terça-feira, 8 de maio de 2012

PÍLULA DO TEMPO DE MINHA GERAÇÃO - Número 46

Fotografia de Thomas Jackson

Se não tenho muito o que fazer, passo o tempo que passa nas linhas das mãos. Sigo pela esquina do Málaga, na Amazonas, pela alameda ladeada de amendoeiras até o fim da Maranhão e escolho uma das mesinhas amarelas da barraca Senhor do Bonfim, na Praça dos Patos, rodeada de prédios altos, pra algo fazer. Nem que seja apenas ver o quanto a vida é bela, imensa, é tanta que não se pensa. Ver sem lamentar, sem suspirar o não percebido das vistas. Surpreendente silêncio se faz nestas horas. E você, pois, faz o quê? Ousa viver? Está, tal qual Diane em sandálias baixas, sentindo o cheiro bom de especiarias, os condimentos da esquina? Anda pela cidade se declamando fina poesia que, sob a luz do dia, cobre de claridade o poeta? É que em ruas assim fica fácil absorver a realidade. Ruas de Santa Teresa na voz escrita de Jorge Salomão. "Uma colina, um morro, um estilo de vida". Força estranha movida a sorriso que ama, como o de Fellipe, a tudo de ontem e de hoje, o que foi e o que já não é. É lá que todos se cumprimentam, ou não. Que se respira assim, fora do comum. Levanto e, preguiçosamente, desço o passeio em declive. Vejo dois gatos brancos, um deles de olhos claros. O cheiro do tempo continua o mesmo, às vezes chuva, às vezes outras águas. O feijão é de todo dia, irrecusável, gostoso e lógico. Azuki, fradinho, rajado e branco. De corda, carioca, preto, jalo, bolinha, vermelho ou rosinha. Cheiro de tempo bom, exclusivo, de confort food. Do velho vagaroso que passa ainda por trás de mim. É o tempo avisando seu vagar. É o céu laranja da tarde caindo atrás dos homens na obra. A calma profunda da minha tia Deise, o ar. Os cômodos, as peças no mesmo lugar. A mandala lilás e verde numa parede, a mesa de bambu, o santuário com imagens sincretistas e indianas, as fotos de família. Os discos e os filmes, roupas e acessórios. Uma foto de Yogananda ao lado de Jesus, um aroma de lavanda e a recordação de uma festa à contra-luz. Uma boneca chinesa, um paninho florido na pia, o perfume Cuba. Um ventilador de teto, a mesma cortina, brinquedos, mangás e souvenirs preciosamente guardados numa estante, além do vestuário espalhado. O enorme armário de madeira, o jogo de louças preservado. A areia e o pátio dos fundos. Tudo tão peculiar nesse tempo do coração. Até a lembrança amarga de minha mãe fazendo bermudas quadriculadas para me dar de presente antes de se despedir. A mesma janela em que fui chorar. Era feriado nacional. No tempo de minha geração, nunca é tarde para amar. Feito Paulo e Virgínia e seu sonho ideal. De noite, levitando, passando por cima do portão até a antiga igreja. De dia, estendendo as mãos, ateando fogo, comandando os ventos. E em meio ao tempo dessa caminhada, chá de umburana e noz-moscada. Abacate com mel pra romper a manhã. De Rubem Alves, milho, pipoca ou piruá? De Yahn Arthus-Bertrand, o espanto diante da beleza do mundo e do mar. De Thomas Jackson, o cardume dos objetos em fotografia. De Henrique, a Madre. E o pouco que a gente pisa só é cafona sob nossos pés. Sua geração é a minha, designada por uma única letra, a da que completa trinta e alguns anos, dos que fazem porque há estilo de vida no fazer. Bilíngue, coleciona wayfarers e alargadores, acha os filmes ingleses convidativos, escuta Death Cab For Cutie à noite e Edith Piafh ao dia, fumando cigarro e tomando capuccino. Não gosta de pop. Admira Edvard Munch e, por vezes, grita alto também. Talvez não faça a linha cult, mas adora Portishead. O que fazemos é exegese do profundo livro da vida que vimos. Não, não vimos a roda-gigante de Chicago, nem figuras estreando no Ártico, muito menos balões no céu. Tudo que sabemos do tempo se pauta em simples imaginação. Em outras mesas amarelas na Pão & Prosa, na arena de patinação, na Boca do Rio, na avenida Iemanjá. O bafo do meu tempo é que mareia. É domingo. Dia das meninas tomarem sorvete, do filho dar a mão ao pai pra aprender a caminhar, de ver meu irmão dançar, das folhas amarelas forrando o chão, de Jamille rir da calma que ria à calmaria. Dia de deixar o tempo resolver o que acontecer, do vento que passa e não leva, do dom de viver. É tempo de reparar, querer bem, estar bem. Do araçá no pé, do quintal de Cajazeira, das trilhas da mata e o latido do cão. Do céu nublado à saudação. Que caia a chuva, mas que não cesse essa paz de minha geração. Uns tomam doce, outros são doces. Alguns morrem na Síria, outros ainda morrem de amor. Alguns vão à universidade, estudam em gramados, sustentam ideologias, outros fazem aplicativos e enriquecem. Alguns temem a bomba atômica, outros oram no sentido do nascer do sol. Alguns votam nos republicanos ou ainda acreditam na esquerda. Outros só vestem jeans. Muitos ainda querem ir à lua, uns contam estrelas e outros são constelação. Eu, partícipe sem idade de minha geração, não sou produto pra consumação. Sou contraditório, mas sou imenso. Há, como há também em Walt Whitman, um ajuntamento eterno de coisas, gentes, sons e silêncios dentro de mim. No fim deste tempo, o que quero mesmo é comer, viver e entender o sentido de amar.

Marco Antonio Jardim

8 comentários:

  1. Mesclado de doçura, alternâncias e recortes de tecido do tempo e das lembranças, do que és, do q te tornastes.

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  2. :) lembranças leves... quase se tornaram minhas de tão aconchegantes! Pobre de quem n admire vc e seus contemporâneos...

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  3. Vou de viagem. E por mais bagagem que eu leve, mais ainda cabe na minha sacola.
    Não sei qual tempo é meu. Só sei que estou vivo e participo.

    Maravilhoso:

    " O feijão é de todo dia, irrecusável, gostoso e lógico".

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  4. E de pedaços vc se constrói e se despe para que a gente possa te conhecer e, talvez, se (re)conhecer em você.

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  5. Incrível Marco, como me deparo a cada dia que leio um texto seu, com o inusitado. Mas, não me surpreendo mais, pois sei que da fonte bem cuidada só coisas boas virão.
    Você tem uma agilidade de mestre ao brincar com a caneta (teclas) até chegar ao objeto desejado, sob o sábio comando de sua mente, aliada à emoção criadora: O texto!Vejo a destrezas de um riquíssimo artesão ao tecer, pedaço por pedaço, uma colcha de retalhos, alinhada em acabamentos de sabedoria. Impossível não se emocionar diante do que acabo de ler.Sem que o queiramos,(pois creio que outros também o sentem), acabamos nos transportando para cada ambiente, como se dali fizéssemos parte, estabelecendo cada momento como algo atemporal. Cada época que não se foi, pois se casa com o atual. É a vida levada num vai e vem, com recortes do passado que nunca morre, não apenas por serem registros de vivências, mas por falarem fundo na alma, como se o ontem fosse hoje. Vi-me sentada ao seu lado, não apenas ouvindo, mas assistindo "in locu" cada pedacinho de chão, pessoas, espaços, cheiros, sabores citados. Afinal, você é realmente, Mestre da palavra. Meu sincero orgulho! Ainda que vivido mais anos de experiências, pouco sou diante de você. Beijos da Mama Elva.

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  6. não quero me permitir esse flagrante de não ter o que fazer em algum momento. então me ocupo, e me ocupo e me ocupo, pra não perceber que "não existe amor em..." BSB

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  7. "Em outras mesas amarelas na Pão & Prosa, na arena de patinação, na Boca do Rio, na avenida Iemanjá."
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    Qual o segredo para conseguir me tocar, citando sempre meus desejos, meus anseios, meus gritos silenciosos? Porque citastes a Pão & Prosa? Porque falastes na Boca do Rio?
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    "Dia de deixar o tempo resolver o que acontecer, do vento que passa e não leva, do dom de viver. É tempo de reparar, querer bem, estar bem."
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    Porque fazes a nostalgia tomar conta do teu amigo e a saudade litorânea latejar de forma tão intensa neste ser?
    Porque dizes palavras tão belas?
    .
    Sintomas: saudades, saudades e saudades, nostalgia, sensibilidade e mudança de humor. Abraço apertado de uma hora.

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  8. Ah, fantástico !! ..o que me surpreende de fato, é como vc consegue ser "hard" e tão "angel" .. hehe, se é que vc me entende.. rs !... Bravissimo mio bello !!.. Sou teu fã.. ;)

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