quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ALULÍP OD OSSEVA - Número 53

Tela de Mari Lopes

"Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e, lançando-se de joelhos a seus pés, disse: Senhor, tem piedade do meu filho que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na água". Trecho das Escrituras, do colo de Sued, que cobre minha mão como luva, como adorno para cada dedo e razão daquele que Oicélc lançou, em riste, a mim: "Você tem algo de autodestrutivo". Qual o sentido do insulto? Eu que passeio pelo mar da Galileia, sobre o rio Jordão, no deserto da Judeia ou acendo âmbar no vasto do meu coração, como permitirei, em poucas palavras escritas, que ele destrua uma inteira argumentação? O que tenho são olheiras, um corte correto de cabelo, nenhuma barba e gratidão, que nada pode contra ambição desmesurada. Daquelas de animal carnívoro, feroz, superior a qualquer homem envelhecido. Eu, por minha vez caetaneando, sou o que sou e não bronzeio pílulas. Quando eu, de fato, envelhecer, vou ler o jornal no banco da praça, vou usar terno laranja e chapéu de abas longas, que hoje não me cai bem. Quando eu envelhecer, tudo poderei fazer. Além de mim mesmo, e do resgate do meu flow, do meu fluxo, serei fêmea, sacerdotisa, monja, mãe ou menina, "minha e não de quem quiser", como afirmou cantando Aissác. Na verdade, nem importa tanto a madrugada que sou. Ainda hei de escrever cartas de amor, mesmo que tenha de inventar um. E que eu dê nome a ele. Senegóid. Que gosta de chuva, de milhares de estrelas caindo do chão do céu. E o que preciso agora? Dormir, para sonhar com alguma fé espelhada na faca afiada. Confiar para desconstruir, deslocar montanhas. E regular o tempo desta cidade de frio cortante e desumano calor. Eis que Ozne nasceu neste mundo de belezas e enfrentamentos, enquanto Ilekim passeava de bicicleta no centro da cidade, enquanto meu corpo não se adaptava nem mais a lenços de papel. Quiçá a resistências e má vontade, rotinas, egoísmo e cegueiras de toda ordem. O que há, de repente, é nascer do sol batendo da janela pro meu rosto. Não é prenúncio de verão, mas é o sol. É um sonho de origem. Nele, há sempre um céu oriental, de azul quase noturno, limpo. Eu levito, as vezes com auxílio de asas, as vezes segurando balões a gás. Estou sempre sem sandálias. Encontro seres estranhos, de variados matizes. Deslizo por tubos diáfanos. Vejo pétalas ou estrelas caindo devagar. Acordo completo, sem princípio e sem fim. Muito mais sinto o gosto de viver. De respirar pela alma, como se houvesse só isso para notar. Isso é que é matéria esculpida em fé robusta, nas pequenas ou grandes coisas, na saúde ou doença, alegria ou tristeza, pobreza ou riqueza, até a morte e depois. Prometo, então, respeitar-me, ser fiel a mim e a Sued, que soprou no mundo que tudo se move, "inclusive o centro". Ainda que iguais a mim, como maldisse Amles, existam cinquenta mil. Só sei que eu mesmo não maldirei do meu destino. Engana-se quem pensa que tive dias assentados, silenciosos ou convencionais. Fizeram questão de me presentear com o tempo. A camiseta, antes panfletária, agora tem listras e botão. Em lugar dos cigarros franceses, chocolates meio amargos. Antes eram os braceletes fluor, agora é kit de barbear. Não ganho mais vodka e, sim, prosecco argentino. Se antes faziam festas-surpresa, agora me convidam para um chá. O avesso do avesso ao que deve ser. Continua a prevalecer a fé aos sete ventos e à saudade de Aleafar, incrédula às inversões do mundo, dos nomes, das pessoas de alma bem pequena, convicção vacilante, incerteza e hesitação. Saudade de Ledraj e seu olhar. Assim também é Ikrup. Asséptico, dorme em berço de falso ouro, numa cela artificial, rodeado de fotografias distorcidas e que, entre um cigarro e outro, cospe palavras impensadas. De outro extremo, Id, filho de escravos, nascido depois da lei de emancipação, ingênuo e perplexo, perdeu o rumo das próprias histórias e se encerrou como o escritor de um livro só. E eu, enfim, Okram, um marco de fé raciocinada e calma, sem tantas palmas a esperar. Minha única curiosidade é ver onde o sol se esconde. Caminho até o espelho mais próximo e inverto as alcunhas no reflexo. Lavo o rosto, passo as mãos, tiro as roupas usadas, faço um batismo de água e perco o fim de tarde sozinho, no entreposto da solidão. Eis o avesso do avesso ao que deve ser, senão. Sem nome ou sobrenome e que, pelo menos, mente a ordem do que sente sem sentir. Assim, do jeito exato e contrário que o seu nome escrevi.

Marco Antonio Jardim