Fotografia de Luigi Ghirri |
Sabe quando você se sente confortável em ficar consigo mesmo? Alguns chamam de egoísmo, o que, mesmo assim, não diria respeito a mim. Outros apontam a condicionada reflexão do ano e do fim (mea culpa). Prefiro pensar que são os limbos do pensamento. A coluna do meio. A fase de transição. E estou trocando a pele, sem nenhuma camiseta estampada pra maquear o alvo do tom do coração. Estou com Mari Kaoos, trazendo o vento. Ouvindo bossa nova em inglês. Criando gestos simples, exatos, e sei por onde devo andar, bonito e dedicado. Sei que, de tantos, meu irmão Breno é um dos que valorizam este aceno acertado. É um dos que exercitam comigo o tao do amor. Nada de comovente ou afetado, estou falando do tal do amor. O que alivia. Inculto ou declarado. É um imenso esgalho dentro de nós que dá pra meio mundo. E por falar nesta parte do universo habitada, resolvi remexer nos livros, na poeira das páginas dobradas. Separei um de trechos de fé, um outro do Dalai Lama e o de bolso, escrito por Almodóvar, presente de Jhon. Dedilhei os discos e dei por falta de alguns. O "Get Ready", do New Order, uma coletânea de lados b do Everything But The Girl, alguma coisa de soul, entre outros títulos perdidos. Pérolas de confessionário. Como em "Querelle", o francês. Como nos textos de Oscar Wilde. Ou na voz de Jeanne Moreau dizendo que todo mundo mata aquilo que chama de amor. E a paisagem é o porto de Brest. De novo, o tao do amor. Esse culto aos espíritos ancestrais. É como colocar o rosto pra fora da janela do carro, passar as mãos nos cabelos, sentir o vento que chamamos e simplificar a vida neste sinal. É o que diz meu mapa astral. Então, vi Indira, Suca e a pequena Valentina de mãos dadas num passeio. O venerado amor caminhando. Nestas horas nem preciso de cigarro pra descrever estas breves perspectivas. Nada mais de Paris dos cafés, dos maços de Gauloises, do elmo alado dos gauleses invencíveis. "Um dia vamos viver em Paris. Vou te levar ao club showcase. Te apresentar um garoto francês. E, toda noite, observaremos as estrelas". Não, Ed MacFarlane. Tentador seu convite, mas só quero seguir a coragem do meu coração. De algum modo, ele sabe bem o que realmente tem de ser e onde quer estar. Basta o fascínio de me imaginar em outro lugar. Pode ser o Nepal. Sobrevoar Sagarmatha no primeiro dia, o rosto do céu. No segundo, fazer só o que for do meu gosto. Na terça, aprender com os erros, mas não parar de errar. Quarta eu vou tomar decisões sozinho. Quinta pegarei uma estrada alternativa. E sexta, entre um encontro e outro, o tao do amor. Vou riscar minhas mãos com tinta de caneta. Fazer cócegas, cheirar revistas, livros, papel novo, comer yakisoba devagar. O piercing do nariz, tirar e colocar. Esticar os braços pra cima. Respirar e me sentir cinestésico no espaço. Posso até não chegar ao amanhecer, mas tenho um futuro enorme à frente e um pensamento mágico incandescente: nada há de me acontecer. Nada que seja do gosto do caos, do desespero, da lágrima ou dor. Nenhuma perda de movimento. Ninguém bradando o fim do mundo. Os emissários do medo dizem que sou mero sonhador. Que seja, melhor mesmo antever o mundo como um sonho. Ou a mais incrível invenção. "Quem inventa o mundo, o absurdo de acharmos que somos únicos. Quem inventa eu, você, outrem, outrora, a hora, agora". Quem inventou a fé do coração sabe muito da alma, não é mesmo Kaike? É que lá, do alto do décimo segundo andar da linha do horizonte sobre o mar, existe uma alienada chamada esperança, e uma outra transtornada chamada razão. Ali, em meio ao verão, sob os sons das cigarras, sentado na mureta de uma praia qualquer, talvez Itacaré, farei um afago, um carinho. A propósito, rapaz, o tao do amor significa caminho.
Marco Antonio J. Melo