|
Bandeirolas |
Registrei um sonho. Sim, eu parecia estar dormindo, com as imagens de
mera fantasia se constituindo em meu espírito. Transcrevo o ato em público, para dar a ele melhor autenticidade. Era início de
tarde de domingo na praça Tancredo Neves. Apesar do contínuo e agitado vento frio, a luz que apanhava a paisagem num movimento súbito, num lance de vistas, tinha um semitom que nem mesmo
o sol adivinharia suas pistas. O tempo provocava alguma saudade. Creio que porque eu via me vendo nas crianças com
chuvinhas nas mãos. E no senhor distinto, inconfundível em seu terno bem cortado, de alfaiataria, sustentando-se, por uma das mãos, numa bengala de junco, talvez cana-da-índia ou
madeira de lei, e, em outra mão, segurando o braço de sua senhora. Os mais jovens, e mais alheios, caminhavam, de um lado a outro das
aleias da praça, apressadamente, sem as sombras das bandeirolas notar. Uma
sinfonia inteira de bandeirolas tomava o céu como mar, da praça ao vento, ali perto da igreja matriz, onde ergueram uma provisória
vila de pau-a-pique a contento. A incomparável luz do sol derramava sua sombra de dúvida no largo e no asfalto até
o piso português preservado no Jabur, onde me sentei para ler o tempo que passava entregue e nu. Aquele reflexo, da cor de um corpo em outro, fazia minha lembrança turvar. Eu ali, como numa
quermesse de interior, ao lado da ciranda, da
quadrilha e das fitas do pau-de-sebo. Vestido em camiseta branca, colar de cordas e tranças, calça solta,
sandálias de couro, bracelete indígena, feito um vinho de cajú, da cor das ripas e do
barro cru, a rememorar o quarto colorido de Marissa. Ainda que não escutássemos qualquer forrozeiro, o que vinha à mente eram os trechos de
poesia de cordel, escritos a lápis nas paredes, em alemão, inglês, francês e outras línguas mortas que não mais sei lembrar. Tive apenas a sensação de que parte de minha formação moral estava lá, sob as bandeirolas. Fui chamado
ao arraial para proferir um discurso. Usei de boa retórica, fiz gente rir e chorar, e terminei no jargão de que a paz do domingo começa em meu coração. Digo jargão porque tive que acordar da fala estropiada e as coisas no mundo da tarde materializadas pareciam um tanto entornadas, como a água servida da bacia aos pés do trovador. Na escadaria do casarão 116,
o trovador era um sanfoneiro solitário, cego da retina, que fez da paisagem sonora minha
declaração nordestina. Fiquei a conversar com Leli, que havia voltado do Canadá, e que, de lá, jamais tinha visto, em profusão, pequenas
bandeiras hasteadas no ar pelas tiras de cordão. Ela me falou que as pessoas se apegam ao frio para ver o mundo se transformar. Eu já prefiro ver
o sol brilhando assim, na praça, na seda do papel refletido pelas fendas. Foi este meu
leilão de prendas: no lugar de pretender ver disco voador, um campo de roseiras e milhares de borboletas voavam, e a grata presença de amigos que acompanhavam
a procissão. Purki e Di dividindo o saquinho de pipocas. Tam e Nai de óculos escuros. Clarinha com uma tiara de bolinhas de
São João. Em lugar do Sauvignon Blanc, quentão. No cardápio, nada de fettuccine assim. Comíamos
amendoim. Sem molho branco, sem noz, pimenta ou manjericão. O sabor era de infância e
maçã do amor. No pouco tempo que restava, antes do cair da tarde, vi renovar e brilhar um sorriso em duas meninas gêmeas
vestidas de chita, estampadas a cores inteiras, como as bandeirolas sobre
as fogueiras. Cumprimentei o rabequista Daniel, que acompanhou minha vista ao céu pontilhado de
aquarelas. "Quais cores você vê nestas formas que voam?", perguntou-me. Pois que vejo primeiro
as bandeirolas amarelas. Tudo o mais, ao por-do-sol, pareceu ainda fantasia acalentada. Tão fora que seja dos costumes quanto, da igreja,
a badalada.
Marco Antonio J. Melo
manda o povo burro q n tem conta google escolher a opção "nome/url" [a url n é obrigatório]
ResponderExcluirHora de resgatar...
ResponderExcluirAh, eu fico sim com esse teu lirismo! Eu te encontro na fluência das multidões e sempre acho que tua língua a tanto a dizer...
ResponderExcluirAdoro Quermesse! Ainda mais naquele jeito da descrição de Di! kkk
ResponderExcluirGosto de bandeirolas... De são joão, adoro, mas agora me dá uma triste nostalgia... Mas gosto mesmo assim. E esse texto é lindo, tem um ar de cores(eu acho).
ResponderExcluir