quarta-feira, 13 de junho de 2012

PÍLULA DO MAR SEM FIM - Número 48

Tela de Kathryn Lynch

Domingo de decisão, considerando, sobretudo, que é dia de desorientação, que vem depois de outrora, rumando para inumerável infinito. Talvez dilema, embaraçosa situação, como chamar o diminutivo de alguém, passar os minutos pensando se fui correto e o errado se impor. Depois de vir embora, expulso do templo do tempo, melhor assumir domingueiro o espírito encarnado e matreiro com alguma elegância. Ponho os santos indianos de barro dourado de costas à porta, como reza a história de Ariany, e vou. "Seu perfil parece argentino", disse Ed. Um rioplatense à moda antiga, talvez, mas tão malandro e poeta quanto o Brasil ou "bola japonesa no céu do sertão". Tai diz que assobio autoajuda, ou qualquer religião. Digo a ele quê o que escuto e vejo é menos que alienação. "O infinito é tão-somente fantasia", completou. Sentei no banco de alvenaria da praça Nossa Senhora da Luz, olhei a fonte um instante, tentei ler um artigo sobre a tendência do homem natural, acendi um cigarro mansamente, segurei a coleira do cão, e nada respondi. Um vestígio de homem diluído pelo sol parou e afirmou: "É distinto até com o maço de cigarros". Artur, ao contrário, costuma dizer que tenho cheiro de brechó. Lucas apela ao viço da pele. Eu, por minha altiva tez, digo mesmo que não tenho limites nem fim. Tal qual o espaço, infinito. Como quando eu caminhava pela varanda da casa de Tia Zorilda. Um cheiro de quando a vida tarda a passar, da pausa para o sorvete, do jovem casal tatuado passando ao tabique com sua criança de vestido rosa. De quando eu corria pelos cômodos antigos até o quintal de azulejos, ladeando a quixabeira. Ia às pressas à pia de louça talhada para o rosto banhar. Corria a água no rosto como que lavando as rusgas de opinião, as expressões viciadas, os pensamentos vãos. Olhava pela moldura decorada do espelho e pensava: por que justo a mim cabe a obrigação de ser eu? Assim, com princípio, menos infinito do que Deus. Movia-me então, feito síndrome de Mafalda, ao parapeito da janela. Via passar Sussuarana, Pau da Lima, Doron, até a igrejinha. Comprei meu bilhete de passagem ao futuro sem horizonte definido. Na passarela, filipetas propagandeavam cartomantes de óculos escuros. Bruscamente, numa esquina, uma moça chorava agarrada aos seus murmúrios e um homem, com arma em punho, ordenava que outro deitasse ao chão. É o mundo, sem perdão. Tudo que existe, e nem sempre se pensa, é assim...urgência, ansiando por renovada inteligência. Lentamente, sem nenhum traço de pressa, voltei pra casa e dormi, como barco a circum-navegar pelo raio do sol. Chamaram-no de Tûranor. E a tarde foi caindo ali em tom cinza-outono. Em meu sonho, uma bela mulher deu-me pimenta de cheiro, abacaxi e melaço. Um homem, de alcunha Canadá, deu-me carona de volta em sua própria barca de mar. Viagem gratuita de infinitas ondas de alegrias é dormir. "Larguei meus sonhos em alto-mar. Meu peso em ouro para quem encontrar", cantou Luiza de pé sobre a embarcação. Verso esses elementos ilimitados porque nós, poetas do sono, acertamos quando rimamos. Não fosse assim, o trecho deserto da praia do acordar seria só areia com histórias aqui e acolá. Coloquei, última vez, meus pés na água. Vi uma tábua, uma tartaruga, um cão uivando, um rapaz se equilibrando na cerca do tempo infinito e um corpo azul-dourado correndo seminu. Sustentei o olhar em rochedos não muito distantes. Pescaria de fim de tarde. Homens jogavam e puxavam a rede. Outros içavam a isca na linha do anzol e atiravam ao mar. Das canoas ou das pedras, o tempo era o da espera, o da imortal humanidade. "Homens de azul com seus peixes que brilhavam", sussurrou Coco. Despedi-me para despertar. Nuvem na baixa, sol que já não racha. Nuvem na serra, sol que já não terra. Fitei o horizonte e fechei os olhos de brisa e de fronte. Fiz amor com o tempo permanente. Se tudo em movimento é tão consagração e profundo, meus pensamentos também são. Sãos do mundo. Acordei, os olhos em júbilo, superiores a todo limite, muito além da luz do farol. Bem cabia uma profecia, cantarolei baixinho, sozinho. É que sempre que sonho com o mar, parece ser também sempre a primeira vez que o vejo, sem cessar, sem interrupção, como que o coração na maré, vestindo a fé de nunca partir. O mar, quando vejo aos domingos, é coisa que, dentro de mim, não pode ter fim.

Marco Antonio Jardim

8 comentários:

  1. Lindo demais! Dá até uma vontadinha de sair roubando várias frases para usar em cenas ou performances ou na vida. Saudade de mar.

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  2. Mamãe estava certa! Quisera todas as mães soubesse indicar as melhores direções a que seus filhos devam tomar.

    Parabéns!

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  3. "O infinito é tão-somente fantasia" e por isso que eu amo o azul. ;-)

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  4. Quando eu tiver um sonho desse.... vou tratar de n acordar! :)
    Está mais doce, ou é impressão minha?? É um prazer tão imenso sentir as sensações q vc descreve! Como eu já tinha dito... vejo as cores e formas, sinto o tato, ouço os sons... o perfume dos cheiros.... Viajo em seu mar infinito!

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  5. "Fiz amor com o tempo permanente. Se tudo em movimento é tão consagração e profundo, meus pensamentos também são."

    Domingo é sempre. Sempre aquela mistura, aquela coisa, aquilo que não conseguimos identificar. Digo por experiência própria que é a fusão da tristeza com a tranquilidade. Um beijo, Marquinho. =)

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  6. Querido,
    este aqui agradece sempre as visitas e os comentários pertinentes e reveladores do "eu", em sentido diverso, lá no Conta Tu.
    Em tempo, ando de fato um pouco ausente das esquinas virtuais. Porém sempre atento aos teus escritos. :)
    Tô tentando, aos poucos, levar um pouco da observação cotidiana mais crua para o que experimento escrevendo ( coisa que você faz com rara maestria nas pílulas). E, como tudo que move vem de uma contradição, ando expondo as minhas e as do mundo e, sempre que dá, tocando em frente. Penso que se achássemos respostas para as tais perguntas fundamentais, nosso enredo perderia a graça do mistério, existir seria tão maçante quanto uma tarde de domingo pode ser, se assim nós permitirmos.
    O resto - parafraseando o maestro- graças a Deus é mar.
    E por mais que se navegue, nas águas ou dentro de si, muito mais há de ser mar meu caro.
    Nesse intento de ser são, pra onde vais, marinheiro?

    Abraço. Saudade. Fica com Deus.

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  7. É esse mar de idéias que faz com que os seus textos tornem-se cada vez mais ricos e prazerosos de se ler/ver. O jogo de idéias, aliado às imagens tão bem descritas, promove uma riqueza tão semelhante à realidade, aquilo que vem de um sonho. A mistura é perfeita, o traçado do cenário, o frescor da brisa, o azul do mar, o cheiro de gente passando de lá para cá, tudo cria o mágico encanto de uma rotina diferente das demais.A habilidade em promover a mistura da realidade com a ficção torna o seu texto ainda mais convidativo à leitura. É esse encantamento que a palavra produz que deixa qualquer um que sabe o que quer tão extasiado. Assim estou eu neste momento, e sem sombra de dúvidas, feliz por estar aqui no instante e no tempo certo, "como que o coração na maré, vestindo a fé de nunca partir", e com uma vontade danada de ler, ler e reler.
    Parabéns, filho meu, por mais esta Pérola, ou melhor, esta Pílula, que cura qualquer um da apatia.

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