sábado, 8 de junho de 2013

QUE DÊ CERTO - Número 62

Cometa Halley
Não tornei a ver Floh desde que ele voltou pra Alemanha. De lá, enviou-me mensagens e fotografias.
Dizia: "Querido, muito tranquilo e saudável. Lembranças a todos".
Inesperadamente, na esquina de uma alameda, a das Borboletas, eis que vejo Floh outra vez. Abraçamo-nos sob a luz do sol no calçadão.
Floh está tão bonito. Os mesmos fios de cabelo genuinamente claros, jogados de lado despretensiosamente, os olhos verdes profundos, a pele rosada de tão alva, os trajes tipicamente europeus.
Mas havia algo que o tornava mais maduro. Talvez a barba espessa, os óculos com armação estruturada, ou os pensamentos e desejos, como ele mesmo afirma.
Sentamos na parte mais alta da praça, em frente às casas antigas ainda preservadas, e conversamos por algumas horas.
Ele me falou sobre Hamburgo e Berlim, sobre a festa de São Nicolau, o Parque das Águas, a Lapinha, sobre minha irmã.
Eu só tinha a falar do passado e do presente. Nada mais.
Levei-o para ver as fotografias de Vinícius e depois nos despedimos.
Talvez eu devesse tê-lo chamado à minha casa para um vinho, um brinde, um conto, mas não o fiz.
A gente sempre deseja que alguma coisa dê certo. O novo círculo de amigos, as grandes reviravoltas da vida, os compromissos com o tempo, algum casamento, outros filhos, as aventuras, as coisas seguras.
Os planos do ano, da vida, do além. Aquela pessoa querida, reverenciada.
O amor, a extremidade do amor.
O gostar muito e o venerar de fato atestado. Como bem fazem os pinguins.
A gente gosta, ou naufraga.
A gente sobrevive à morte, ou se morre de alma.
Portanto, desejo que dê certo. Os braços que fazem um país, a dona democracia, a afamada qualidade de vida, o estilo bem viver, a real dignidade de ser.
Que dê certo o gosto do finito ao infinito.
Do passageiro ao mesmo do eterno, do livre e do estritamente necessário.
Que dê certo o cubo mágico. E o chá de pêssego gelado.
Tudo há de dar certo, desejam-me. "A visão acaba, a audição acaba, o sexo acaba, o poder acaba, mas a fome continua".
Que dê certo, sem poeira, o livro de Luís Fernando Veríssimo na cabeceira. E os outros projetos possíveis.
Que recebamos as cartas de gentes supercompetentes, as pílulas preparadas na farmácia da vida, as fórmulas consistentes.
Que preguem os botões, que sirvam os agasalhos, e os abraços, e que os bons jornais sejam postos embaixo dos braços.
Que sejam lidas as páginas do Die Fackel no trem, no bonde, na caminhada a esmo. As letras controversas do poeta Karl Kraus. "Não tinha a mínima paciência com as pessoas que, no bonde, no trem ou na mesa do café, davam início a diálogos inanes sobre o tempo".
O resto é o que faz parte de ser humano. Por isso mesmo, que deem certo até assuntos requentados. E aforismos. E caras de paisagem.
Só não há lugar para lugares-comuns, clichês, ideias prontas ou opiniões fáceis.
Por isso mesmo que deem certo os botecos de minha rua. As mulheres da vida, os jovens cafajestes, a polícia e o cheiro de gordura.
E o mar. Ah, o mar. A manhãzinha ali se esgueirando pelos escritos de Virginia Woolf, pela areia e pelo humor de Mark Twain. "Um mínimo de som para um máximo de sentido", escreveu.
Pois que se adorem uma coisa e outra. Coisa nenhuma é que não é permitido desejar.
Caso haja hesitação, que se tome um copo d'água natural.
Que se veja o retrato desvanecido de Liu, vestida aos moldes dos anos 50, com enormes óculos em degradê, vestido de bolinhas, fazendo crochê na praça do orégano em Miami. Ou nylon, malha, algodão e tactel.
Que se experimente, que se esteja a par e se tenha noção.
Que se vá quando o sol ainda não foi. O sol a gente mesmo inventa, tais quais as canções de amor.
Que deem certo estes livros de receitas. Com capa de couro e cheiro de mogno fresco. Com gosto de lombo suíno grelhado ao molho de mel. Arroz com aroma de hortelã.
Bordão, bom dia, bonança.
Que se cantem "Caramel" por si mesmos.
E que não tenham receio de olhar nos olhos. Como faz meu gato persa, O Branco, que me fita e parece interrogar: "Por que chamam Guerra Mundial, se nem todo mundo participa?".
Sejam distraídos, queridos. Menos graves, menos rígidos. Voltem às origens.
Que deem certo os números. Eles também servem pra alguma coisa. Até para versos.
Há de se perceber poesia em qualquer lugar, mesmo sob os umbrais da porta. Basta mudar o jeito de olhar.
Voltem atrás, então.
Sejam francos, expostos, compartilhados, e até patenteadas sejam suas vidas públicas.
Para se ter um estilo absolutamente pessoal é só virarem os olhos ao céu, ao cosmos.
Que dê certo, por fim, esta imensa língua divina que fala a verdade com significados tão pouco iguais e tão insistentemente brilhantes.
Eu observo as estrelas e torço, apoio, espero, desejo ardentemente que dê certo.
Se não for assim, que eu me vá embora com o cometa.

Marco Antonio Jardim