terça-feira, 11 de outubro de 2011

PÍLULA DO REAL E DO IMAGINADO - Número 28

Fotografia de Kenji Onglao

Às vezes penso que os dias meus parecem um tanto excêntricos. Eu mesmo chego à conclusão de que lembram roteiros fantasiosos sim, mas nem por isso ruins. A julgar pelo que escrevo, pareço mesmo conduzir as palavras para impressionar, emocionar ou ativar o riso fácil. Ora essa, isso não me daria especial talento? A maioria até sugere que eu lance um livro. Eis que tento. "Compraria todos os seus, se os fizesse", disse Júlia, certa feita. Seria um livro cheio de sabores, a propósito. Uma salada de alface americana, agrião, rúcula, azeitonas pretas, berinjela, macarrão fuzille, passas, tomates secos, verdes e fritos, mozzarella, lombo e frango desfiados. Mesmo com todo este diverso gosto, aviso aos desavisados: os absurdos contados são estranhamente reais, ásperos e crus. Uma noite dessas, por exemplo, resolvi caminhar às 23h, desafiando o silêncio. Um cheiro fétido senti em várias partes da cidade. Urina ardida, peixe estragado, esgoto a céu aberto, lixo apodrecido, rato morto, flatos, ralos e gases outros. Tirei o piercing do nariz pra ver se o problema estava em mim. Perto de casa, um bêbado gritou: "Eu não sou ladrão! Eu não sou ladrão!". E perguntou como fazia pra se chegar assim em Itabuna. "Desce esta rua direto", apontei para a direção do tempo. Em casa, quando liguei a TV, alguém cantava: "Pense no Haiti, reze pelo Haiti". Deitei e dormi. Sonhos esquisitos estes que tenho. Eu dirigia, mas o acelerador não funcionava. Ainda assim, o tempo passava. Depois acabou o óleo e o moço do posto demorou um turno inteiro pra dizer: "Volte depois". Quando passei pelo sentido Rio-Bahia, um homem atirou pedras em meu carro e gritava, enlouquecido: "É meu, é meu! Mas não consigo!". Cheguei em casa e Gil estava lá, vestido com um incomum pijama, revelando o segredo do universo à minha mãe. "Onde está o carro?", perguntou-me. "Creio que roubaram", eu disse, como se soubesse. Imediatamente, surgiu, do nada, Neto, o vizinho do boteco vazio. "Quanto você pode me pagar pra eu dizer?", chantageou. Lembro, ainda, de ter visto, ao longo do caminho impreciso, um pássaro de cauda longa, um homem desalinhado pedindo cigarro e três velhas sulcadas e mudas, que me observavam. E também um pequenino garoto, atrás de um portão, apontando o dedo noutra direção. Perto de Candeias, um outro garoto que chorava deitado ao chão. Vi um professsor travesti ensinando educação física a um anão. Um calendário que comemorava o Dia do Roubo. Albinos assassinados na Tanzânia, para que fossem pendurados seus membros no alto dos cembros. Duas belas meninas siamesas que me ofereceram picolé. Vi Giovanna preparando um jardim no rodapé. Descobri o significado da palavra desfastio. Fui pra uma festa em alto-mar e decidi a hora exata de abandonar o navio. Ganhei de Lívia um butter toffes de caramelo na manhã de um sábado nublado. Charlote cantou fado para mim. Só pra mim e pras estrelas. Tomei vinho com Rachel, saltei os olhos de uma sacada até o distante horizonte da cidade iluminada. Marcamos um café e uma viagem a Nova York. "Você se sentiria em casa", disse meu pai, de algum lugar. Questionei essa possibilidade tridimensional. É que o mundo de fora, que chamam de real, talvez seja uma mera fantasia para escolher. Este mundo que tenho feito, meio torto, tenho tentado mais bonito o fazer. E dispus, bem escrito no diário, em várias línguas, que tudo que passo e sei, sonhando ou acordado, posso escolher ser tão real quanto imaginado.

Marco Antonio J. Melo

13 comentários:

  1. Gosto da sensação de sonhar acordado ou de acordar para o sonho quando se está de olhos abertos.

    Manoel de Barros tinha razão quando dizia: " Tudo que não invento é falso".

    abç man.

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  2. Os sonhos, dependendo de quem os sonha, são mais reais do a própria realidade! rs
    Muito Bom Marco!
    Beijão!

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  3. Criativo, sei, sim, tu és. Se és tão cru e real, qual adjetivo melhor lhe cabe: Contemplativo ou insatisfeito?
    Todo artista sofre dos dois.
    *.*

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  4. E.T.: Sofrer no sentido conotativo;

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  5. Oi. Achei muito interessante a mistura que faz de prosa e poesia. E mágica a sensação que a literatura causa quando imaginamos tudo junto com o autor.
    Muito legal...Parabéns.

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  6. E eu que pensava que meus sonhos eram absurdamente estranhos, rsrs... O estranho tbm é poesia!!
    Beijo no coração!

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  7. Amigo, eu tbm tenho uma relação muito especial com os meus sonhos. Pra mim eles são apenas outra parte da realidade que, na maioria das vezes, só eu os vivo. Meus sonhos me ajudam a repensar ideias e até mesmo a solucionar questões de física (juro!) rsrs Mas o que eu mais gosto é do tom fantástico misturado com a sensação de real. Várias vezes tive que perguntar a algumas pessoas se o que eu me lembrava tinha sido verdade ou não! E esse seu sonho me lembrou as aventuras incríveis e inesperadas das histórias de Carlos Ruiz Zafón, o escritor do livro que estava lendo quando te conheci! Continue temperando suas histórias e, assim, vai acabar virando um Chef :D

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  8. Gostei deste trecho, rs.
    " É que o mundo de fora, que chamam de real, talvez seja uma mera fantasia para escolher. Este mundo que tenho feito, meio torto, tenho tentado mais bonito o fazer."

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  9. Um dos sonhos que gostaria mesmo que fosse real é você estar dirigindo.
    Creio que me levaria até ao imaginário, de tão bom que seria.
    Felizmente, querido, entre o sonho e a realidade, vivemos nós dois, assim a vida não nos parece tão árida, seca. Não a minha, pois procuro colori-la nos mais diversos matizes, para que não o perca a grandeza de sua essência, mas a de tantos outros que ainda não aprenderam a sonhar.A sua então, tão rica, tão recheada de boas coisas...
    Beijos, beijos e mais beijos da mama única Elva

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  10. Você já viveu a sensação do sonho lúcido?! Se respondeu em seu íntimo um "ahhh.. nãoo!!!..ehhh" é porque já, e essa sua pílula de número sugestivo, 28, o número do ciclo da mulher, nos mostra quão grandioso é o sexto sentido, ou décimo sexto sentido que seja, que está na feminilidade das coisas, na bruxaria da vida. Eu vou dormir todos os dias para sonhar a realidade, e acordo à noite de olhos fechados para realizar o meu 'sonhadouro'. Mas aqui nessa realidade que me proporcionou agora, me sinto menos real, e me torna feliz, pois me tomas de forma branda e ao mesmo tempo avassaladora. Parabéns pelo dom de sonhar acordado no 'mundo real'!

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