quarta-feira, 15 de agosto de 2012

PÍLULA PELO RECOMEÇO - Número 51

Tela impressionista de Van Gogh
No toque da alvorada, depois da perda das horas, acordei de sonho luminoso. Um reencontro com meu irmão Breno, na Chapada. Avivei o texto de sua voz em pensamento, enquanto a luz invadia o quarto. Olhei-me no espelho e vi constelação em minhas costas. Muito próxima do Polo Sul Celeste. Despertei e, sob neblina, eu não estava só. Mulheres campesinas me cercavam, segurando balaios de palha, derramando pétalas em mim. Senti o cheiro, afundando no chão. Cheiro também de pão. Eu vestia o traje menos amarrotado. Vestia minha vida simples. Ainda sonolento, caminhei sob o eco da voz de uma ninfa grega consumida por amor a Narciso. De tudo, ele lhe deixou a voz. "Confesso que eu gostaria que você não fosse o que é", disse pelo fim. Passaram por mim os últimos boêmios e os primeiros operários. Tirei da bolsa o maço de cigarros que não trago mais, joguei ao chão, juntamente com a resposta de não lembro quem, de cor marrom. "Meus olhos marejaram, preciso digerir o que li", divagou o homem sem rosto pelo fim. Tocava James Newton Howard, temas de filmes. Passava o tempo por meu rosto, meus jardins, minha cidade de interior. Refletia meu espírito margeado pela sombra da cerca do Poço Escuro. O clima estava impreciso, entre o frio e o ameno. Sons de folhas secas de milho ao vento. Segui suave, vivo após alguma morte, sem temer que me enxergassem. Naquela rua, no alto de um dos novos prédios, tem uma imensa estátua de anjo. Normalmente brilha ao sol. Sentei num banco da Virgílio Ferraz, por onde, submerso, passa o Rio Verruga, paisagem sem definição. Algum tempo eu tinha, então abri o diário para rever as impressões de Odilon. "Tenho saudade da Cíntia. Às vezes a vejo e a acho linda. Parece pessoa que não vou mais ver", lembrou pelo fim. Ri sozinho, onde meus pés fincaram alma. É que recordei a visita das minhas tias. Sempre carrego a sensação de que será a última vez. É que evoquei o abraço de Kenio. Onde me perco e me acho. Onde para o tempo no mar do coração. Onde me volto às origens, fora de quartos e salas, refugiado em tempo real. É a construção social da realidade, diriam Peter e Thommas pelo fim. Ou falariam de amor. E por discorrer em candura, Adla me procurou. Pomos à vista nosso perdão. A neblina ainda deixava o horizonte um tanto indefinido. Levantei do banco e segui a manhã do meu novo caminho. Passei em frente à Câmara. Gosto de observar aquele velho casarão restaurado, amarelo, a fachada secular, os passos de assombração. Desci pela esquina do hotel desativado, no beco do Candelabro. "Qual de vocês não acha belo quando ele desce, quando deixa tudo translúcido?", ouvi alguém sussurrar pelo fim da lojinha de artesanato. Deixei-me guiar pela avenida, entre estabelecimentos de roupa e de frutos do mar, por cima de folhas caídas, até achar outra praça. Numa das mãos, eu carregava um livro de Isabel Allende, e noutra, uma bebida gelada. Percorrer o caminho assim é como um convescote de manhã cedo. É a tradução de meu universo em algumas boas palavras, a essência do meu entendimento de mundo. Viver manhã assim tem certo sabor. De beijo leve, como o que Duh desejou dar. "I Think, I Love", eu escutava, pelo fim. Pensei que, talvez, Guilherme pudesse estar na sacada da janela. E estava. Semblante grave, analista. Horas mais tarde o vi tão absorto, dormindo no sofá de Ana. Quando acordou eu queria ter dito "Olá, estranho". Pelo fim da voz calada, eu não disse. O céu, já a esta hora, não se achava nublado. Há tempos que não ficava assim. Subi as escadas. Ana que me recebeu. Numa parede da sala, uma réplica impressionista. A cor da luz ali anunciava o passar do meio dia. Raquel me ofereceu uma taça de Cabernet Sauvignon rosado. Na copa, falava-se do Rio. Sérgio lembrou o mármore de Carrara, as construções históricas, o bonde, o burburinho do Santa Teresa, o Montmartre carioca. Renata, de Minas, ensaiou um sotaque peculiar. "Vou te escrever uma lista para você sentir", disse Raquel, sorrindo pelo fim do corredor, apertando os olhos claros. Relembrei o quanto é delicado viver, de uma forma ou de outra, em cada esquina, em cada rua estreita. Luc anunciou o pôr-do-sol. Fomos todos à sacada. Tinha um cheiro de magnólia no ar. Cheiro de nova estação. Já era quase noite, quase frio. Tempos depois, num quarto de hotel, ouvíamos um fonograma e Di confiava singelas histórias. Leandro, o de olhos cor de mel, abraçou-me, deu um beijo em meu rosto e se despediu. "Cuide-se", falou, pelo fim, como um clarão. Voltei à minha casa, ao meu quarto, ao meu tempo de então. No toque do ocaso, entreguei-me de novo ao sono. "Devagar a gente se acostuma a tudo", quase ouvi de Camus, pelo fim da impressão do dia. Afinal, de onde mais vem inspiração?
Marco Antonio Jardim

6 comentários:

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  2. Benditos sejam os Deuses da inspiração.
    Se toda volta tiver o arrebatamento desta, permito o delito da sua desaparição.

    Li, ouvindo "Travessia" na voz de Milton. Me fez bem...
    Obrigado meu caro.
    Grande abraço.

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  3. Pelo fim, devo dizer que, não sei por quê, lendo seus textos, meu sotaque volta assombrosamente, como seu eu estivesse a conversar por longas horas com alguém da velha concas... E que amanhã pego estrada pra passar algumas horas por aí (ou lá, não sei).

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  4. Ainda bem que existem as oscilações! Bom ver, ler, sentir essas palavras. Acho incrível que na crise e na plenitude acha-se inspiração!

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  5. Esses dias tem sido de muita correria pra mim, mas hj nao tive aula, e pra minha consolação vim aqui ler seus textos. Fico impressionado com sua "flexibilidade" ( nao era essa a palavra exatamente, mas nao me lembro da ideal, espero que entenda ), amo os mundos que voce me leva, rs rs .. Demais.. !! ..Sabe que sou seu fã. ..

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