segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

PÍLULA DE UM DIA DE VERÃO - Número 36

Fotografia de J. Henry Fair

Um dia e, após, o outro. Fico em vigília, repetindo a mim mesmo pra essa memória não se esvair com o vento que passa no litoral. Nem sempre esse despertar permanente funciona, mas conto com estranhas contribuições. Conto com sonhos. Ou com a mosca que, de tanto incomodar, só me resta o corpo levantar. Quando sinto o espírito, de novo, livre, uma brisa passa. "A praia passa tudo", profetizou Luísa, olhos semicerrados. E se meus pensamentos caminham no terreno do desinteresse, uma borboleta amarela e preta sobrevoa às 11h, perto dos rochedos do mar. Subo as pedras, mas nem lembro bem o nome do rapaz cor de magma. E se ele, por mim, insiste em lembrar, passáros cantam. Um canto de tal modo absoluto que soa singular. Estou ao contrário do rastro do bom senso na areia? Bobagem. Estas são as pequenas mágicas do dia, tão pouco examinadas. Que explicação então teria o longo e profundo abraço de Anike? Talvez a menina mais linda da noite e do dia. Depois vi um moço portador de alguma perda, mas o que ponderei é que ele parecia hábil, e formoso. E o jovem tão cabeludo ao pôr-do-sol? Pastor de cavalos das dunas. Estava em lótus, sob a sombra das flores de um pequeno arbusto e de uma imensa extensão de água salgada. O mar Cáspio. O mar Vermelho. Ou aquele de J. Henry Fair, do dia e da poesia de depois de amanhã. E amanhã pode até ser que a saudade vá embora. Tal qual gosto de pão de alho. Tão bom quanto rever Rafa, do Odeon. Ou o gosto de canela que Peter, o inglês, fez-me provar. E Cole Mohr? Gosto da cor dos olhos e da sua magra diversão. E a canção "I'm All Over It", de Cullum? "Olá Inocência! Parece que somos amigos há anos". E os pensamentos em ordem inversa? Os caminhos de Ponta d'Agulha; o cinema silencioso da Coroa; o desaguado choro artesanal aos ombros de Milly e Bárbara; o sagrado Graal de uma prece no lugar das sete ondas; as enseadas por trás desse mar alto às costas territoriais; a virada cheia de fulgor e o cotidiano sem interferências artificiais; a espuma branca sob o céu, sob o bronze da pele de Pauline e El., e a luz que eu compus pra você; as águas nos pés, os picos, os olhos encerrados e tudo mais saudade nessa liberdade de amplidão. E se, por breve instante, pensei que acabou, o melhor de tudo foi ter sonhado. Não quero mesmo pecar por apatia. Sonolência mórbida em cidades da costa é o mesmo que estado de letargia, de indiferença. E a minha crença é a que vem da onda ao me acertar. E não é que foi esse vento que me ensinou a nadar? Nada de janela, pois. Ei, olha só o que eu achei. A casa aberta ao perfume da maresia. É minha ciência, minha guia. Ou, quando vejo a linha do horizonte, é a voz da consciência ditando o coração. É a lei natural dos encontros. Ou, tão somente, um dia a mais de verão.

Marco Antonio Jardim

2 comentários:

  1. Como sempre !.. adoro seus textos postados aqui !... ... .. .. .. Nao pare! rs rs...

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  2. Três vezes...e foram poucas para me adentrar na riqueza de suas palavras. Entre o sonho e a realidade eu me vi embalada pelo ritmo sereno deste texto. É difícil separar o sonho da realidade ante a destreza com que trata o tema. Devo chamá-lo joalheiro ou o esmeril? Ou os dois? Pode até parecer suspeito eu dizer as coisas, eu tecer comentários, mas não poderia jamais fugir de tamanho dever, antes que me digam que "casa de ferreiro espeto de pau". Esperar que façam palavras dos meus pensamentos? Jamais.Por isso, roubo os seus pensamentos que se transformaram em verdadeiras pérolas no mais profundo de sua essência, para tecer e falar da rica imagem de tudo que descreve. Vejo você em cada linha, em cada pensamento, como imagino Mozart ao dedilhar a teclas obedientes do piano.
    Parabéns meu Guru da palavra mágica.

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