão e atingi o Nordeste. Hora de mudar de perspectiva, fazer outro teste de ribalta. É que fiquei, literalmente, no escuro, quase negro inteiro, de tão monótono meu espetáculo. Então me despedi apressadamente de Pereira, Jadson, outros que não enxerguei os rostos. Andando a esmo, até pensei se não podia acontecer algo fortuito no negrume de uma alameda. O máximo que aconteceu foi eu ter criado imagens de rejeição à tradição. Imaginei que, se alguém me tomasse a força, que preservasse as roupas. Porque agora pago de modernista por ordem alfabética: Chromeo, Delphic, Kleerup, Ladyhawke, Nneka, Röyksopp, Tiga. Nomes tão estranhos e presumidos quanto o meu. "Singin' in the Rain"? Não. "Dance in the Dark", com direito a sample. Nesta escuridão, sou meio que caos afetado, ainda que com um sumido traço de organização. Sou uma tela de Jansen. Ou seja, caótico, urbanamente sujo, descascado, grafitado, tipografado, fotografado sem que me peçam licença e unanimemente desconhecido. Creio que meu subconsciente seja mais famoso que eu. Eu sou o neo-expressionismo norte-americano invertido. Uma farsa burlesca. E Jansen é quase um homônimo, ainda que o nome dele, Marcus Antonius, seja entonado com mais empostação que o meu. Ah, um Jansen em meu quarto. Sem dúvida, seria mais bem frequentado (e remunerado!). Minha cama seria disputada. Haveriam rivais para acalentar meu sono. Mas estou tão embaciado, que não ardo nem em fogo, nem em luz. Pra se ter uma ideia, vaga até, a palavra forte do meu dicionário cotidiano continua a ser sono. Minha consciência está suspensa e repetitiva neste estado.  Recentemente, numa aula de yoga, simplesmente dormi. A intenção original era o exercício da meditação, mas a voz do orientador foi desvanecendo, tal qual meu próprio brilho e ternura. Despertei acanhado pedindo perdão. Eu não pertenço a uma família ilustre ou aristocrata. Não tenho muita cultura ou civilização. Não sobressaio em muitos aspectos e não tive andamento. Sou, por vezes, débil, é bem verdade. Apagadinho da estrela. Ultimamente tenho tirado os turnos para fazer exames médicos inumeráveis. Como se eles fossem constatar o fato e a origem da minha mentalidade franzina. Enquanto que outros, por aí, andam fazendo fila na Tribus. Gente descolada, inteligente, de visual legal, disposta a vender surfwear. Purki, por exemplo, é um destes garotos que figurariam bem fotografando streetstyle no Posto 9. Caso me visse, ele fatalmente passaria adiante, considerando suas alterações repentinas de escolha e sua visão apurada em Paraty. Eu estaria mais adequado aos que vendem mate, escapulário e biscoito Globo. Porque não sou michê encorpado, nem sou gringo e não grito a paquera das redondezas. Salve Ipanema, mas dei pra trás, é fato. Ando nervoso, esgotado, Lilian Cabral em "Viver a Vida". Não tenho passaporte e nunca viajei de avião. Não tenho tesão nem pra trepadas escusas. Sabe o que me disseram da última vez? "Caso queira, podemos deixar marcada a próxima". É nestas horas que revelo o quão meu linguajar é chulo, no que deve diminuir substancialmente a possibilidade de conhecer Erika Palomino. Quem sou eu na noite ilustrada? Nem sei, quebraram a última lamparina do meu poste. Imagine eu me apresentando: "Olá Erika, meu nome é apagão". Ah, a culpa é daquela velha chamada rotina, impondo restrições ao meu espírito criativo. Por favor, façam como no clipe de "Losing My Edge": batam na minha cara agora! Ops...acendeu.

Marco Antonio J. Melo