domingo, 15 de julho de 2012

PÍLULA DE FIM DE CENA - Número 50

Pintura de Bruce Holwerda

Perdi uma poesia escrita num papel pautado. Desmarquei uma reunião de decoração e arte. Deixei de ser no mundo a parte da mudança que eu quis ver do mundo. Não fui ao velório de Miguel. O bom e jovem homem Miguel. Perdi uma cena. E a orquídea abrindo em flor. Não sei mais se a vida segue o curso da criação eterna à morte de todas as afeições, da vida interior às relações de amor. Não sei. Não fui ao sacramento de Bianca e Danilo. Não por serem efebos, mas por eu mesmo ainda não ter acreditado no estado inspirado de paixão permanente. Descumpri o prazo do projeto de alto valor de densidade. O projeto da verdade. Trocando em miúdos, ainda uso os mesmos sapatos. Vivo imprimindo listas de pautas atrasadas. O que será que será, então? Deve ser meu cansado querer um jeito novo de reinvenção. Daí escrevi um texto sobre, sei lá, aquecimento global (e o que se poderia instituir como mudança individual). Mas todo mundo já escreveu todas as letras. Tenho, pois, travado essa luta cotidiana com palavras e inspiração. Luta vã, diria Drummond. Recolho-me ao anonimato. Até os suecos do jj o fazem! E os carecas ingleses também. E Ana Luisa quando na província argentina. De toda forma, eles são mais humanistas e sonhadores do que eu. As minhas ideias têm nascido mortas. E por mais que eu anseie por novas verdades, as eternas já estão aí. O celular não para de tocar. Deixei de atender. Deixei de marcar, orientar e assessorar entrevistas. Calei os verbos revisados. Só sento quieto numa cadeira se for para minúcias. Para coisas miúdas. Ainda que, na química do tempo e da alma, nada é tão infalível assim. Nem os diamantes. Chamem de autoironia, falsa modéstia ou o nome que quiserem dar. "A ordem das árvores não altera os passarinhos", cantou Tulipa. Não entendo mais a parte técnica das inscrições. Minha figura tardia está esculpida tão-somente no panteão dos insones febris. Meu epitáfio: breve elogio a um morto-vivo. Visto o costume, ponho o chapéu e caminho sob o guarda-chuva escuro feito fotografia esmaecida. Não fui à exposição das histórias que contam histórias das várzeas. Está tudo apagado em mim, tudo ardendo, e há suor nas têmporas. Se há crise, perco a cor, sinto o ar gélido passando pela espinha, soldo o sangue e as perturbações. Tudo parece assim...uniforme. Até a luz do sol. E as impressões de Túlio ao fim do texto. Fim de cena. "Dizem", foi como ele designou meu egoísmo cotidiano. Um expiro, eis o que sou. Claro que acredito que há amor em algum lugar, mas nada que valha uma manchete, um vestido de noiva. O tráfego da peça que preciso julgar é o mesmo da faculdade de pensar. E até deste direito pouco sei exercer. Na adversidade, até que me ponho à prova, mas desfaço as ligações. Enquanto isso, na justiça da sala, a celebridade bebe um Pinot Grigio. E eu fico a contar o tempo em lapsos de memória. Delongas, adiamentos, prazos estourados. Primeiro turno, segundo turno, descuidos, faltas, erros. Já se faz noite e a enfadonha agenda da vida não se encerrou. Está sentindo? É o cheiro da manteiga de karité da África nos meus pés e aqueles mesmos sapatos. Salivei a boca seca, escutei Joni Mitchell, mas, quando olhei o espaço sideral até onde minhas vistas conseguiram, lembrei outra vez da minha pequenez. Lá vem o vice-prefeito, o secretário global, a especialista em consciência, o marketing da Coca-Cola. Tem sempre gente importante querendo ir e vir. Esquivei-me deles pelas sombras do corredor. Meu nome está em digressão no expediente do folder. Divaguei, errante, e vou desmontar as mesas. É o papel que me cabe. Oito parafusos e a falta de um instante. Olhe que nem apontei o dedo para as alterações da arte. Picasso no Met, meço o espaço. Outro dos meus pobres afazeres. Quatro metros, quase passos. Descartei o mapa porque não há tempo hábil. O que há é erupção no Eyjafjallajokull, aumento das marés do mar Adriático e o fim de Veneza. A inexorável transformação explorando as angústias do tempo de então. Parece até poética, se não fosse ingênua essa política de vida, essa teologia da modernização. Cumprimentei jornalistas em horário de almoço. Lobby. Mato formigas enquanto eles enviam e-mails. Convenci o fotógrafo na escolha do ângulo errado. O agudo, o côncavo e o conjugado. Reuni a equipe no meio-fio, evitando amenidades. Arestas, cantos, esquinas, cidades. A rede está entrando em pane. Descartei os colunistas, não atendi a paisagista, não contei fábulas. Não fiz amém a ninguém. Não há condescendência nem solidariedade. Nada de melhor na vida é de graça. O tempo, meu bem, só passa. Desci as escadas carregando caixas, encaixotando Helenas, degrau por degrau, manual por manual. Estou queimando em mim, fazendo tudo de novo todo dia, do jeito moroso de sempre. Até chorei num canto, cansado, mas sou como Kafka, literatura fugidia. Um feito fake por dia, desviado do destino. Agora mesmo sou todo dor, um fingidor. E tenho febre. Do mar ou do amor? A gente é feito mesmo pra acabar.

Marco Antonio Jardim

10 comentários:

  1. entre províncias, Tulipas e Jenecis, sim, me vi ali. vi também, e de perto, seu cotidiano nos últimos meses. deriva-se muita coisa depois disso.

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  2. Ainda bem q somos feitos pra acabar, mas melhor q isso, é ser feito de amor e mar!

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  3. Somos sim, feitos pra acabar. Só q mais importante q isso é q somos feitos de amor e mar.

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  4. Só não acaba mesmo é o talento. Festa boa de palavras meu caro.Do meio pro fim ainda mais belo foi esse passeio.
    50 pílulas:
    Ainda há muito o que dizer desse diagnóstico?

    Grande abraço.

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  5. "Nada de melhor na vida é de graça. O tempo, meu bem, só passa." - Engraçado, sempre quando leio as Pílulas me identifico com o texto todo ou algum trecho específico. Este mesmo parece que foi providencial para mim; (mesmo que o autor Marco Antônio não me conheça pessoalmente). Tudo se encaixa perfeitamente. Sempre sou convidada a viajar em sua sofisticada leitura, acho que um ótimo não seria suficiente para qualificar teus textos, eles são simplesmente esplendorosos!

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  6. Marco Antonio, nobre nome, de dono nobre em essência e maturidade em todos os ângulos me sentidos:

    Valeu a pena retardar um horário agendado. Valeu a pena caminhar, passo a passo, com a mente febril para absorver o conteúdo deste texto. Um verdadeiro despejar de doçura, de arte, de conhecimento manifestados pela sábia palavra e indiscutível prova do saber expor tudo aquilo que traz armazenado em si. Onde encontrar palavras para definir a grandiosidade de tamanha obra prima? Tenho certeza que até aqueles que se manifestam como os melhores, render-se-iam diante de tanta riqueza.
    Que forma mais sublime de discorrer as imagens, as idéias, transformando-as num verdadeiro canto à literatura preenchida de sabedoria. Aqui quem fala não é a mãe, não é a amiga, não é mera leitora, mas, alguém que tem sede de saber, e que, em poucos segundo percebe que há muito chão ainda para andar,a fim de atingir a dimensão daquilo que tem para presentear aos seu leitores. Esse dom que você tem de prender a atenção é que nos faz ansiar pelo próximo texto.
    E hoje, dia em que chegou à Terra para alegrar a vida de muita gente,para alegrar a a nossa vida, deixo aqui a minha eterna admiração e o amor que inspira meu coração, parabenizando-o por saber usar com dignidade tudo aquilo que Deus lhe oferece. 23 de julho para mim sempre foi uma data magnífica, pois nesse dia fui presenteada com a sua chegada das esferas distantes.
    Que você seja sempre abençoado por Deus.

    FELIZ ANIVERSÁRIO! Continue mantendo acesa a sua chama de sabedoria.

    Um abraço da sua Mama Elva

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  7. A tanto tempo não tomo uma pílula, e quando resolvo toma-la mais umas vezes, é realmente tarja preta mesmo.Chorei, lágrimas me desceram dos olhos, a uma dor nesta Pílula tão linda, tão culta, tão doída e nada fake! Me embriagarei mais vezes com essa Pílula, sinto muito por gostar tanto!

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  8. "Nada de melhor na vida é de graça..." Tenho que discordar de TI, meu caro amigo." TUDO de melhOr na vida é de graça...o sOl, o mAr, a chUva, a lUa, as estRelas, o pôr do sOl,o vento, o cheiro de mato, de ar fresco molhado, a nOssa essência e uma infinidade de coisas que são invisíveis aos OlhOs...continuo amando ler tuas pílulas.BjO gRande no cOração!

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  9. Assim como um filme ou livro, "a gente é feito mesmo pra acabar" , não partindo para o inexistente e vago, mas sim dando enfase a algo que por mais que possa parecer complexo e decadente, tem sua originalidade e deve concluir o seu desfecho, seu ciclo, fim, ou como desejarem chamá-lo.

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