terça-feira, 4 de outubro de 2011

PÍLULA DA ARQUITETURA DO MUNDO - Número 27


Helder, certa vez, disse algo muito franco, mas raro de eu escutar: "Aprendi com você". Fiquei surpreendido. Não por agitação ou impulso, mas por tentar definir o que ele queria exatamente exprimir, ou mesmo pensar e construir. Sim, acredite, fico sensibilizado com estas manifestações. Deve ser meu renovado exercício de observação dos pormenores do dia ditando outros olhares para também outros lugares, cores, objetos, texturas e projetos. Com vento no rosto e despreocupação favorecida pelo corte de cabelo desfiadinho, meio que me sinto um shaper, sem a pele bronzeada, claro. Mas a favor das ondas, dos sons da madeira de demolição, dos papéis de parede, das cidades inteligentes e de outros aspectos de ocupação. Eu sei, no fundo, que, além daquele horizonte, existe um profundo lugar, aqui, ali, um qualquer lugar. Creio que meu desejo é que o espírito workaholic fique um pouco pro lado de lá, distante da minha sombra. Quero andar sorrindo por um tempo, olhar direções horizontais e verticais, traçar uma rota. Ver chuva e sol na pista. Ver lugares sólidos, uma flor na Venezuela, os Recifes, o São Salvador, e também lugares imaginários, em que nada é e jamais parece ser. Esse é meu cenário, minha arquitetura de ideias multifacetada, curiosa, inclusiva e iluminada. Meu loft figurado. Só forma, imagem e concepção. E quando eu chegar lá embaixo, no canal reformado, vou ver as pessoas tomando banho, sem pudor, e sem indecência também. Um banho de essência com cheiro de invenção. Gente queimada, sarará, num sofá improvisado sobre a água do mar. Vou ver Niemeyer, Weinfeld, Kogan ou Botta a vagar, ao lado e adiante de uma mulher bem vestida, caminhando sob o guarda-sol. E uma outra de calça Neon, bem bohemian chic, passeando pelo farol. E uma criança fofa com cara de choro, à frente do tempo, como num movimento de Berlim, numa cidade em ebulição. E um operário com macacão fluo pedindo água ao vizinho. Meu alterego sentado no jardim, sozinho, de cabelos longos, formando um lótus na posição. Eu vou pro Japão. Transpirar arte, design, gastronomia. Cessar-fogo à correria da esquina da rua estreita. Ver um dândi moderno e pensar que sou eu. Apurar meu senso estético, meu bom gosto e frescor. Ter dia, noite, frio e calor. Preto, branco, luz e escuridão. Passar ao largo das ambivalências e ao lado das casas coloniais demolidas. Eu, pacientemente, sorrindo, esperando, vestindo a mesma padronagem colorida ou o mesmo tom. Ou o que combine e descombine, não importa. Seja lá o expressionismo de Paul Klee, o simbolismo de Munch, o color block de Warhol, o passo, o traço, ou bem mesmo o azul de Picasso. Eu vou, simplesmente, vestir. E, descalço, pisar no gramado molhado. É uma sensação quase indescritível. É como beber água gelada e deixar molhar a camisa. Sensação de verão refletindo meus gostos pessoais e certo universo em mim. Na tarde do fim, ter a chance de ficar com aquele ar de menino que vê formas nas nuvens. Aquelas estruturas de máxima mobilidade e leveza, ou de algodão. De repente, os tons de cinza se chocando. Uma guerra entre o claro do céu e a previsão da chuva. No meio do vão livre, as pessoas correndo com certa aflição. Eu? Fugir de chuva de verão? De jeito algum! Água assim é minha sala de estar, meu pé-direito duplo, meu mezanino, meu avarandar. Saltando entre uma poça e outra, é que eu vejo a água lavando tijolos aparentes, portas pivotantes, puxadores, platibandas, gentes. Daí chego em casa, seco os olhos e as mãos ao alcance, como um bolo mesclado feito por minha mãe e, de relance, está tudo bem. A chuva, no fim das contas, é um refresco de abacaxi com hortelã. E quando ela passa, fica tudo em volta, assim, com aquele efeito de luz do dia sobre a grama do jardim. Tudo tão integrado, como uma boa conversa sobre hoje e amanhã, uma palavra cantada ou uma imensa boutique afetiva das memórias amenas da estação. Lamento não ter visto Otávio, não ter conhecido seu filho, não ter exorcizado o passado antes da chuva. Lamento até o ângulo obtuso de minha irmã Bia ou não ter ganhado esta semana na loteria. Até que gostei de ter ficado em silêncio por estes dias, de ter comido um Bombom de Filé Bistrô e repetido os salgados chineses. Mas nesse meio tempo, eu gostei mesmo é de ter as vezes da arquitetura do mundo. Tenho certa ânsia de ler e reler este sentido das coisas por um segundo. Pressa de viver, dentro e fora de mim. Tantos traços e formas me interessam, mas nada tanto assim.

Marco Antonio J. Melo

Um comentário: