segunda-feira, 31 de outubro de 2011

PÍLULA DO TAO DO AMOR - Número 29

Fotografia de Luigi Ghirri

Sabe quando você se sente confortável em ficar consigo mesmo? Alguns chamam de egoísmo, o que, mesmo assim, não diria respeito a mim. Outros apontam a condicionada reflexão do ano e do fim (mea culpa). Prefiro pensar que são os limbos do pensamento. A coluna do meio. A fase de transição. E estou trocando a pele, sem nenhuma camiseta estampada pra maquear o alvo do tom do coração. Estou com Mari Kaoos, trazendo o vento. Ouvindo bossa nova em inglês. Criando gestos simples, exatos, e sei por onde devo andar, bonito e dedicado. Sei que, de tantos, meu irmão Breno é um dos que valorizam este aceno acertado. É um dos que exercitam comigo o tao do amor. Nada de comovente ou afetado, estou falando do tal do amor. O que alivia. Inculto ou declarado. É um imenso esgalho dentro de nós que dá pra meio mundo. E por falar nesta parte do universo habitada, resolvi remexer nos livros, na poeira das páginas dobradas. Separei um de trechos de fé, um outro do Dalai Lama e o de bolso, escrito por Almodóvar, presente de Jhon. Dedilhei os discos e dei por falta de alguns. O "Get Ready", do New Order, uma coletânea de lados b do Everything But The Girl, alguma coisa de soul, entre outros títulos perdidos. Pérolas de confessionário. Como em "Querelle", o francês. Como nos textos de Oscar Wilde. Ou na voz de Jeanne Moreau dizendo que todo mundo mata aquilo que chama de amor. E a paisagem é o porto de Brest. De novo, o tao do amor. Esse culto aos espíritos ancestrais. É como colocar o rosto pra fora da janela do carro, passar as mãos nos cabelos, sentir o vento que chamamos e simplificar a vida neste sinal. É o que diz meu mapa astral. Então, vi Indira, Suca e a pequena Valentina de mãos dadas num passeio. O venerado amor caminhando. Nestas horas nem preciso de cigarro pra descrever estas breves perspectivas. Nada mais de Paris dos cafés, dos maços de Gauloises, do elmo alado dos gauleses invencíveis. "Um dia vamos viver em Paris. Vou te levar ao club showcase. Te apresentar um garoto francês. E, toda noite, observaremos as estrelas". Não, Ed MacFarlane. Tentador seu convite, mas só quero seguir a coragem do meu coração. De algum modo, ele sabe bem o que realmente tem de ser e onde quer estar. Basta o fascínio de me imaginar em outro lugar. Pode ser o Nepal. Sobrevoar Sagarmatha no primeiro dia, o rosto do céu. No segundo, fazer só o que for do meu gosto. Na terça, aprender com os erros, mas não parar de errar. Quarta eu vou tomar decisões sozinho. Quinta pegarei uma estrada alternativa. E sexta, entre um encontro e outro, o tao do amor. Vou riscar minhas mãos com tinta de caneta. Fazer cócegas, cheirar revistas, livros, papel novo, comer yakisoba devagar. O piercing do nariz, tirar e colocar. Esticar os braços pra cima. Respirar e me sentir cinestésico no espaço. Posso até não chegar ao amanhecer, mas tenho um futuro enorme à frente e um pensamento mágico incandescente: nada há de me acontecer. Nada que seja do gosto do caos, do desespero, da lágrima ou dor. Nenhuma perda de movimento. Ninguém bradando o fim do mundo. Os emissários do medo dizem que sou mero sonhador. Que seja, melhor mesmo antever o mundo como um sonho. Ou a mais incrível invenção. "Quem inventa o mundo, o absurdo de acharmos que somos únicos. Quem inventa eu, você, outrem, outrora, a hora, agora". Quem inventou a fé do coração sabe muito da alma, não é mesmo Kaike? É que lá, do alto do décimo segundo andar da linha do horizonte sobre o mar, existe uma alienada chamada esperança, e uma outra transtornada chamada razão. Ali, em meio ao verão, sob os sons das cigarras, sentado na mureta de uma praia qualquer, talvez Itacaré, farei um afago, um carinho. A propósito, rapaz, o tao do amor significa caminho.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 11 de outubro de 2011

PÍLULA DO REAL E DO IMAGINADO - Número 28

Fotografia de Kenji Onglao

Às vezes penso que os dias meus parecem um tanto excêntricos. Eu mesmo chego à conclusão de que lembram roteiros fantasiosos sim, mas nem por isso ruins. A julgar pelo que escrevo, pareço mesmo conduzir as palavras para impressionar, emocionar ou ativar o riso fácil. Ora essa, isso não me daria especial talento? A maioria até sugere que eu lance um livro. Eis que tento. "Compraria todos os seus, se os fizesse", disse Júlia, certa feita. Seria um livro cheio de sabores, a propósito. Uma salada de alface americana, agrião, rúcula, azeitonas pretas, berinjela, macarrão fuzille, passas, tomates secos, verdes e fritos, mozzarella, lombo e frango desfiados. Mesmo com todo este diverso gosto, aviso aos desavisados: os absurdos contados são estranhamente reais, ásperos e crus. Uma noite dessas, por exemplo, resolvi caminhar às 23h, desafiando o silêncio. Um cheiro fétido senti em várias partes da cidade. Urina ardida, peixe estragado, esgoto a céu aberto, lixo apodrecido, rato morto, flatos, ralos e gases outros. Tirei o piercing do nariz pra ver se o problema estava em mim. Perto de casa, um bêbado gritou: "Eu não sou ladrão! Eu não sou ladrão!". E perguntou como fazia pra se chegar assim em Itabuna. "Desce esta rua direto", apontei para a direção do tempo. Em casa, quando liguei a TV, alguém cantava: "Pense no Haiti, reze pelo Haiti". Deitei e dormi. Sonhos esquisitos estes que tenho. Eu dirigia, mas o acelerador não funcionava. Ainda assim, o tempo passava. Depois acabou o óleo e o moço do posto demorou um turno inteiro pra dizer: "Volte depois". Quando passei pelo sentido Rio-Bahia, um homem atirou pedras em meu carro e gritava, enlouquecido: "É meu, é meu! Mas não consigo!". Cheguei em casa e Gil estava lá, vestido com um incomum pijama, revelando o segredo do universo à minha mãe. "Onde está o carro?", perguntou-me. "Creio que roubaram", eu disse, como se soubesse. Imediatamente, surgiu, do nada, Neto, o vizinho do boteco vazio. "Quanto você pode me pagar pra eu dizer?", chantageou. Lembro, ainda, de ter visto, ao longo do caminho impreciso, um pássaro de cauda longa, um homem desalinhado pedindo cigarro e três velhas sulcadas e mudas, que me observavam. E também um pequenino garoto, atrás de um portão, apontando o dedo noutra direção. Perto de Candeias, um outro garoto que chorava deitado ao chão. Vi um professsor travesti ensinando educação física a um anão. Um calendário que comemorava o Dia do Roubo. Albinos assassinados na Tanzânia, para que fossem pendurados seus membros no alto dos cembros. Duas belas meninas siamesas que me ofereceram picolé. Vi Giovanna preparando um jardim no rodapé. Descobri o significado da palavra desfastio. Fui pra uma festa em alto-mar e decidi a hora exata de abandonar o navio. Ganhei de Lívia um butter toffes de caramelo na manhã de um sábado nublado. Charlote cantou fado para mim. Só pra mim e pras estrelas. Tomei vinho com Rachel, saltei os olhos de uma sacada até o distante horizonte da cidade iluminada. Marcamos um café e uma viagem a Nova York. "Você se sentiria em casa", disse meu pai, de algum lugar. Questionei essa possibilidade tridimensional. É que o mundo de fora, que chamam de real, talvez seja uma mera fantasia para escolher. Este mundo que tenho feito, meio torto, tenho tentado mais bonito o fazer. E dispus, bem escrito no diário, em várias línguas, que tudo que passo e sei, sonhando ou acordado, posso escolher ser tão real quanto imaginado.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 4 de outubro de 2011

PÍLULA DA ARQUITETURA DO MUNDO - Número 27


Helder, certa vez, disse algo muito franco, mas raro de eu escutar: "Aprendi com você". Fiquei surpreendido. Não por agitação ou impulso, mas por tentar definir o que ele queria exatamente exprimir, ou mesmo pensar e construir. Sim, acredite, fico sensibilizado com estas manifestações. Deve ser meu renovado exercício de observação dos pormenores do dia ditando outros olhares para também outros lugares, cores, objetos, texturas e projetos. Com vento no rosto e despreocupação favorecida pelo corte de cabelo desfiadinho, meio que me sinto um shaper, sem a pele bronzeada, claro. Mas a favor das ondas, dos sons da madeira de demolição, dos papéis de parede, das cidades inteligentes e de outros aspectos de ocupação. Eu sei, no fundo, que, além daquele horizonte, existe um profundo lugar, aqui, ali, um qualquer lugar. Creio que meu desejo é que o espírito workaholic fique um pouco pro lado de lá, distante da minha sombra. Quero andar sorrindo por um tempo, olhar direções horizontais e verticais, traçar uma rota. Ver chuva e sol na pista. Ver lugares sólidos, uma flor na Venezuela, os Recifes, o São Salvador, e também lugares imaginários, em que nada é e jamais parece ser. Esse é meu cenário, minha arquitetura de ideias multifacetada, curiosa, inclusiva e iluminada. Meu loft figurado. Só forma, imagem e concepção. E quando eu chegar lá embaixo, no canal reformado, vou ver as pessoas tomando banho, sem pudor, e sem indecência também. Um banho de essência com cheiro de invenção. Gente queimada, sarará, num sofá improvisado sobre a água do mar. Vou ver Niemeyer, Weinfeld, Kogan ou Botta a vagar, ao lado e adiante de uma mulher bem vestida, caminhando sob o guarda-sol. E uma outra de calça Neon, bem bohemian chic, passeando pelo farol. E uma criança fofa com cara de choro, à frente do tempo, como num movimento de Berlim, numa cidade em ebulição. E um operário com macacão fluo pedindo água ao vizinho. Meu alterego sentado no jardim, sozinho, de cabelos longos, formando um lótus na posição. Eu vou pro Japão. Transpirar arte, design, gastronomia. Cessar-fogo à correria da esquina da rua estreita. Ver um dândi moderno e pensar que sou eu. Apurar meu senso estético, meu bom gosto e frescor. Ter dia, noite, frio e calor. Preto, branco, luz e escuridão. Passar ao largo das ambivalências e ao lado das casas coloniais demolidas. Eu, pacientemente, sorrindo, esperando, vestindo a mesma padronagem colorida ou o mesmo tom. Ou o que combine e descombine, não importa. Seja lá o expressionismo de Paul Klee, o simbolismo de Munch, o color block de Warhol, o passo, o traço, ou bem mesmo o azul de Picasso. Eu vou, simplesmente, vestir. E, descalço, pisar no gramado molhado. É uma sensação quase indescritível. É como beber água gelada e deixar molhar a camisa. Sensação de verão refletindo meus gostos pessoais e certo universo em mim. Na tarde do fim, ter a chance de ficar com aquele ar de menino que vê formas nas nuvens. Aquelas estruturas de máxima mobilidade e leveza, ou de algodão. De repente, os tons de cinza se chocando. Uma guerra entre o claro do céu e a previsão da chuva. No meio do vão livre, as pessoas correndo com certa aflição. Eu? Fugir de chuva de verão? De jeito algum! Água assim é minha sala de estar, meu pé-direito duplo, meu mezanino, meu avarandar. Saltando entre uma poça e outra, é que eu vejo a água lavando tijolos aparentes, portas pivotantes, puxadores, platibandas, gentes. Daí chego em casa, seco os olhos e as mãos ao alcance, como um bolo mesclado feito por minha mãe e, de relance, está tudo bem. A chuva, no fim das contas, é um refresco de abacaxi com hortelã. E quando ela passa, fica tudo em volta, assim, com aquele efeito de luz do dia sobre a grama do jardim. Tudo tão integrado, como uma boa conversa sobre hoje e amanhã, uma palavra cantada ou uma imensa boutique afetiva das memórias amenas da estação. Lamento não ter visto Otávio, não ter conhecido seu filho, não ter exorcizado o passado antes da chuva. Lamento até o ângulo obtuso de minha irmã Bia ou não ter ganhado esta semana na loteria. Até que gostei de ter ficado em silêncio por estes dias, de ter comido um Bombom de Filé Bistrô e repetido os salgados chineses. Mas nesse meio tempo, eu gostei mesmo é de ter as vezes da arquitetura do mundo. Tenho certa ânsia de ler e reler este sentido das coisas por um segundo. Pressa de viver, dentro e fora de mim. Tantos traços e formas me interessam, mas nada tanto assim.

Marco Antonio J. Melo