Fotografia de Jonathan Harris no Alasca |
Gilles Lipovetsky analisa o efêmero, o lixo do luxo, o vazio. Eu analiso a felicidade. Aos que me perguntam como estou, respondo, mecanicamente: "Feliz". É uma tese. Enunciada e sustentada. E o que não é? Maricá já dizia que não há homem feliz sem mérito. Veja os meus: chegar em casa cedo, tomar um banho longo, ler sobre a caça às baleias no Alasca, ver as imagens quase em sépia de Jonathan Harris, assistir "O Mundo de Jack e Rose" e dormir em paz. Em minha casa, por incrível que pareça, é que consigo ser o mais social possível. Há uma singular energia de proteção, a começar pelas portas, sem trancas ou chaves. Em casa, definitivamente, sinto-me seguro e diminuo as distâncias, até a que me separa de Crist. Deito na cama, sem pressão externa, e dilato o pensamento com a franqueza que me cabe. O pensamento e o gesto das mãos. Depois de fruir certo gozo, risco as mãos, nesse meu hábito quase obsessivo-compulsivo. E ouço "Paris", do Friendly Fires. Melhor: ouço "Classic", de Adrian Gurvitz. "Got to write a classic. Got to write it in an attic. Babe, I'm an addict now. An addict for your love", cantarolo como se minha voz pudesse chegar a algum lugar. Se alcança, segue às raias das ideias passadas. O alto da Serra Grande, a extensão do mar. Segundos de um retrato que não desbota. As vozes do casal francês do restaurante e a imagem fugidia dos sapeurs. A brisa do andar de cima e o reggae raiz rastejando o chão. Eu, meio que sonhando, projetando minha alma ao passado, no Tororó, no Largo. "Your Love", do The Outfield, em fita K7, com sorvete de açaí e cupuaçu. O quarto da pousada e o mundo azul ensolarado fora dela. Purki, no registro da cena mais próxima da realidade. Di, com a lente mais subjetiva. Nós três, livres e quase inseparáveis, nos azeitando, pouco a pouco, à atmosfera arrastada. Creio que seja um tempo que não se construa mais. Descer e subir a ladeira daquele bairro litorâneo parecia mesmo uma romaria cheia de areia nos paralelepípedos. Uma prece. Nós, tão soltos ao longo dos dias que não nos importávamos de ficar a maior parte do tempo em trajes sumários. No afã das lembranças, era o tempo da disputa dos melhores beijos. E do riso mais alto. Tínhamos uma filosofia tropicalista, uma festa no Canoa, os mares de água doce. Pelo mesmo beco fétido, caminhamos. Pela mesma rua inteira nos separamos. O rosto de Natal, que mais parece um ouriço fundido, arredio, deste meu breve cochilo riu. E encheu meu quarto com cheiro de pinho. Havia uma outra mulher de perturbador silêncio, e surfistas tostados, com gíria e sotaques próprios. Respiro outra vez aquele ar, deitado na cama como que na rede ou sentado na cadeira de tecido cru, ao lado do pé de jambo. Ar de mormaço, que me faz virar o corpo em direção à porta do quarto. Ainda consigo ver Rafael, do Odeon, rosto do deserto, corpo da praia, olhar tão castanho claro e sorriso tão encantador, que eu fiquei ali, quieto, observando ele consertar um ventilador. Solícito, até afetuoso, me ofereceu uma massa no Pirilampo, enquanto o dia clareava e minha visão turvava. Caminhei sem camisa, trôpego das pernas e dos miúdos, mas lindo, com meu cabelo jogado, meio bronze, um típico "Forever Young" do Alphaville. Purki dizia: "Não consigo viver tão intensamente". Di dizia: "Ohh, tão lindo". E eu mal dormia sob a sombra gramada dos coqueiros do outro dia branco, lá em Resende. Eu lia de Baby Consuelo a David Bowie, Dzi Croquetes a Salvador Dali. Inspirações que eu queria fruir. Em meio à escolha da roupa, do colar significado, da bebida quente, dos gritos de alguma intensa liberdade e dos fogos, um abraço demorado e uma oração às estrelas dos que amo. De novo, confundi a saudade com os olhos claros de Crist. E do nome de cada um que me faz vivo. E choveu. Deliciosamente, na Concha, choveu. Vi alguém fazendo yoga. Pareceu Jhon. Eu já estava, há muito, em outro tempo. Decidi voltar só, de pés descalços sobre a terra. Cansado, sim. Mas não o cansaço da tal inteligência abstrata. Não era o peso da consciência do mundo sobre meus ombros marcados pelo sol. Eu me sentia...feliz. Assim, ao fim de agosto, estirado à cama, com um arfar da alma, numa posição ao gênero do mar. Ainda que esse luxo seja um efêmero respirar.
Marco Antonio J. Melo