domingo, 8 de janeiro de 2012

PÍLULA DA BOA VIAGEM - Número 35

Em Serra Grande, tempos atrás

O registro exato de um sonho não me sai da cabeça. Havia subido uma serra numa estrada ladeada por mata silvestre. Incrustadas, várias casas de veraneio. Parecia que eu estava no Rio, num velho bairro, Laranjeiras ou Cosme Velho, ao lado de escritores e compositores. Numa curva, perto de uma casa, havia uma árvore gigantesca. Uma daquelas centenárias, como a jaqueira na trilha de volta da Engenhoca, em meio a blocos de concreto da construção embargada. O proprietário da casa abriu o portão, convidou para o almoço. Comida baiana, servida em cumbucas de barro. Depois ofereceu cocadas de tantos sabores e mostrou um espelho de água doce que descia sobre um gramado em declive. Lembro que tinham crianças por perto. Meninos nativos. Por vezes, minha mãe aparecia numa sacada. Nesta expansão de consciência, acordei. A propriedade do que é material ou palpável, fora da mente, é de um tudo tão diferente. Moro no alto do Guarani, um bairro suburbano, onde ainda é possível ver as pessoas nas portas das casas aos fins de semana e um horizonte sem mar. Na minha rua, a Castro Alves, há o mercadinho da esquina, o verdureiro do quarteirão acima, o cortiço ao lado do boteco com mesa de sinuca, o bar reformado ao estilo copo sujo e a casa abaixo onde se vende geladinho. Lá embaixo, numa esquina, um famoso bar de frutos do mar. Tem o moço que conserta bicicletas, o que laqueia móveis, o açougueiro e o do espetinho perto da casa de parede vermelha descascada. Não conheço muita gente, mas aceno pra alguns até a curva do Poço Escuro. Agora, por volta da noite e meia, ainda ouço gente arrastando sandálias, subindo a ladeira. Faz calor, é verão. Minha mochila está pronta pra viagem e aguardo o táxi. Entre um cochilo e outro, estou na estrada. Nai e André dormem nas poltronas ao lado, dadas as mãos. Entre um tempo e outro, estou fora da ordem, abrindo os olhos, aos planos da visão. Não sei bem se habituei à paisagem, mas, nessa autoestrada, de tudo que vi, chamou atenção a cor negra da pele do rapaz que encostou, em sombra e luz, o braço ao meu. Do outro lado da janela do ônibus, tudo é menino, menina, no olho da rua de Ilhéus. Na virada da costa, no alto da Serra Grande e nua, escuto "Girl From Ipanema" na voz crua de Amy. Abro o Carta Vieja aqui mesmo e tomo no gargalo, em memória ao reflexo das outras cores da cidade, mais bonita que em cartões-postais. Em certo tempo parece fogo, em outro parece paz, brilhando o sol a pino na feira, na praça quase lilás. E mais: parece mar. Estranho como está mais claro, aberto e simples. Até a pousada que elegemos, discreta, escondida depois de um corredor, ao lado de um pequeno bistrô de massas e cheiro de camarão. Tudo modesto nesse lugarzinho que não recordo o nome. Um pátio, com estrelas no piso avermelhado, ladeado por quartos fechados, de portas e janelas de madeira pintadas de azul. Por uma escada, Osório, o proprietário, cândido baixinho de olhos claros, leva-nos ao único quarto desocupado. Deixo as roupas sobre a beliche, os frascos nas tábuas embutidas, estendo os lençóis, espalmo o travesseiro e saio. Caminho pelas ruelas, já de tardinha, e, sim, tudo parece muito inocente, singelo, com a cor da terra corando na Concha e brilhando até os paralelepípedos da Ribeira. Praias mais vazias, o pão francês um pouco mais seco, os estrangeiros menos europeus. Ainda está lá o nítido farol, o sinal sob o sol, mas a vida parece mais real. Respiro fundo, porque sei que o mundo, atrás deste pano de cena natural, esconde segredos mais profundos. Deito e espero novo dia nascer. Mostro a polpa da minha mão ao sol. Azeito o sol nas boas vindas da falta que o mar me dá. Nesse início de nova manhã, choveu. E eu sentindo a mãozinha do pequeno nativo em minha tatuagem. E a voz de minha mãe ecoando: "Filho, boa viagem".

Marco Antonio Jardim

4 comentários:

  1. A lindeza, a doçura, a delícia de consumir-te não há como descrever... Fiz meu roteiro para uma pausa nos pensamentos e um 'play' nos devaneios... e esse roteiro inclui em primeiro plano as suas pílulas... Corado, quente e saboroso o seu texto assim como sei que foi a viagem... Maravilhoso!!!

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  2. É mesmo fato: em terra de mar, sentimos de longe a energia das águas, comigo, meus póros já percebem essa atmosfera e tudo muda, drasticamentese, no meu sentir; e no seu tb, pois essa viagem, se fosse contada sem linhas demarcatórias, tudo pareceria uma viagem honírica, quando agente se deleita de olhos fechados pela noite. Viajar, é sim, uma forma de sonhar, relaxar, aproveitar as sutilezas que nos escapam no concreto cotidiano. Eu me sinto em casa com estas suas palavras, taí o que mais prezo e quero, e o que te desejo pelos dias de 2012 e todo o resto da sua vida: mar, areia, mansidão. Abraço meu caro.

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  3. Recordo-me bem do "Filho, boa viagem!"....impressionante como você mantém esse dom de nos reter de forma mágica à leitura dois seus textos, tão sabiamente chamados de pílulas.Chego a temer uma vitaminose, tamanha a doce que recebo e me deixo envolver.
    Sinto, com a leitura, que estive lá, bem de lado a você, visualizando cada detalhe, não apenas do lugar físico, mas, desde o sonho que anteveio à viagem aos momentos enriquecidos pela magia lirica da sua narrativa, tracejando um certo bucolismo do pedacinho do céu, no decorrer da mesma; o troque mágico das duas mãos entrelaçadas; o toque de pele negra no seu braço, além dos encantos descritos pós chegada,além da pequena mão nativa sentindo-lhe a tatuagem.
    Não precisaria e nem desejaria ser uma formiguinha para captar a riqueza do local e dos momentos falados por você, já que tem o dom natural de trazer o ambiente até o leitor.
    Siga em frente, filho meu, fazendo outras pessoas felizes, despertando em outras mentes pensamentos elevados e enriquecidos pelo desejo de fazer e ser o que ainda não conseguiram, quiça pelos bloqueios causados ante tropeços nas andanças da vida.
    Segue em frente, pois seu horizonte é infinitamente rico, e espera ser conquistado.
    Beijos e mais beijos da Mama Elva.

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