domingo, 24 de fevereiro de 2013

PÍLULA DO RIO AZUL - Número 58



Estou, novamente, dobrando o Cabo da Boa Esperança. Vislumbrando, desta vez, minha tão almejada descoberta à Índia. Melhor dizendo, ao Rio. Aliás, esperança é um nome tão bonito, um bem tão desejado, um pedaço de qualquer bom lugar, uma cobiça maior que as estrelas sobre o mar e o marinheiro. Por ocasião, o marinheiro é o que dirige, com hospitalidade, a embarcação do táxi até Santa Teresa. Diz-se que é bairro nobre. Prefiro ver como uma parte da serra tão exclusiva quanto o encanto do rosto do atendente da padaria orgânica. Uma vista tão inteira ao entardecer, ao satisfazer a imagem do impulso do tempo. Tal qual um relógio de pulso que para pra ver o bonde chorando a cada minuto. A cada detalhe do casario quase intocado. Alguns grisalhos, cinzentos, do século XIX aos anos 40. No meio da tarde de Santa Teresa recebi um chamado de alento. Não foram os ecos do convento, nem dos imigrantes, muito menos dos hipsters. Subindo as ruas Joaquim Murtinho e Almirante Alexandrino, no imaginado bonde amarelo tracionado por muares, recebi o chamamento dos que residem ali. Dos bons e maus sob o sol que brilha independente. Minha descendência parecia estar ali naquela tarde. E minha consequência era de estupor. Ou mesmo expressão de carinho. Sagrada lágrima do bondinho. No Cafecito, dizem que sagrado é o que se sente. Eu, ali, era só um homem profundo, um frame de segundo. Todas as realidades e fantasias tomando forma. Da pracinha Odilo Costa Neto ao final da escadaria colorida, formei opinião. Perdi qualquer traço de glória pessoal pra dar um ar coletivo à movimentação. Pra ganhar tempo na história sem perder um certo vigor juvenil. Ainda que eu tivesse voltado ao tempo, como se meu passatempo fosse andar pelo Montmartre carioca, pelas vielas, ladeiras e ruas estreitas, meu semblante, ao fim das contas, era, sim, vivaz. Estava a dançar do mirante das ruínas ao centro do Rio. Da estação das barcas ao centro do Rio. Do Lavradinho à Lapa tão descolada no centro do Rio. Da Fornalla de Botafogo aos feitiços da feira de Ipanema. Dos risos de Tamara ao abraço de Juliano na pista black da Comuna. Das faces e forças de Madonna, feiticeira, vampira, bacante, loba, morfa, morta, viva, eterna, entre outros entes, tão perto, tão rente. O Rio é assim. Tal qual o brilho encantador de Thuthia, o vestido de Clarinha, a bolsa trespassada de Rachel ou a barba de João. O abraço do Corcovado ou as mudanças do verão. Copacabana, Ipanema, Leblon. Os corredores de árvores sombreando, outra vez, a esperança em meus ombros. O Rio que conheci de vista, de fazer passar. Como os tapetes de folhas à beira-mar. Como os móveis da lojinha mudando de lugar, ou a tinta da caneta riscando as linhas em minhas mãos e as palavras perfumadas de almíscar pelos muros, pelo chão. E o imutável curso do tempo, do então. E os óculos espelhados, quadrados. Os cabelos assimétricos ou de corte levemente militar. As bermudas de alfaiataria e as camisas retrô de botão. A Gávea, a Rocinha, a Barra e as pedras enormes nas avenidas a ladear. E, claro, o mar. Os biscoitos Globo, as águas de côco. A Praça 15 de Novembro, o Teatro Municipal, o Chafariz, os palácios Tiradentes, Duque de Caxias e o Capanema. A Biblioteca Nacional, o Brasil da Central e o impressionante Paço Imperial. A energia do Convento, do assentamento e dos bancos em frente ao Cine Odeon. As ruas imprescindíveis, as vistas inatingíveis, as esquinas novas e antigas, o estreito caminho e o chopp do Amarelinho. Do Pão de Açúcar, os garotos da praia da Tijuca, da Urca ou do Circo Voador. O Glória, a Lagoa, o Morro Dois Irmãos e aquela imensidão. O Rio de Janeiro continua azul. O Rio e suas meninas. Rio do corpo molhado de Itaipava, do berro pelo Aterro, do sorriso de Laranjeiras à beira da linha do horizonte. Rio defronte a mim, incerto. E que logo começo outro por dentro, por perto. O Rio é assim. Primeiro era a cidade, depois sol e mar. Solimar e felicidade na antiga Rua da Lama, do Leme. Ao tempo em que o espírito se enche de mansuetude, se eu tivesse mais tempo, mais alma e plenitude, eu daria, eu sorriria até as pedras do Arpoador. Ah, essa saudade torrente. Embora só pareça feliz, meu tempo presente, de fato, será sempre este verão. Este Rio que corre e não cansa. Este mar sem volta, tão azul quanto cor de esperança.
MAJ