Eu, apenas dormindo |
Se alguém me perguntar o que mais me apraz na vida, responderei: dormir. Aliás, entregar-me ao sono está além do prazer, é consolo. Chegar em casa, de noitinha ou pós-noitada, seja lá a hora que for, despir-me das roupas de cima, deitar o corpo na cama, passar a pele na extensão dos lençóis, produzir calor nas partes sensíveis, um gozo sem cópula. Não há doce mais gostoso que comer a si mesmo em sono e sair do cru tecido de um mundo sem tanto sabor. Por isso que, se interrogam qual o estorvo maior na vida, afirmo, sem mover as pestanas da manhã: acordar. Despertar é como coito interrompido. Não é excitante. Ao contrário, é bem mais sobressalto seguido de suplício. Sugerem que estou débil em minha inversão de valores. Que há de errado no deleite de sonhar, pergunto ao apresentador do Fantástico. Pedem exames médicos, resultados clínicos, terapias e eletrochoques. Compreendam, não acordo às seis da manhã, fato. Digamos que chego a levantar o bom ânimo. Ergo primeiro o dorso, como Moisés levantou no deserto a serpente. Estendo braços e pernas, bocejando. Até que tento expandir. Mas que fazer quando certas partes do corpo permanecem rijas, como a me lembrar que dormir dá profunda satisfação e acordar parece ser aflição, agonia? Para vergar estas partes, só mesmo o jorro de água fria, e os pensamentos em névoa ainda não se pensarão. Sim, todo santíssimo dia eu desperto assim, com certa distração, com as estruturas firmes e dilatadas, com resquícios de polução. Trocando em miúdos, com ereção peniana. As duas estruturas tubulares que seguem o comprimento do pênis, os corpos cavernosos, ficam cheias de sangue. A culpa é do mangue do que ando sonhando. Não tem desculpa, então. Tenho é que me arrastar para a estimulação mecânica do desjejum. Digo "bom dia" com olhos semicerrados, como se dissesse "boa morte" aos encarnados. Penso na roupa, no banho, nas coisas vãs. Tento comer a manhã, ou vice-versa. Resisto. Não funciono às segundas-feiras. Definitivamente, acordar é uma detumescência. Explico: o inverso da masturbação. E o moço do salão ainda grita: "Olha o frescor do dia!". E eu ainda na dureza da forma, me apoiando na parede, a cabeça pendendo para o lado oposto ao da gravidade. Por favor, tirem-me o vasodilatador. Lembro vagamente de ouvir "Far From The Sun", de Bebel. No que me desloca, em júbilo, daqui para o céu da ejaculação involuntária. Ah, o sono. Em mim varia de um minuto a horas, antes de acordar e subir a ladeira do desânimo. Não penso que seja mácula ou profanação, porque meu sonho erótico é como um fim de tarde no murinho ou na embarcação da praia da Pituba tomando sorvete de açaí e cupuaçu. Um contentamento quase impossível porque, do fundo, sei que vou acordar para ter de escutar perguntas intermitentes. De quando em quando, algo como "Você já pensa o que vai fazer com o décimo terceiro?" ou "Por que você nunca transou com Cecye?". Durmam-me! Deve ser o frio que me alimenta a vontade de ficar estirado à cama, roçando com as cobertas, com a consciência, assim, suspensa, tirando do tempo a fadiga de me gastar. Que sensação agradável esta, entre o real e o sonhar. É o estado da bem-aventurança em que vejo cenas sem aparente explicação. Um surdo-mudo dando a volta ao mundo com as mãos; um sujeito quebrando vidros de carro com galhos de árvore; outro homem com o coração em chama; e eu dormindo o sono dos justos na cama. Todo o resto, além das partes do corpo, parece não sentir, mas dormir não causa mal ao organismo. Há algo mais íntimo do que dormir consigo? Ao que se justifica, então, porque dormir causa ereção.