quinta-feira, 19 de abril de 2012

PÍLULA DE GOSTO SALGADO DE LEITE - Número 45


Carambola. Fruta agridoce que ponho no corpo. Estruturas totais, materiais e quase perfeitas, ricas em minerais e complexo B, que vi correr em minhas mãos muito mais que no piso de granito revestido no calçadão à beira-mar. Adeus às imitações de pedras portuguesas em nome da requalificação. Eu, que não sou besta nem nada, mas sou mutante, tratei de me pavimentar. Tostei em chocolate. Mudei de cor, feito amêndoa fermentada, torrado de cacau, a favor da estação. Suei sem parar e, em vinte minutos, marquei meu dorso com o contorno da camiseta, numa torção iogue que me permitiu ver tudo ao meu redor. O cabelo escorrido em suor, misturado a creme de pêssego, deu lugar ao DNA de cruzamento de raças. Sou chinês, envolto em casca dura, de gosto doce e delicado. Sou fino, aveludado, num tom surubim alaranjado, de enchimento marrom-poder em certas partes do meu corpo sustentado pela tiara. Sou todo fácil, assumido e alisado. Hoje tiro até a camisa pra ficar mais vistoso, procurado por todos os pescadores de água doce do sertão. Se não ando nu, é porque a bermuda amarelo quente e terroso tem estampa do Cristo Redentor apontando o dedo médio ao sul. Contorno, volume, quase um monumento tombado, um tempero de Maurita, uma Gabriela-melancia no lugar da canela. Ainda que meu bolso tenha penúria no meio dos dias, tiro onda de gatinho sim. Suculento e, à revelia das críticas das bichas, jovem, sempre jovem. Sem pé de galinha, mas cheio de grão-de-bico, de gravanço, de avanço ao Mediterrâneo pra tirar qualquer olheira da manhã com hipogloss. Ademais, se insistirem no homem velho, que saibam que o homem velho é mesmo o rei dos animais. A pele, a carne, ainda ardem sob o sol. Havia até certa diferença que gritava entre eu e os contornos dos gatos, gatas, ardendo-se na areia. É que o contraste "ressalta ao paralelo mais simples" assim, minimizou Euclides da Cunha. Diante de tanto músculo, curva, pele, órgãos e fluidos vitamínicos, meus olhos cor de mel ao sol fixavam de norte a sul da anatomia. Esconderam-se eles no afã da cinematografia só para adultos. E eu jet setter no escuro decadente. Distinguindo permanentemente o verbo que uso pra separar virtude de infortúnio, joio de trigo, peixe de espinha. Do lado bom, o bronzeado calvo na janela. Do lado incômodo, um conquistense no estilo santropeito com sacola C&A. Eu, do lado próprio, imagem Ras Tafari já de sunga e chinelo de couro. Do lado expiatório, chuva na Soterópolis. Do lado assaz, o Santo Antônio em botequim. Do lado punição, Karen, a prostituta cearense que chora quando assiste o crepúsculo. "Acho que ainda acredito em amor", disse, apertando meu músculo esponjoso na esquina do posto de conveniência que adotei. De lá que saiu Thiago, jeans de cintura baixa, cuspindo palavrão boceta sem tesão, tatuado em Sônia no peito acordado, avantajado. Entre abará e ice, amanhecemos lado a lado. No som arranhado, "A Fábrica do Poema". Eis que provo que bárbaros também amam se marcarem bom esquema. E meu paladar acentua no céu azul sem lua. Gozei ali de boa vida só pra lumiar meus atributos. Não é arrogância, mas me fiz notável e outra vez branco em Campo Grande, Castro Alves, Vila Velha e outros extremos, cortando o definhado Beco dos Artistas. Ou na banca de revistas pornô. Deve ser o espírito das estátuas de heróis que ornamentam esta praça em que armado estou. Ou seria dos gays em argamassa? Deve ser o assentamento cordial da casa de Ana e Yoshi, o casal complementar. E também seus livros, estofados, máquina de costura e, dos dias, quase tear. Cheiro de filho e flor. "Keep calm and carry on", entregou o dizer emoldurado na parede. Ou minha sede no Groove do interior. Fazendo fita no beco da Off, da esquina ao World Bar. Cris vem vindo ao meu lado de lá. Vida veio e me levou. Cris agora jaz mortificado. Em dia claro, pertinho do Farol, oração em verbo à beira-mar que uso pra casa da saudade visitar. Fica ali, depois do Largo, subindo o Amparo, passando pela Capelinha ao Tororó. Se eu não acertar agora, Vó Dilma aponta lá fora à mesa. Carambole, chocolate e amêndoa-framboesa. Chacauhaa, maçã persa e carne de pintado. Cássia da casca do tronco, cereal e grão-de-bico. E, no quintal, uma árvore carregada de figo. Dos pequenos sábios aos meus primos-irmãos, todos lambendo os lábios, refazendo o calor temporão. No centro da mesa farta, a mãe de minha alma aparta minha fome. Não há lugar como o lar e o fogo que consome no fogão. Não mexe, pois, comigo não! É que jamais ando sozinho. Saravá ao meio de um só caminho! Verbo que uso no suor, secreção opaca do gosto do peito salgado, do leite marinho.

Marco Antonio Jardim

5 comentários:

  1. Essa pílula causou salivação excessiva, suores e arrepios como efeitos colaterais, além de prazer, efeito já esperado!

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  2. Eita que esse me deixou foi confuso. Chegou hora em que eu não sabia mais se estava no Rio, em Salvador, em Conquista ou em Brasília mesmo. Caleidoscópio de ideias e sensações doces e bárbaras. Anyway, faço coro contigo e com Bethânia: "não mexe não".

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  3. Acho que as salivas foram poucas em mim, assim como as palavras me faltam diante de tanta vivência, convivência e vivacidade!! Sorvi em gole largo, de leite às vezes doce e amargo!!

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  4. WOW ..quase perco o folego .. a cada virgula, uma nova sensação ... mas a vontade de continuar provando/sentindo do gosto salgado de leite gritava mais alto !! bravissimo mio bello !

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  5. Senti a nostalgia que vem de Salvador e a saudade que tenho de lá. Imaginei o Rio também, como o colega acima. Me envergonhei quando lí o Beco dos artistas e tive sede de cerveja quando lí o beco da off. Lembrei de maresia, sol, areia grudada no corpo e água mineral congelada na garrafinha sendo vendida por um ambulante em plena orla Otávio Mangabeira, essa, sendo castigada por aquele que manda na área, o sol. Cheiros e sinestesias também foram percebidos. Os lábios salgados pelo sal do mar, mais precisamente na praia de Jardim de Alah. Esses foram os sintomas de hoje. Um abraço.

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