sexta-feira, 29 de junho de 2012

PÍLULA A CAIO F. - Número 49

Escultura de Antony Gormley

Tomara que a cidade possa ver a cara alegre, a cor do som distinta no gosto do prazer. Parecia prévia de festejo, Caio. Eram, no entanto, lábios secos, seca no coração de outros, racionamento no regime de Assad. Dizem que é preciso que se suporte lagartas antes de conhecer borboletas. É como uma solenidade colorida, efeito da cachaça jararaca, cheia do chocalho da ébria vida. Depois de alguns copos, outras mulheres e um mesmo desejo fêmeo da vulva ao útero, as melhores histórias surgem aqui e ali, como uma infinidade de possibilidades, como nas esculturas de Antony Gormley. Vi culminância na arte ruge, Caio. Auge na órbita do corpo do garoto de programa. Alterego. Mergulho cultural e estético, afeto sexual. Muito depois da vigília destes satélites artificiais, eu vi um arco-irís. Celeste, de alianças, sem chuva, feito bandeira num circuito da cara, coragem e altivez. Um espectro contínuo que brilhou vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta e anil. Uma parada que não viu desordem, só se viu feliz, com gentes, gêneros, orientações, idades, verdades. Gente alegre, Caio. E todo o sentido da continuidade. Da mulher que cortou um broto alheio para o próprio jardim ao tenente valente que se vestiu com o short carmim. Das poc poc às barbies do Chuí. Das caminhoneiras às femininas. Do (fe)menino bem mais porto alegre que seguro. Dos curiosos aos que usavam brincos rosa-choque escuro. Das duas faces de Eva e "um certo sorriso de quem nada quer", você riu. Do senhorinho esguio subindo a ladeira com seu paletó largo e seu tempo sem pressa ao garoto de sandálias gastas empurrando a galinhota de verduras. O que vi, Caio, foi histórico escapismo, encantamento e ilusão. Vi uma prece ao infinito. Das estradas olhei aos lados por costume e por gosto. As estradas do entreposto do passado, sob sol e vento. Da montação à celebração, foi o que vi. Noutro tempo, via meu pai. Guardava filmes na geladeira. Eu, por vez, colecionava os carretéis. No teto da cozinha sem forro, um imenso montículo de cupim que descia das telhas até onde eu pudesse alcançar com as mãos. Nas tardes de sábado, como esta de agora, cheias de sol, meu pai levava melancia e jaca ao quintal para reunir a família. A nossa rua não tinha tanto comércio e a casa era caiada de amarelo, gasta pelo tempo. Ficava vazia também aos domingos, sem veneração. Ah, Caio, eram estes os velhos e bons sonhos. Nem todos se concretizaram, mas foi bom tê-los. O tempo é este processo profundo de adaptação, descoberta e sobrevivência, sem miopias, sem vassalagens. Morrer, hoje, não basta. Morrer é que é o mal-estar do século. Talvez por isso não tenha me despedido de Elvira. Sei que vou reencontrar sua discrição. Não é conformismo nem princípio de incertezas. Não é nem sequer o pensar em me pensar demais, Caio. É só o imaginar do sentido e do fazer da vida. Pois quando me vi embaixo daquele gigantesco tecido multicor, daquele estandarte simbólico, fiquei com vontade de gritar o que sou ou de chorar em despedida, como fez Clarinha. Só sorri e pensei no quanto as coisas da vida parecem fulgazes, fantásticas e inatingíveis. Eu sou mesmo um clichê ambulante, Caio. Um heure bleu, um azul intenso da França ou, por Alain Bergala, sou o aprendizado do amor incondicional. Em outras vezes sou só impressão. Vez em quando toco pandeiro como Rayza. Toco violão como Massumi, Duh ou João. Fotografo como Purki. Ou desenho rabiscos iguais aos de Xande. Ou me faço jovem ator, como Dani. Geralmente, Caio, escrevo. Cartas. Ou escrevo para velhos, como gritou Sônia nos mesmos sonhos adiados. "Quando escrevo pra você, é como se escrevesse pra mim mesmo", você costuma dizer. Em algumas horas sigo os dez mandamentos desse espírito livre, em outras envelheço. Tenho um pensamento móvel por demais ou o que tenho é culpa. Peço sua desculpa, Caio. Peço pra ver a remissão da minha dívida. Faço agora minha romaria bretã, no afã de dizer que meus dias não eram assim. "E quando passarem a limpo, façam a festa por mim", completa você. Onde fui acostumar meu olhar, hein? Naqueles dois? Marejei os olhos ali, no jogo de cena, nas memórias, na poesia, no cinema de Almodóvar, na música da minha cara lavada, na repartição, para pedir perdão por minha língua incompreensível, por minha letra morta. Eu estava, sim, "num deserto de almas também desertas". E vendo Raul ou Saul, lembrei de Jhon. A calça jeans meio caída, o jeito de cruzar as pernas, a cabeça um tanto baixa, o olhar apertado, oriental, o sorriso inesperado, a fala mansa, mineira, a profunda beleza de pele branca, o abraço eterno e o jeito de pedir um cigarro. Lindo, sempre assim, feito luz natural. Não foi um dia de calma o que vi, Caio. Mas dormi nu, como um arco-íris na cartola. E acordei me perguntando se sou, de fato, imortal.

Marco Antonio J. Melo

quarta-feira, 13 de junho de 2012

PÍLULA DO MAR SEM FIM - Número 48

Tela de Kathryn Lynch

Domingo de decisão, considerando, sobretudo, que é dia de desorientação, que vem depois de outrora, rumando para inumerável infinito. Talvez dilema, embaraçosa situação, como chamar o diminutivo de alguém, passar os minutos pensando se fui correto e o errado se impor. Depois de vir embora, expulso do templo do tempo, melhor assumir domingueiro o espírito encarnado e matreiro com alguma elegância. Ponho os santos indianos de barro dourado de costas à porta, como reza a história de Ariany, e vou. "Seu perfil parece argentino", disse Ed. Um rioplatense à moda antiga, talvez, mas tão malandro e poeta quanto o Brasil ou "bola japonesa no céu do sertão". Tai diz que assobio autoajuda, ou qualquer religião. Digo a ele quê o que escuto e vejo é menos que alienação. "O infinito é tão-somente fantasia", completou. Sentei no banco de alvenaria da praça Nossa Senhora da Luz, olhei a fonte um instante, tentei ler um artigo sobre a tendência do homem natural, acendi um cigarro mansamente, segurei a coleira do cão, e nada respondi. Um vestígio de homem diluído pelo sol parou e afirmou: "É distinto até com o maço de cigarros". Artur, ao contrário, costuma dizer que tenho cheiro de brechó. Lucas apela ao viço da pele. Eu, por minha altiva tez, digo mesmo que não tenho limites nem fim. Tal qual o espaço, infinito. Como quando eu caminhava pela varanda da casa de Tia Zorilda. Um cheiro de quando a vida tarda a passar, da pausa para o sorvete, do jovem casal tatuado passando ao tabique com sua criança de vestido rosa. De quando eu corria pelos cômodos antigos até o quintal de azulejos, ladeando a quixabeira. Ia às pressas à pia de louça talhada para o rosto banhar. Corria a água no rosto como que lavando as rusgas de opinião, as expressões viciadas, os pensamentos vãos. Olhava pela moldura decorada do espelho e pensava: por que justo a mim cabe a obrigação de ser eu? Assim, com princípio, menos infinito do que Deus. Movia-me então, feito síndrome de Mafalda, ao parapeito da janela. Via passar Sussuarana, Pau da Lima, Doron, até a igrejinha. Comprei meu bilhete de passagem ao futuro sem horizonte definido. Na passarela, filipetas propagandeavam cartomantes de óculos escuros. Bruscamente, numa esquina, uma moça chorava agarrada aos seus murmúrios e um homem, com arma em punho, ordenava que outro deitasse ao chão. É o mundo, sem perdão. Tudo que existe, e nem sempre se pensa, é assim...urgência, ansiando por renovada inteligência. Lentamente, sem nenhum traço de pressa, voltei pra casa e dormi, como barco a circum-navegar pelo raio do sol. Chamaram-no de Tûranor. E a tarde foi caindo ali em tom cinza-outono. Em meu sonho, uma bela mulher deu-me pimenta de cheiro, abacaxi e melaço. Um homem, de alcunha Canadá, deu-me carona de volta em sua própria barca de mar. Viagem gratuita de infinitas ondas de alegrias é dormir. "Larguei meus sonhos em alto-mar. Meu peso em ouro para quem encontrar", cantou Luiza de pé sobre a embarcação. Verso esses elementos ilimitados porque nós, poetas do sono, acertamos quando rimamos. Não fosse assim, o trecho deserto da praia do acordar seria só areia com histórias aqui e acolá. Coloquei, última vez, meus pés na água. Vi uma tábua, uma tartaruga, um cão uivando, um rapaz se equilibrando na cerca do tempo infinito e um corpo azul-dourado correndo seminu. Sustentei o olhar em rochedos não muito distantes. Pescaria de fim de tarde. Homens jogavam e puxavam a rede. Outros içavam a isca na linha do anzol e atiravam ao mar. Das canoas ou das pedras, o tempo era o da espera, o da imortal humanidade. "Homens de azul com seus peixes que brilhavam", sussurrou Coco. Despedi-me para despertar. Nuvem na baixa, sol que já não racha. Nuvem na serra, sol que já não terra. Fitei o horizonte e fechei os olhos de brisa e de fronte. Fiz amor com o tempo permanente. Se tudo em movimento é tão consagração e profundo, meus pensamentos também são. Sãos do mundo. Acordei, os olhos em júbilo, superiores a todo limite, muito além da luz do farol. Bem cabia uma profecia, cantarolei baixinho, sozinho. É que sempre que sonho com o mar, parece ser também sempre a primeira vez que o vejo, sem cessar, sem interrupção, como que o coração na maré, vestindo a fé de nunca partir. O mar, quando vejo aos domingos, é coisa que, dentro de mim, não pode ter fim.

Marco Antonio Jardim