segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PÍLULA DA CIRURGIA - Número 21

Capa do disco "Todos os Olhos", de Tom Zé

Bem curioso o significado do verbo internar. Especialmente quando faço uso das expressões mais cruas, digamos assim. Introduzir ou meter-se pelo interior de algo é aquilo que dá a entender. Uma noite antes de ser internado numa espécie de casa de saúde, ouvi "Todos os Olhos", de Tom Zé. Ironia. Outra expressão que consiste em dizer o contrário do que as palavras realmente significam. Lembro bem que, nesta época, eu não pensaria em passar o Natal num hospital. A ceia? Sopa temperada com éter. Tão sutil o sabor, que, como atestariam os antigos, encheu o espaço além mesmo da atmosfera terrena. Não só o fluido parecia hipotético, meus pensamentos também. Eu não sabia se podia ou não comer, ou mesmo ser comido, na antropofagia das ideias, e não da carne. Mas, a indicação do médico era enfática: "Dieta zero!". Pois que fiz valer o SUS e aceitei com alegria minha condição de paciente. De novo, aquele que tem a virtude de suportar, com resignação(!), determinadas incisões. Na enfermaria, fiquei ao lado de homens seminus. O silêncio que impuseram a eles, por variados sinais e sintomas, passava a impressão de que nem representação mental seus espíritos davam forma. Não havia, naquele espaço sem disfarces, ideia de bem e de belo. Carla, uma enfermeira que perdeu parte da voz por conta de uma infecção hospitalar, insistia para eu colocar o vestido vazado de cor esmaecida. Dei de ombros, virei ao lado na maca em que fui instalado feito um fardo estilhaçado pela guerra, e fiquei a ler Baudelaire. É dele, aliás, um crucial pensamento acerca da vida: "É um hospital onde cada doente está possuído pelo desejo de mudar de cama". Hora do almoço! Enquanto eu tentava sentir algum gosto específico do alimento oferecido, conheci os detentos de quarto. W tinha fimose. Nos exames, descobriu também um cisto. Vi quando uma outra enfermeira, esta sem nome, colocou uma sonda em seu canal peniano pra que ele conseguisse urinar. X caiu da motocicleta e feriu o braço. Levou mais de trinta pontos, e talvez demorasse a recuperar o movimento da mão. Y estava cortando lenha e o machado decepou um dos dedos. O corte foi tão profundo que chegou ao meio do pé. Z eu não conheci. Caiu de uma laje, numa altura de mais de três metros, e ali estava, imóvel numa maca durante o dia ou gemendo na madrugada. Todos homens muito simples, que, com suas histórias pessoais difíceis, faziam questão de transformar aquele tempo em riso fácil. Ainda que, irremediavelmente, rissem de si mesmos. Entre eles, fiquei conhecido como "o turista". Diante dos fatos, minha passagem ali era, sim, como um recreio. Eis que chega Lucas, o enfermeiro mais jovem. Perguntou-me se eu queria ajuda para colocar a camisola, questionou a origem do meu sotaque, quis saber o que eu lia e o que escrevia. Acionei meu repertório e ganhei confiança. Tentei um tráfico: "Você me consegue um chocolate e eu te dou... enfim, eu pago bem". Lucas abriu um sorriso saudável. Propício para o momento de padecimento ali instalado. Algumas horas depois, voltou, pediu para eu tirar a roupa de baixo, me pôs numa cadeira de rodas, guardou meus piercings, olhou nos meus olhos, e, repetindo o sorriso, disse "boa sorte", com um traço de zombaria. Levaram-me à sala de cirurgia, fria, cheia de maquinários temerosos. Um anestesista quase ausente pediu para eu sentar e arquear a coluna à frente. Segurava uma enorme seringa e aplicou o líquido no meio das minhas costas. Senti cócegas e um estranho efeito sucedeu. Perdi completamente a sensibilidade da cintura aos pés. Antes de confundir as horas, pareceu-me ter visto minha avó Nita. Lembro ainda de uma enfermeira de semblante encrespado ter colocado meu corpo numa posição inglória, que chamaram de ginecológica. Um cheiro fétido de carne humana queimada tomou conta da sala, o cirurgião ordenou que eu mantivesse a cabeça deitada, o mundo girou e nada mais vi. Acordei. Eu já estava num corredor apertado, aguardando uma troca de plantão, ao lado de uma mulher grávida de olhar perdido. Surgiu à mente, em fantasias esparsas, o fato de que nascem 213.000 crianças por dia no mundo. Meu estômago já ameaçava outros órgãos. Havia olhares mórbidos pelo vidro que separava um corredor do outro. Trouxeram-me um pão sem manteiga e leite com café. Prontamente recusei. Um dos internos perguntou o que aconteceu. Operei a alma, respondi.

Marco Antonio J. Melo

4 comentários:

  1. Apesar da antipatia total que eu tenho à hospitais e seus cheiros, gostei de viajar pelos corredores propostos.De ter recusado a comida insossa e aceitado a estranheza do ambiente. Só não me gusta estar anestesiado, penso que para operar a alma é preciso sentir e ter sentido. Mas isso deve ser assunto para um pós-operatório.
    Cura-te.
    Abraço

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  2. Ahhh, Todos os olhos!
    Quando foi lançado na mídia simplesmente o CD CAUSOU. Pelo simples fato de que todo mundo tinha certeza que era um cú!
    Os fans mais intensos de Tom Zé ficaram extasiados com tamanha criação!
    Mas para o desgosto e frustração dos árduos ouvintes, não era um anus tão desejado e sim uma boca de uma modelo qualquer.
    A ideia era meramente inválida pois o cú ficaria muito evidente devido às partes mais escuras que caracterizam essa tão famosa e gostosa parte do nosso corpo

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  3. Mas enfim, o que aconteceu com você, querido amigo? Como sempre, seu texto foi uma delícia de ler. Só acho que vc deveria ter pagado chocolate para todos os enfermos! rs
    Beijoca grande!!

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  4. Operei a alma...
    Profundo...
    Tem cara de solidão.

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