quarta-feira, 21 de setembro de 2011

PÍLULA DO DIA SEGUINTE - Número 26


"Aos amigos o calor, aos inimigos o pavor", disse Jean, encerrando uma ótima conversa sobre os dias de toda a vida, atribuindo a frase a Caê, mas também referência a um provérbio popular. De toda forma, é sentencioso. Nestes dias, em que estou mais no quarto que no mundo, o que tem preenchido o tempo e os poros são as afeições recíprocas e a combinação de sons, seja na forma de inquietação acelerada, o que, invarialmente, me faz dançar de pijamas e meias sobre a cama (se for sozinho, "I Follow Rivers", de Lykke Li, se juntinho, "Human Nature", de Michael), ou no exercício da serenidade do espírito, que me desobriga de emitir qualquer opinião sobre o estado das coisas. Na verdade, isenta-me de escutar minha fanhosa voz, o que dá ao silêncio o caráter de sonora virtude. No último domingo, recebi, em minha casa, em meu quarto, Milly Fada e Barbarella, personagens reais, para almoço em família e para uma oração, exercício de fé e proteção com a leitura do Evangelho. Também folheamos revistas de arquitetura e decoração, olhamos fotografias antigas, descansamos dos deveres, provamos goiabada com creme de leite, tomamos sorvete, rimos. Para dar tom a tudo mais, som. Se tem um combustível imprescindível (e insubstituível) pra eu tocar as horas? Música. É o que dá liga e faz cheirar a casa inteira de passado, presente e futuro. Mais até que diários, poesias, fotografias, ou quaisquer outros entulhos carregados de poeira. É minha ferramenta pra acordar em incendiária e certeira presença feliz. É a sombra pra eu tomar sol por horas e realçar, da pele, o verniz. E para um caudaloso banho com volume no último, impressionando minha audição. Para caminhar nos passeios, meios-fios e ruas com fones de ouvido, imaginar outros explêndidos cenários escondidos no seguir. Num passo e depois noutro, não desejo nem conversa. Só vejo gente certa, gente aberta, gente minha que caminha a partir do que eu ouvir. Meu único desejo em tomar a direção das letras, é porque darei voltas e escutarei alguma coisa que me faça sorrir. Até pra chorar, pra saudade esvaziar, música. É pista de folhetim, assunto de bate-papo, é meu dramin de viagens. É a cor do som das paisagens lá fora. E nem ligo se canto alto, sem pudor, com energia extra tomando corpo afora. Meu sintoma é o de uma trilha sonora, ainda que certamente desafinada. A que, por vezes, faço na madrugada e que só se sabe depois de feita. Para a canônica hora que se aceita, "Gloria", de Laura Branigan. Para passar pelos grafites do Beco, Beirut. Para as entendiantes segundas, o "Gosto do Prazer". E parar só o tempo, sem rasgar e ser a manhã, Joss Stone em "The Good Care". Para cruzar os braços atrás da nuca, qualquer composição de "Cor-de-Rosa e Carvão". Para conter a irritação, o som submerso na água da piscina. Para que saber que horas são? Ou pra que serve uma canção como esta? Para salvar no pen drive, em versão rhythm'n'blues, a clave de sol Beyoncé. Para as horas mortas da noite, "Depois de Ter Você". Para fechar os olhos, eu, ouvinte de minha própria respiração. Para o dia seguinte, pílula. E alguma outra canção.

Marco Antonio J. Melo

3 comentários:

  1. Uma ode à existência ritmada! Um salve aos descompassos, percalços e tropeços nas partituras do caminho. Um caminhar descalço sobre notas, sem se preocupar com o bom tom, nem como soará o timbre das horas.
    Ora, vida que é vida, tem que ter trilha sonora.

    Abraço meu bom.

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  2. Ah coisa boa que é a trilha sonora da vida... tem música que fica eterna, outras mudam seu significado com o passar dos tempos, tem música que é só uma fase e logo passa, música pra chorar, música pra amar, música pra dançar, música pra cantar no chuveiro... =)

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  3. "Sabe qual o problema da vida real?
    Ela não tem trilha sonora de ação"
    Jim Carrey

    Pode não ser de ação mas a sua vida tem sim trilha sonora...
    saudoso abraço meu amigo!
    Alexandre

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