domingo, 31 de julho de 2011

PÍLULA DA EPIFANIA - Número 19



Quase ao tempo, ando lendo sobre os próximos jogos de futebol, sobre as pessoas que Danuza Leão conheceu em Paris ou viu de perto em Sevilha, sobre o grupo londrino de Bloomsbury, os escritos do século XII, as avenidas vazias da Coreia do Norte, na capital, e o reencontro musical de Caetano e Gal. Em algum dos trechos, não lembro bem qual, a palavra epifania ascendeu, feito um barato total. É, das expressões, uma das quais pouco fiz, nesse eterno jeito de não me espantar. Mas qual a palavra que nunca foi dita ao ar? Diz! Epifania. Lembra uma festa litúrgica comemorada num segundo domingo especial. Sei que tenho um pé fincado num futuro legal, cheio de fé, mas agora escolho uma direção outra qualquer. Talvez o hoje. Este é o cerne dos planos que faço: o dia em que estou. Que hoje, portanto, eu prove o gosto da felicidade. Um caldo com folhas de salsa, no ponto exato do sal. Tanto faz quente ou frio. Porque não sei como será o amanhã, afinal. Porque ainda é tudo tão vazio. E quando a gente está contente e tal, tanto faz o que se passa lá fora. Ainda que possa começar agora, eu, um homem tão sozinho, quero mais é provar do gosto do meu caminho. Enquanto o de outrem, é um nem vai, nem vou. Se tenho receio do meio do tempo que já passou? Ao que leio, não há assunto final. Até me perguntaram se tenho medo de envelhecer. Como, se não vejo sentido nem em morrer? Mas aceito o convite pro chá. Compro uma roupa pra vestir, uma gravata-borboleta, um suéter, um presente pra dar, um licor. Tiro o pedaço de papel do bolso, confirmo o nome da rua, olho pro alto e pra sua. E sigo ao norte, que é pra onde aponta a sombra da sorte e o sol do fim do dia. Ao apartamento de Joana e consorte. Mas, antes, quero o mundo. Quero sair lá fora e encontrar. Meu coração, tão cheio de esperança, atônito e luminoso, atento e forte, não há de cansar nesta busca. Pode até ser um recorte do mundo, mas que seja também um instante de prazer. Com um restinho de sol pra sorver. É que ainda brilha este caminho que nunca passei. E o sol, que atravessa essa estrada, "é o sol sobre a estrada, é o sol". Que eu até esqueça do meu compromisso, com aquilo ou com isso que aconteceu horas atrás. Nestas horas, já no apartamento, com gentes ao lado, sorrindo ou vendo, sei exatamente o que quero fazer. Meu empenho, como disse, é para hoje saber que a vida é assim, com isso aqui perto de mim, e aquela canção de Tiê ou Roberto. No fim, tudo há de dar certo. Investir em transmutação? Será que pra chegar ao meu destino, preciso desse tempo que está por vir, dessa conexão? Penso que não. O horizonte do hoje é muito mais hipnótico. É uma alegria. O hoje é um domingo ao redor deste céu de tarde fria. Epifania. Hoje é meu dia, é meu dia.

Marco Antonio J. Melo

domingo, 24 de julho de 2011

PÍLULA DO 23 DE JULHO - Número 18

Amy Winehouse

Algum tempo atrás, Jhon resgatou e me enviou poesias, trechos, bilhetes de geladeira e frases esparsas que eu havia escrito para ele ao longo do ano em que estivemos juntos. Um destes recortes se chama "Lista de Supermercado". Nesta, eu pretendia "comprar" alguns bens. Óculos escuros para Jhoe, ao estilo it-sunglass Alexander McQueen; uma roupa de baixo nova, porque Jhon estava usando a minha; um chaveiro Betty Boop para Clarinha; uma tese para Nalim, acrescida de algum elemento fitoterápico; um frasco de cosmético para Loli; um beijo para Saulo; e, para mim, mais tempo, fotos e histórias de amor. No balanço geral de um ciclo completado, as indefectíveis listas têm se tornado exigência. Todas elas seguidas de trilha sonora. Jhon, ao enviar a encomenda que solicitei, esqueceu do disco "Frank", de Amy, que Lucas havia trazido da Itália para mim. Entretanto, a canção que me arrebatara, e que me fez ocasionalmente chorar, foi "Love Is A Losing Game", em que ela cantava que o amor era uma perda, em que não se podia apostar. Ainda que declarado, intenso, mas só até o encanto se quebrar. Que possa ser o amor um resignado destino, ainda assim, vivi, acima de inúteis expectativas. Amy não. Ridicularizada pelos próprios deuses, encerrou-se em sua caricatura. "Balzaquiano inteiro, sensível e amadurecido. Tranquilo nas buscas. Demore-se, pois, nos encontros", escreveu-me Joab, para celebrar meu aniversário no mesmo dia em que fizeram de Amy um mito. No mesmo dia em que me apresentaram Rafael, um garoto de 17 que não pertence à sua geração, meia-noite depois de Jamille dissecar o coração. Sabe que não me sinto um personagem de Balzac? Tenho em mim o mesmo ardor juvenil, seguido de certa leveza pueril de quando eu corria do pé da ladeira da Capelinha ao último degrau da escadaria do Amparo do Tororó. Capacidade de sentir, aí sim, tenho em sobra. Se antes eu chorava mar de lágrimas que secavam sozinhas ao por-do-sol, hoje sou rio. Ainda faço como Pessoa, invento amigos, ou, quando menos, companheiros de espírito. Fito o horizonte de buscas, nem sempre de serenas ondas, tais quais os dias invernais da semana anterior. Mas, ainda sou tão feliz quanto o vapor de minhas memórias. Tenho histórias boas pra contar. Os encontros, cada vez menos fugazes, têm sido como que eternos cartazes de cinema para colecionar. Como em "Os Incompreendidos", de François Truffaut, sob as anotações de André Bazin, tão bem recordadas por Quel, que me deu o presente de suas observações. Falou sobre missões, sobre ser mãe e de quando podemos voltar a sonhar em tom maior. Esse dom que se chama conhecimento de mundo e só. "Você fez meu dia mais alegre e profundo", disse ela, aos meus próprios pensamentos interpretar. Com o intento de me ver gracejar, ganhei uma camisa com a seguinte frase em inglês: "How good is to see you smile. At me memories of better days". Lembranças de dias melhores é bem melhor que luto oficial. É pensar que, talvez, só para mim, meus próprios dias valem para ficar na eterna narração confidencial. Eu ou Amy, a perfeita sátira da esperança em nossa alma tão humana? Amy, insana, escolheu morrer. E eu aqui estou. Continuo com esta vida insistente, algo que anônima, um tanto mais diferente do semblante comemorado anos atrás. Entretanto, só mesmo vivo e manso poderia perceber estrelas cadentes como as que vi ontem à noite. Porque morrer, de fato, é um açoite que dói. Mas viver...não.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 19 de julho de 2011

PÍLULA DO INVERNO - Número 17

Escultura gigante de Theo Jansen

Sou um retardatário. Veja bem: não falei que sou retardado. Não confunda, portanto, meu adiamento com o desenvolvimento mental abaixo do normal que outros pares meus têm. Tenho sido tardio, sim, mas, se até o inverno tem chegado fora do tempo, por que não eu? É um frio de desalento que ando sentindo. Confesso que está difícil de perceber os sinais e fazer as escolhas certas, antes do corpo ficar imolado. É um melancólico congelamento o que tenho passado em meio ao silêncio nublado, à meia-luz. Entre o outono e a primavera, quero decidir parar. Porque está faltando idealismo, sabe? E sobrando desorientação. Agora mesmo estou com os braços encolhidos, de tanto frio na alma. Sim, aqui onde vivo faz frio. Não consigo conversar e tomar uma decisão mais definitiva, porque meus lábios tremem. Respiro e, quando solto o ar, meu sopro é fumaça materializando os fantasmas que não quero encarar: tristeza, choro, desespero, preocupação, nervosismo, irritação, falta de concentração, desinteresse pela vida, falta de sono seguida de pesadelos, fadiga interminável, dores e tensões no corpo, diarreia, asma, sensação de doença constante e falta de desejo. Com pesar, porque os agasalhos têm comprovado estes dias assim, em que até os sentimentos parecem gélidos, reforçado por este clima invernal dentro e fora de mim. O suor que desce das têmporas congela. Até o esforço de minha inteligência congela. Ao tempo em que ocorre, pouco se vê a chuva da compreensão alheia. Para os outros, parece tudo normal no meu manual do cobertor. O que consigo sentir, além da privação de calor, é que preciso mudar tudo. Ou quase tudo, que seja. Mas de maneira radical, para ser, depois, real. Prestes a completar 33 invernos, preciso voltar a ter vontade de tomar sorvete, por exemplo. Ou seja, sentir o sol de novo, com ordem, com calma, com vontade. Ser uma escultura gigante de Theo Jansen, ao sabor dos ventos em praias holandesas. Você tem noção do que é ter prazer de sentir brisa? Ou lhe falta mais sensibilidade que a dos meus dedos rígidos? É o inverno, meu caro. Eu fico impassível nesta época, feito um jantar de carne fria. Fico olhando, sem muito significado, sites com listas dos melhores do ano. Bebo em excesso e me retraio em culpa. Ou tropeço num caminho e noutro, feito uma velha magra que conversa sozinha sob o guarda-chuva. Não tenho prazer nem em dançar nas ruas, às duas da manhã, como sempre faço no verão. "Walking on Sunshine", de Katrina and The Waves, era a canção que eu escutava e não ouço mais. Normalmente não faço apologia para que o tempo passe, talvez por medo inconsciente de perder a juventude, mas não desejo mais esta estação. Quero o solstício do verão, o julho do hemisfério norte. Preciso abandonar as roupas e dormir seminu, porque elas já estão tomando a forma do meu corpo. Preciso suar, entende? Feito Lélia em despedida, que parece estar sempre se desligando dos caminhos que levam aos mesmos lugares. E, no fim da festa, sair a esmo dos outros olhares, sob madrugada estrelada, tal qual Lucas, o príncipe. É este o tempo da travessia que quero. Se eu não ousar fazê-lo, serei sempre o retardatário da margem fria do inverno.

Marco Antonio J. Melo

segunda-feira, 11 de julho de 2011

PÍLULA DA PESTANA - Número 16


Minhas pálpebras movem. Não é exatamente efeito da carne dura do corpo, mas é que beiro o anseio de certa beleza pura. Não, meu corpo não é dado a obedecer as chamadas do despertador. Por outro lado, ainda é livre a vontade de minha alma soar a quem mais não acordou. Desejo, sem pestanejar, ainda que como um animal hibernante, ver milagres, acordar, comer, rugir e trepar, sob a garoa, no galho mais próximo. Tremeluzir as pálpebras e deixar passar este julho de fumaça e frio. Comentadores dizem que estou passando por um inverno entorpecido, com este olhar meio caído e a chuva que também cai por fora da pestana. Sem grana, sem impulso. Sem fama ou poder transformador. Com apneias e com ojeriza declarada a este ruído. Sem forças para remover o torpor do corpo sublimado. Nestas horas avançadas do dia, é até bom ter o contato de celular bloqueado. Porque, olhando em volta, as circunstâncias não parecem mesmo tão normais. A polícia vai na direção contrária, os carros também vão, meus olhos até estacionam no meio da cidade parada, na queda da mulher na escada e na pia espatifada no chão. Os ônibus, por hora, não passarão. Da janela, vejo, piscando para não lacrimejar, o quanto o sol é bonito. Rapte-me, camaleão. E não àquela extravagante e esquisita com visual de Madonna atropelada por um caminhão. Ofusca-me. No piscar de olhos, vai ver de mim apenas uma gota de líquido salgado, segregado do rosto ao coração. Depois disso, posso até desistir. Chega de leituras das coisas do mundo. Chega de doença social, de True Blood, de fantasia, de aquecimento global. No fundo, quero ser como os outros que vejo por aí sem pestanejar. Quero ser lindo, rico, branco, jovem, veloz, usar gloss sabor cereja e brilhar sob a luz do sol que viceja do lado de lá. Porém, quando volto ao ônibus, o máximo que sou é aquele que senta no banco de trás, que se esconde, que cochila, que perde o fim da tarde e a abdominal respiração. Quanto tédio! Peguei o caminho errado, então. Esfrego os olhos e a cara com as costas das mãos. Tento entoar alguma oração esquecida, e, depois de piscar algumas vezes mais, minha realidade está, de fato, prostituída. Meu quintal está rachando ao meio, minha mãe anda pensando em vender cachorro-quente no portão e estou recebendo doação de barras de cereal. Virei o rosto de lado, franzi a testa, semicerrei os olhinhos e tratei de encontrar outros caminhos. Vi duas meninas, assim simplezinhas, conversando com um Papai Noel. Deve ser o sol quente na cuca. Ou assumo certo ar de insanidade para ganhar comiseração, ou fecho de vez os olhos ao som de...ah, qualquer canção do Caetano. E, pra não dizer que não falei das brutas flores do querer, do vento, do bolso vazio, revi, num pensamento tardio, Hugo e as histórias mal-contadas, William com as histórias inventadas. Todos tão iguais. Na inquietude dos cílios e seus sinais, resolvi não controlar o tempo, desapegar. Alguém, no entanto, achou de passar por mim sem notar o lampejo do meu querer, provando uma pêra e minha vontade de comer. Posso saborear os frutos, mas não preciso me agarrar a todos eles. Mas, se quiser me dar um pedaço da polpa, disse eu a este alguém, vejo, pela fresta dos olhos, que devo aceitar. Sem o mais ligeiro dos movimentos, sem pestanejar. É só uma vontade de acreditar no que ainda estou vendo e no breve gosto do que estou mordendo.

Marco Antonio J. Melo

sábado, 2 de julho de 2011

PÍLULA DA ESQUINA - Número 15

Fotografia de Wim Wenders numa esquina de Londres

Observe o ângulo. São dois planos que se cortam e formam outro. Podem bem ser duas paredes de um edifício, duas ruas, duas pessoas, duas fases de um mesmo momento. É como se explicam as esquinas sob determinado fragmento de pontos de vista. De um lado, a casa do lago. De outro, a mesa posta, atrás do vidro, com a travessa de arroz com lentilhas, guisado de merluza e salada de feijão branco com passas. De Marcela, o rumor das pessoas que se deslocam. De Dai, a convulsão do rosto em repentinos sorrisos que se esforçam. De Talita, a ciência da galhardia restrita a si. Três pessoas afastadas pelo meio da mesa, mas, sob meu olhar, três esquinas em interseção. Falando em cruzamentos, em meses, aconteceu algo quase espetacularmente inédito. Um ponto em que se atravessaram duas linhas: a do fio do meu sono e a do despertar. Na última sexta, meu relógio biológico me acordou às 5h30. Não tão ao meio da noite, nem ao clarear. Abri os olhos devagar vendo a linha do horizonte se formar. Aquela esquina entre o azul do céu e do mar da parede em meu quarto. Creio que minha mente e corpo entenderam que eu faria uma viagem. Digo viagem no sentido de me deslocar de um pensamento a outro, de me afastar do que me oprime e de me arrastar da cama, porque tudo que dorme parece esquecer de que tem que nascer de novo. É como quando meus pés tocam o chão. A precisa sensação da cerâmica fria bem pode ser um espaço de razoável distância, às terras do sem fim, ou pode ser ao sul. Seja para onde for, do ponto último azul que meus olhos amanheceram até o mais próximo do travesseiro, deixei que a luz entrasse pelas frestas de casa. Fui fazendo o prazeroso e vagaroso ritual de arrumar a bagagem do tempo para pegar a estrada do vento. Partimos, então. Mona ao lado, Júlia ao outro. Tempo e vento, mãe e filha, outro encontro defrontado na trilha da esquina. Mona pelos papeis e escritos aos direitos humanos, pelas causas coletivas, o espelho refletindo a cor de um batom vermelho e um arranjo de flor. Júlia à francesa, cabelos curtos assimétricos, echarpe de vacas profanas amarelas, óculos escuros de tonalidade marrom e as páginas gastas pelos dedos de Carlos Ruiz Záfon. Do Nobel de Obama aos panetones de Brasília, da peruca da guerrilheira à liberação sexual no Islã da submissão, das fotos do pequeno Peu às simples vidas que passarão, esquinas. Das sapatilhas esquecidas na escadaria, dos espinhos aos salgadinhos roubados antes da festa, meu olhar em observação. Vi o alto da colina da cidade se ligando à madrugada, quase ao mesmo tempo e além. Júlia vestiu minha calça de alfaiataria. Cantarolei a ela, em inglês: "Metade do que digo é sem sentido, mas eu digo só para te tocar". Voltei de uma rua à outra, passando pela ponte que liga a alameda ao ar. Dobrei a esquina onde sumiram os homens e fiz um ângulo para, noutra esquina vazia, tudo outra vez começar.

Marco Antonio J. Melo