sexta-feira, 6 de abril de 2012

PÍLULA DE NOVA CASA, NOVO TEMPO - Número 44


Pessoas mudam de ideias e roupas. Eu fico a tentar mudar os hábitos, mover a casa. Com destemor, peito aberto, sem deixar a coluna arquear ao carregar móveis, pequenos objetos e as boas impressões que a memória há de conservar. Na madrugada, perto da noite, sem medo de amar um novo tempo e ordem, abrindo caminhos, portas, janelas, mudando as coisas que podem ser mudadas, transformando o deserto de ideias da velha moradia em coisas da alma. Em certo momento, já noite, ao lado do entardecer, sentindo o vento no rosto, sentei numa almofada e contei estrelas em despedida. Não sei mais nem menos da vida, mas sei que ela existe e que já era a hora, desde o meio dia em pleno sol, de por tudo em outro lugar. Fiz meu silencioso ritual de separação dos cômodos vazios e recantos escuros, da rua inquieta, de pessoas e sombras que me vigiam dia e noite, da habitação mais cara ao coração, e transformei. Desci a rua do poeta e subi a 1º de Maio na manhã que seguiu ao dia seguinte. Por onde estou agora a morar, a sintonia toda é aquela que eu devia mesmo esperar. A da estranha sensação de pertencimento. Ou, como previu Sarytta, estou indo a novo rumo, novo tempo, novo alvorecer surgindo. Na composição da travessia, só me despedi, afinal, do reflexo das coisas. Do aceno fugidio na plataforma, a estação por inteira é mesmo a vida. E meu tempo, nela, é quando. A velha casa, portanto, não me segue mais. O novo tempo é o que basta, além do cool jazz. É tudo tão recompensador, diante deste inspirado compositor que é o tempo. Posso ver o céu azul da ampla janela do meu quarto e um horizonte tão vasto que mais parece que vejo o mar. É de lá que fito e saudo o infinito. Meu quarto é um rito de corredor arejado, sofá colorido, revisteiro de Paris, um closet, uma mesa de estudos, objetos que contam histórias e um espaço para praticar yoga ao lado da cama de casal. Tudo está tão no seu devido lugar quanto o barulho da água e do ar. A luz corre, inteira, por uma das salas, e se faz indireta até a orquídea sobre a peça de madeira marrom. Há livros por toda parte. De Khaled Hosseini a Ernest Hemingway, de Voltaire a Kardec, e outros títulos que bem sei. Há quadros em todas as paredes, pintados pelas mãos de minha mãe. Há janelas, vitrôs e frestas por todos os lados. Há mais janelas que todas as que há no mundo. E a gente se ilumina com os dias que chegam de fora pra dentro, por vezes em matizes de azul profundo. E a gente serena quando a tarde cai no tempo. Eis que o tempo, enfim, venceu. Enquanto isso, à nossa volta, as vozes de Marcela e Milena, crianças brincando de bola no village, gente caminhando sem pressa, famílias, sons de pássaros, uma jaqueira e um limoeiro. Pelas redondezas há mercado, marcenaria, lojinhas, padaria. Uma venda de frutas e verduras, um bar e uma praça onde levo o cão pra passear. Como num subúrbio de riqueza imaterial, se pudéssemos ter a fugacidade para ver tudo, mais bem que mal, de fato sentiríamos tudo. A velha casa já cede lugar, já se desfaz, como vislumbre ou vaga lembrança a outros silêncios mais e ao olhar embevecido neste novo lar que fica lá detrás do mundo. Ademais, a velha casa já era monte de tijolos moribundos sem pretensão, fechando as portas do meu coração. Agora, ela é um espaço vazio, com um só habitante solitário que nada possui. Sem anseios, sem movimento. Adeus velha casa. Feliz novo tempo.

Marco Antonio Jardim

11 comentários:

  1. Que descaso com a velha casa!!! Rsss.
    Aquela que te acolheu tantas vezes agora é só um pedaço do seu passado... Ainda assim, contribuiu para a sua harmonia interior quando dentro do seu quatro divagava.
    Desejo que seu novo lar te traga logo o conforto de um coração materno. Não coloque as coisas na mesma ordem anterior, pra aproveitar essa vibe de mudança. Mude tudo, até a cor das paredes. Um brinde.

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  2. Que delícia, amigo. Esse tempo que tiramos pra curtir nossas coisinhas são os mais preciosos, né? Seja muito feliz ai :D beijos mil

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  3. Mudar é essencial.. seja de lagarta a borboleta ou de boborleta a se aceitar borboleta... Quero muito esse canto seu cheio de cantos de vozes a sussurrar devaneios sãos, para que encha sua vida de luz como as janelas que sua morada possui!!! Você merece isso, essas mudanças, se aceitando borboleta!! Bju no coração!

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  4. O presente vira passado num piscar de olhos... Na verdade mesmo, o que vivemos é uma constante mudança, desde o nosso nascimento até a data de óbito. Não vou citar os clichês sobre coisas novas e mudanças, é fato e é chato, todos já sabem. Os sintomas da pílula tomada hoje foram: "desprezo material", "limpeza do interior" e "satisfação própria".

    Um abraço seguido de um beijo. =)

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  5. Se mudar é essencial, encantar-se com a leitura deste texto é mais essencial ainda. Ainda que me parecesse triste a mudança de lá para cá, a riqueza como se é aqui descrito faz com que tudo se transforme e se mostre com nuances ricas e não muito melancólicas, mas lânguidas, deslizantes e estimuladoras. Numa outra situação, a descrição dos detalhes tornariam o texto apenas um amontoado de informações, mas as mãos que os discorreram fizeram ricas de tal formas as linhas, que o momento de leitura tornou-se mágico.Nada de descuido do velho para o novo, mas apenas o encantamento da necessidade de mudança. A mudança externa que rejuvenesceu o interior íntimo de cada habitante do novo espaço. A única coisa que pecou (ou foi visto de forma diferente, sob a ótica do poeta) foi o Príncipe da Palavra ter mudado não só o sexo da limeira, que passou a se chamar limoeiro. Curioso é que fui correndo constatar a existência da jaqueira, que a sua lembrança registrou, mas meus olhos rejeitaram, dando o nome de abacateiro. Coisas de poeta mesmo, que consegue mudar o sexo das árvores e até mesmo a espécie.
    Que dizer do texto? Simplesmente ímpar.Típico de um excelente (sem exagero)joalheiro.Tenho orgulho de você, oh! Grande Homem!
    Beijos e admiração da mama Elva

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  6. Sou devoto do eterno deus Mu-Dança, como Gil. Gosto dela, como um bom geminiano. Há poucas semanas atrás, eu também ia me mudar. E, por mais trabalho que isso envolva, eu estava feliz com isso. Meu coração estava batendo diferente. Expectativas. Daí tudo mudou. E eu tive que continuar morando no meu cafofinho. Não satisfeito com essa imposição do destino, noite dessas resolvi subverter. Se não posso mudar de lugar, mudo o lugar onde preciso ficar. Troquei a ordem dos móveis da sala. Se pudesse, teria feito mais: pintar paredes, jogar coisas fora, trazer mais coisas... infelizmente o tempo anda escasso pra tanta atividade. Mas a pequena mudança que fiz, já me causou um pequeno deslocamento perceptual que se fazia urgentemente necessário. Que a sua nova morada seja doce e feliz. Quero conhecer, quando for aí ;)

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  7. A mudança é algo que se externaliza, e está sempre em movimento, por isso, precisamos sempre praticar "a mudança", para que as coisas nunca se tornem "velhas" o suficiente para serem somente descartadas, .. hehe..
    AMOOO seus textos.. !

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  8. Eu amo tudo o que foi,
    Tudo o que já não é,
    A dor que já me não dói,
    A antiga e errônea fé,
    O ontem que dor deixou,
    O que deixou alegria
    Só porque foi, e voou
    E hoje é já outro dia.
    fellipe clay .

    simpatizzei com a sua escrita abraço.

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  9. "E a gente se ilumina com os dias que chegam de fora pra dentro, por vezes em matizes de azul profundo."

    Lindo...

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