domingo, 15 de maio de 2011

PÍLULA DOS RESTOS DE MEMÓRIA - Número 8

Restos mortais abatidos

Recordo o trailer de "Pecados e Tentações". Começa com um sax e uma linha de baixo num estilo soturno de jazz. Luzes difusas parecem querer mostrar certa vertigem. O trânsito noturno e desfocado, visto em primeira pessoa, dá um aspecto subterrâneo ao filme. Até o Copacabana Palace parece meio decadente em slow motion. E os caracteres de elenco, com toques de máquina de datilografar acelerada, lembra filme noir. Depois aparece Leila, de vermelho sangue, maquiagem carregada, luvas e piteira, daquelas boquilhas para cigarros que alcançaram status de ícone nas mãos de mulheres muito glamourosas. E as lembranças se perdem como que no abatimento de sua própria vida real. Restos de memória púbere. Também lembrei de "O Expresso de Xangai", de Josef von Sternberg, com sua fotografia em preto e branco e a expressão inconfundível de Marlene Dietrich fazendo a cortesã de alto luxo. Shanghai Lily, sua personagem, morre em sacrifício. A imagem é rarefeita, porque não consigo mais ter a convicção do que é fato e ficção. Restos mortais, pois. Não acredito na morte, à revelia do que eu mesmo escrevi sobre sua passagem sombria por aqui. A não ser que seja o fim das esperanças, como num sonho interrompido. Sonhei que estava aprendendo a pintar. A preceptora me cedeu uma parede branca para o meu exercício. Havia um rapaz ao meu lado. Talvez se chamasse Dickens, não sei. Não registrei o que pintei, mas vi cores pardas, esmaecidas. Não lembro o que conversei com Dickens, mas havia uma inflexão confessional em sua voz. Restos de declarações de culpa. Nos automatismos dos dias, também me cercam registros que não dizem de onde vêm. Encontrei, por exemplo, Paulo Maurício num dia qualquer e ele disse: "Cada dia com mais argolas". Restos de parvoíces. Tolices ditas ao vento assim me fazem perder o ritmo do respirar e, se me falta o ar, aparecem na tela mental os azulejos frios da Cupe e os aparelhos de inalação em série, fixados à parede. A enfermeira voluptuosa me dizia que, no sábado, iria se preparar, ficar bonita e que eu poderia beijá-la para sentir o gosto do batom. Eu recebia alta antes dos dias passarem. Restos de deleites. Enquanto eu caminhava, já refeito, lembro também de um estranho que segurou meu braço e afirmou, evasivo, que eu devia a ele uma massagem nos ombros. Restos de subterfúgios. Por hora também esqueço o rosto de Natália, mas os cabelos loiros desfiados e seu incômodo com a brisa, que insistia em turvar o olhar, volta à minha mente. Ainda consigo reverberar na memória as roupas soltas de um argentino com expressão perdida e sua namorada de riso histérico. Restos de encontros e outros desencontros. Lembro de Vitor e Nani no velho sofá da garagem, mas não da face de quem me fez sexo oral. Resto banal que limpei na calça. "Meu filho, come banana. Banana alimenta, fortalece e rejuvenesce", disse minha mãe numa circunstância que já esqueci. E os koalas pedindo água a ciclistas no calor do verão? Não sei se um dia vi. O que rememoro, mesmo, é que, por vezes, enlouqueço. Restos de angústias. Revejo a cena em que Luc fez sinal de adeus quando tinha cabelos platinados. E Adailton, desnorteado, perguntando porque se convidaria a ler o que insisto em escrever. Restos sem motivos. Não lembro do tom de bom senso, mas da expressão de Luciana ao afirmar que abriu a bermuda de um homem negro para certificar a estampa de coqueiros em seu calção. Restos de canção, como quando lembro do telefone fora do gancho por dezessete segundos no dia em que me apaixonei. E que, noutro dia, cansei. Diz-se que homens apaixonados não sentem fome por despojos abatidos. Onde, então, as inteiras recordações, senão no leão que dormia, no rei que não se lembraria, nas sobras da memória de cada dia. O que recomendo? Esquecer.

Marco Antonio J. Melo

6 comentários:

  1. " Lembro de Vitor e Nani no velho sofá da garagem, mas não da face de quem me fez sexo oral. Resto banal que limpei na calça. "Meu filho, come banana. Banana alimenta, fortalece e rejuvenesce", disse minha mãe numa circunstância que já esqueci."

    Essa foi a parte mais bacana do texto.

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  2. A lembrança é dona de si mesma. Muda o anseio, muda o que te provoca. É como abrir a gaveta e encontrar restinhos de coisas antigas. E tudo que há hoje se não permanece, vira coisinha de gaveta. E sinto como vc disse, quando tiram algo da gente sem que a gente queira, e fica aquele buraco vazio, e mesmo que te devolvam seu pedaço retirado ele não cabe mais no mesmo lugar.

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  3. senti agora um cheiro penetrante de frango. Não sei se pela fotografia, ou se acabo de chegar em um restaurante no final do horário de serviço. De certo é que parei um pouco o faro, e fragrei o meu antebraço esquerdo como querendo sentir o perfume passado horas antes.

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  4. http://dendroaspispolylepis.tumblr.com/ inspirou-me a escrever.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Estudar memória só serviu para me mostrar que tenho uma péssima! Mas não foi isso que seu texto me remeteu. Ele me levou de encontro às palavras de Paul Ricoeur que há tanto tempo figura meus pensamentos. Diz ele: "Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é uma outra história. Inacabamento."

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