terça-feira, 30 de agosto de 2011

PÍLULA DO EFÊMERO - Número 23

Fotografia de Jonathan Harris no Alasca

Gilles Lipovetsky analisa o efêmero, o lixo do luxo, o vazio. Eu analiso a felicidade. Aos que me perguntam como estou, respondo, mecanicamente: "Feliz". É uma tese. Enunciada e sustentada. E o que não é? Maricá já dizia que não há homem feliz sem mérito. Veja os meus: chegar em casa cedo, tomar um banho longo, ler sobre a caça às baleias no Alasca, ver as imagens quase em sépia de Jonathan Harris, assistir "O Mundo de Jack e Rose" e dormir em paz. Em minha casa, por incrível que pareça, é que consigo ser o mais social possível. Há uma singular energia de proteção, a começar pelas portas, sem trancas ou chaves. Em casa, definitivamente, sinto-me seguro e diminuo as distâncias, até a que me separa de Crist. Deito na cama, sem pressão externa, e dilato o pensamento com a franqueza que me cabe. O pensamento e o gesto das mãos. Depois de fruir certo gozo, risco as mãos, nesse meu hábito quase obsessivo-compulsivo. E ouço "Paris", do Friendly Fires. Melhor: ouço "Classic", de Adrian Gurvitz. "Got to write a classic. Got to write it in an attic. Babe, I'm an addict now. An addict for your love", cantarolo como se minha voz pudesse chegar a algum lugar. Se alcança, segue às raias das ideias passadas. O alto da Serra Grande, a extensão do mar. Segundos de um retrato que não desbota. As vozes do casal francês do restaurante e a imagem fugidia dos sapeurs. A brisa do andar de cima e o reggae raiz rastejando o chão. Eu, meio que sonhando, projetando minha alma ao passado, no Tororó, no Largo. "Your Love", do The Outfield, em fita K7, com sorvete de açaí e cupuaçu. O quarto da pousada e o mundo azul ensolarado fora dela. Purki, no registro da cena mais próxima da realidade. Di, com a lente mais subjetiva. Nós três, livres e quase inseparáveis, nos azeitando, pouco a pouco, à atmosfera arrastada. Creio que seja um tempo que não se construa mais. Descer e subir a ladeira daquele bairro litorâneo parecia mesmo uma romaria cheia de areia nos paralelepípedos. Uma prece. Nós, tão soltos ao longo dos dias que não nos importávamos de ficar a maior parte do tempo em trajes sumários. No afã das lembranças, era o tempo da disputa dos melhores beijos. E do riso mais alto. Tínhamos uma filosofia tropicalista, uma festa no Canoa, os mares de água doce. Pelo mesmo beco fétido, caminhamos. Pela mesma rua inteira nos separamos. O rosto de Natal, que mais parece um ouriço fundido, arredio, deste meu breve cochilo riu. E encheu meu quarto com cheiro de pinho. Havia uma outra mulher de perturbador silêncio, e surfistas tostados, com gíria e sotaques próprios. Respiro outra vez aquele ar, deitado na cama como que na rede ou sentado na cadeira de tecido cru, ao lado do pé de jambo. Ar de mormaço, que me faz virar o corpo em direção à porta do quarto. Ainda consigo ver Rafael, do Odeon, rosto do deserto, corpo da praia, olhar tão castanho claro e sorriso tão encantador, que eu fiquei ali, quieto, observando ele consertar um ventilador. Solícito, até afetuoso, me ofereceu uma massa no Pirilampo, enquanto o dia clareava e minha visão turvava. Caminhei sem camisa, trôpego das pernas e dos miúdos, mas lindo, com meu cabelo jogado, meio bronze, um típico "Forever Young" do Alphaville. Purki dizia: "Não consigo viver tão intensamente". Di dizia: "Ohh, tão lindo". E eu mal dormia sob a sombra gramada dos coqueiros do outro dia branco, lá em Resende. Eu lia de Baby Consuelo a David Bowie, Dzi Croquetes a Salvador Dali. Inspirações que eu queria fruir. Em meio à escolha da roupa, do colar significado, da bebida quente, dos gritos de alguma intensa liberdade e dos fogos, um abraço demorado e uma oração às estrelas dos que amo. De novo, confundi a saudade com os olhos claros de Crist. E do nome de cada um que me faz vivo. E choveu. Deliciosamente, na Concha, choveu. Vi alguém fazendo yoga. Pareceu Jhon. Eu já estava, há muito, em outro tempo. Decidi voltar só, de pés descalços sobre a terra. Cansado, sim. Mas não o cansaço da tal inteligência abstrata. Não era o peso da consciência do mundo sobre meus ombros marcados pelo sol. Eu me sentia...feliz. Assim, ao fim de agosto, estirado à cama, com um arfar da alma, numa posição ao gênero do mar. Ainda que esse luxo seja um efêmero respirar.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 23 de agosto de 2011

PÍLULA DAS GENTES - Número 22



Existe algo de particular nos dias de Festival. Qualquer coisa particularmente fria na madrugada se sentia. "É uma quermesse de touca e cachecol", definiu alguém na imensa fila de espera. No sentido bom, é como um leilão de prendas ao ar livre. Você bem pode ganhar chocolate ou um beijo que escapou ao canto da boca. E aquele ângulo saliente, no encontro das duas superfícies, é o mapa do encanto da cidade por estranhos frequentada. Definitivamente não é uma boca banguela, porque a cidade fica inteiramente encantada. Gente simples e gente burguesa misturada, convergindo no mapa típico de interior: uma arena, uma multidão. E, se alguém levanta os olhos (e ocasionalmente as mãos), vê-se luz que Paul Gaughin bem poderia amar. É tanta estrela e tanta foto pra contar. Aí tem os espetáculos, os encontros e desencontros, os tipos, as tribos e os índios, os pandeiros, o alaúde, o scratch, e o trem. Às minhas costas, gentes. Todas de bem. A arquiteta e o jovem namorado. O velho com cabelos nas narinas. O quase bêbado, o quase belo, e a fina. Uma adolescente linda e o fotógrafo que finda o olhar em seu flash. As novas loiras de luxo e os microshorts sobre as meias grossas. O casal gay marcando o terreno feliz. E outras tantas gentes tentando respirar ar quente pelo nariz. Nem olho pra trás, mas sei de tudo e todos do que se diz. Ouço as vozes, no contraste do contralto de Frejat. Eu ouço o que desejo. E vejo, como nos sonhos, aquele cara e aquela, dançando no vácuo do gradeado. Eles que estão certos! Os dois me dizem, em duplo som, "hoje você parece belo". Eu, menos estrangeiro no momento que no lugar, vivo, contra o vento, o primeiro ano em que só deixo o tempo passar. E vejo o todo, e o que vi, tanta gente se juntando por ali. Marina, Bethânia, Jardel. Naiara, Dolores, Milena, Leilinha e Quel. Iracema, Suzana, Dedé. Bia, Jamille, Renata, Marcela e Zé. Lívia, Darlan, Cristina, Amélia, Cristian e Robertinho. Cris, Léo, Lucas, Dannillo e Binho. Maurício, Marcelo, Gildásio e Raphael. Agripino, Cecília, Thay, Anuska e Amando. E outras tantas gentes, espelhos da vida, estrelas brilhando. Nomear todas há de ser meu ritual e minha canção. É um povo assim, quase multidão. Gente que formigava os corredores e tendas. Tônico cicatrizante de minhas últimas dores nos pés. Para estas pessoas (e tantas outras inumeráveis), é que refiz o penteado, a roupa e o sorriso maquiado de batom. De mais tempo é que preciso. E meu tempo precisa de mais alma e som. Não parto de nenhum outro lugar, a não ser do bom de mim mesmo. Se é uma verdade e meia, não sei. É que foram dias pouco cartesianos. Eu queria era gente ao meu lado. Gente, um bocado. Não estou nem aí se dizem que é minha zona de conforto contra a solidão, para mim foi puramente real. Nestas ainda frias noites de Festival, joguei meu corpo no mundo e nos cantos, fotogrando as pessoas sem pressa e sem critério. Gente assim, doce mistério.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PÍLULA DA CIRURGIA - Número 21

Capa do disco "Todos os Olhos", de Tom Zé

Bem curioso o significado do verbo internar. Especialmente quando faço uso das expressões mais cruas, digamos assim. Introduzir ou meter-se pelo interior de algo é aquilo que dá a entender. Uma noite antes de ser internado numa espécie de casa de saúde, ouvi "Todos os Olhos", de Tom Zé. Ironia. Outra expressão que consiste em dizer o contrário do que as palavras realmente significam. Lembro bem que, nesta época, eu não pensaria em passar o Natal num hospital. A ceia? Sopa temperada com éter. Tão sutil o sabor, que, como atestariam os antigos, encheu o espaço além mesmo da atmosfera terrena. Não só o fluido parecia hipotético, meus pensamentos também. Eu não sabia se podia ou não comer, ou mesmo ser comido, na antropofagia das ideias, e não da carne. Mas, a indicação do médico era enfática: "Dieta zero!". Pois que fiz valer o SUS e aceitei com alegria minha condição de paciente. De novo, aquele que tem a virtude de suportar, com resignação(!), determinadas incisões. Na enfermaria, fiquei ao lado de homens seminus. O silêncio que impuseram a eles, por variados sinais e sintomas, passava a impressão de que nem representação mental seus espíritos davam forma. Não havia, naquele espaço sem disfarces, ideia de bem e de belo. Carla, uma enfermeira que perdeu parte da voz por conta de uma infecção hospitalar, insistia para eu colocar o vestido vazado de cor esmaecida. Dei de ombros, virei ao lado na maca em que fui instalado feito um fardo estilhaçado pela guerra, e fiquei a ler Baudelaire. É dele, aliás, um crucial pensamento acerca da vida: "É um hospital onde cada doente está possuído pelo desejo de mudar de cama". Hora do almoço! Enquanto eu tentava sentir algum gosto específico do alimento oferecido, conheci os detentos de quarto. W tinha fimose. Nos exames, descobriu também um cisto. Vi quando uma outra enfermeira, esta sem nome, colocou uma sonda em seu canal peniano pra que ele conseguisse urinar. X caiu da motocicleta e feriu o braço. Levou mais de trinta pontos, e talvez demorasse a recuperar o movimento da mão. Y estava cortando lenha e o machado decepou um dos dedos. O corte foi tão profundo que chegou ao meio do pé. Z eu não conheci. Caiu de uma laje, numa altura de mais de três metros, e ali estava, imóvel numa maca durante o dia ou gemendo na madrugada. Todos homens muito simples, que, com suas histórias pessoais difíceis, faziam questão de transformar aquele tempo em riso fácil. Ainda que, irremediavelmente, rissem de si mesmos. Entre eles, fiquei conhecido como "o turista". Diante dos fatos, minha passagem ali era, sim, como um recreio. Eis que chega Lucas, o enfermeiro mais jovem. Perguntou-me se eu queria ajuda para colocar a camisola, questionou a origem do meu sotaque, quis saber o que eu lia e o que escrevia. Acionei meu repertório e ganhei confiança. Tentei um tráfico: "Você me consegue um chocolate e eu te dou... enfim, eu pago bem". Lucas abriu um sorriso saudável. Propício para o momento de padecimento ali instalado. Algumas horas depois, voltou, pediu para eu tirar a roupa de baixo, me pôs numa cadeira de rodas, guardou meus piercings, olhou nos meus olhos, e, repetindo o sorriso, disse "boa sorte", com um traço de zombaria. Levaram-me à sala de cirurgia, fria, cheia de maquinários temerosos. Um anestesista quase ausente pediu para eu sentar e arquear a coluna à frente. Segurava uma enorme seringa e aplicou o líquido no meio das minhas costas. Senti cócegas e um estranho efeito sucedeu. Perdi completamente a sensibilidade da cintura aos pés. Antes de confundir as horas, pareceu-me ter visto minha avó Nita. Lembro ainda de uma enfermeira de semblante encrespado ter colocado meu corpo numa posição inglória, que chamaram de ginecológica. Um cheiro fétido de carne humana queimada tomou conta da sala, o cirurgião ordenou que eu mantivesse a cabeça deitada, o mundo girou e nada mais vi. Acordei. Eu já estava num corredor apertado, aguardando uma troca de plantão, ao lado de uma mulher grávida de olhar perdido. Surgiu à mente, em fantasias esparsas, o fato de que nascem 213.000 crianças por dia no mundo. Meu estômago já ameaçava outros órgãos. Havia olhares mórbidos pelo vidro que separava um corredor do outro. Trouxeram-me um pão sem manteiga e leite com café. Prontamente recusei. Um dos internos perguntou o que aconteceu. Operei a alma, respondi.

Marco Antonio J. Melo

domingo, 7 de agosto de 2011

PÍLULA DA BÚSSOLA - Número 20



Inevitável pensar no futuro, mesmo sob a égide dos dias últimos em que escolhi viver presentemente. Marcus, com seu quase sempre ponderado aconselhamento, disse-me que temos de seguir em eterno estado de tensão. Alexandre, o Grande, o Magno da Macedônia, também ansiava apaixonadamente pelo que podia existir depois do horizonte, à revelia do que lhe apontava Aristóteles, apelando para a razão. Prefiro ser sereno, ainda que também tentando sintetizar, dentro de mim, ocidente e oriente. Tenho, por isso, maior afeição por Heféstion, filho de Amíntor. De toda forma, ambos pareciam muito livres ao tempo e ao amor. Sucumbiram, mas seus nomes ainda têm eco que passeia lado a lado. São a prova de que todo homem pode ser bússola. Todo homem de honra, obviamente. Eu, dedicando meu olhar ao adiante, tento forçar-me a seguir um caminho próprio. A começar pela oração na estrada da manhã. Quando oro, escolho a direção mais clara, vívida e sossegada. Como o orvalho das folhas que ladeiam a cerca do trilho. E continuo a seguir por essa direção que vai dar, como escreveram, no avarandado do amanhecer. Ou sigo até a Barra, observando pontos estranhos em meio à vegetação rasteira sob chuvisco. Na companhia de Adriana, sempre cheia de entusiasmo, Purki, ainda irascível, mas companheiro de boa alma, e a afetuosa schnauzer Nina. Aqui e ali, víamos um pilar enferrujado, uma casa rosa abandonada ou uma fila de eucaliptos. O verde palha do chão no mais completo contraste com o absurdo da paisagem, entregando a passagem do homem, e do tempo, como numa intervenção de Francis Alÿs, rompendo o cotidiano do nosso olhar. Acima de nós, um céu cinza uniforme, quase opressor. Escutávamos Rick Astley. Não seguíamos nenhum mostrador, nenhum ponto cardeal. A única orientação que nos conduziu nessa tarde foi a repentina vontade de chegar um pouco depois das ruínas de Águas do Catulé. Esqueça a cidade em si, com sua pequena rodoviária de tintas gastas, feira livre de tablados vazios e poucas curvas. Fomos direto à casa de Anderson, o pianista. Um homem de, talvez, quase meia idade, mas bonito, de pele preservada e olhar claro. Permitiu-nos fumar um cigarro, sentados em carteiras escolares que se amontoam em sua garagem, antes de nos apresentar à tia. Não lembro bem seu nome, porém ela recordou os tempos em que conheceu minha família na Rua 7 de setembro e aprendeu a datilografar na escola de meus pais. Durante todo o fim de tarde chuvoso, fiquei a observar os rumos, o vento balançando as finas folhas de erva doce, os cachos de banana no quintal e Anderson. Apesar do jeans, do agasalho de gola alta, das meias sob a sandália de couro, ele sustenta um corpo vigoroso, uma voz grave, ainda que entoada com um puxado de s e pausas típicas de quem já passou por Salvador. Afora o semblante jovem, tem um modo de se expressar muito curioso, desenhando um arco em volta da boca e franzindo a testa, como se constantemente risse das eventualidades. Não dirigiu muito a palavra a mim, mas fez-me duas observações reflexivas. "O que você faz?", perguntou-me. E completou: "Você parece calmo". Levou-nos à sala, sentou ao piano e tocou. Entre outras peças, um trecho de "Sonata Patética", de Beethoven. Anderson parece ser, portanto, um desses homens que se guiou por sua própria bússola. Escolheu um norte e se felicita nele. À noite, já de volta da Barra, detive-me mais ao leste. Sentei ao lado de Ítalo e só conversei, desfrutando sua franca companhia. Ainda tenho o hábito de tergiversar, mas ele meio que me conduz a exprimir plenamente o que sinto. Posso até olhar às minhas costas, ao sul, e ele chama minha atenção. É daqueles que me faz encontrar o caminho de volta quando viajo em outra direção. Até tive alguma saudade, por estes dias, de Belo Horizonte, do Café com Letras, da máquina fotográfica, de alguém cheirando a encanto. No entanto, cedo ao tempo futuro. Vivo mais tempo, ainda que não saiba exatamente o que fazer com ele. Cedo à minha voz, aos meus segredos e às revelações. É minha luz em propensão. Minha bússola e minha desorientação.

Marco Antonio J. Melo