Escultura de Antony Gormley |
Tomara que a cidade possa ver a cara alegre, a cor do som distinta no gosto do prazer. Parecia prévia de festejo, Caio. Eram, no entanto, lábios secos, seca no coração de outros, racionamento no regime de Assad. Dizem que é preciso que se suporte lagartas antes de conhecer borboletas. É como uma solenidade colorida, efeito da cachaça jararaca, cheia do chocalho da ébria vida. Depois de alguns copos, outras mulheres e um mesmo desejo fêmeo da vulva ao útero, as melhores histórias surgem aqui e ali, como uma infinidade de possibilidades, como nas esculturas de Antony Gormley. Vi culminância na arte ruge, Caio. Auge na órbita do corpo do garoto de programa. Alterego. Mergulho cultural e estético, afeto sexual. Muito depois da vigília destes satélites artificiais, eu vi um arco-irís. Celeste, de alianças, sem chuva, feito bandeira num circuito da cara, coragem e altivez. Um espectro contínuo que brilhou vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta e anil. Uma parada que não viu desordem, só se viu feliz, com gentes, gêneros, orientações, idades, verdades. Gente alegre, Caio. E todo o sentido da continuidade. Da mulher que cortou um broto alheio para o próprio jardim ao tenente valente que se vestiu com o short carmim. Das poc poc às barbies do Chuí. Das caminhoneiras às femininas. Do (fe)menino bem mais porto alegre que seguro. Dos curiosos aos que usavam brincos rosa-choque escuro. Das duas faces de Eva e "um certo sorriso de quem nada quer", você riu. Do senhorinho esguio subindo a ladeira com seu paletó largo e seu tempo sem pressa ao garoto de sandálias gastas empurrando a galinhota de verduras. O que vi, Caio, foi histórico escapismo, encantamento e ilusão. Vi uma prece ao infinito. Das estradas olhei aos lados por costume e por gosto. As estradas do entreposto do passado, sob sol e vento. Da montação à celebração, foi o que vi. Noutro tempo, via meu pai. Guardava filmes na geladeira. Eu, por vez, colecionava os carretéis. No teto da cozinha sem forro, um imenso montículo de cupim que descia das telhas até onde eu pudesse alcançar com as mãos. Nas tardes de sábado, como esta de agora, cheias de sol, meu pai levava melancia e jaca ao quintal para reunir a família. A nossa rua não tinha tanto comércio e a casa era caiada de amarelo, gasta pelo tempo. Ficava vazia também aos domingos, sem veneração. Ah, Caio, eram estes os velhos e bons sonhos. Nem todos se concretizaram, mas foi bom tê-los. O tempo é este processo profundo de adaptação, descoberta e sobrevivência, sem miopias, sem vassalagens. Morrer, hoje, não basta. Morrer é que é o mal-estar do século. Talvez por isso não tenha me despedido de Elvira. Sei que vou reencontrar sua discrição. Não é conformismo nem princípio de incertezas. Não é nem sequer o pensar em me pensar demais, Caio. É só o imaginar do sentido e do fazer da vida. Pois quando me vi embaixo daquele gigantesco tecido multicor, daquele estandarte simbólico, fiquei com vontade de gritar o que sou ou de chorar em despedida, como fez Clarinha. Só sorri e pensei no quanto as coisas da vida parecem fulgazes, fantásticas e inatingíveis. Eu sou mesmo um clichê ambulante, Caio. Um heure bleu, um azul intenso da França ou, por Alain Bergala, sou o aprendizado do amor incondicional. Em outras vezes sou só impressão. Vez em quando toco pandeiro como Rayza. Toco violão como Massumi, Duh ou João. Fotografo como Purki. Ou desenho rabiscos iguais aos de Xande. Ou me faço jovem ator, como Dani. Geralmente, Caio, escrevo. Cartas. Ou escrevo para velhos, como gritou Sônia nos mesmos sonhos adiados. "Quando escrevo pra você, é como se escrevesse pra mim mesmo", você costuma dizer. Em algumas horas sigo os dez mandamentos desse espírito livre, em outras envelheço. Tenho um pensamento móvel por demais ou o que tenho é culpa. Peço sua desculpa, Caio. Peço pra ver a remissão da minha dívida. Faço agora minha romaria bretã, no afã de dizer que meus dias não eram assim. "E quando passarem a limpo, façam a festa por mim", completa você. Onde fui acostumar meu olhar, hein? Naqueles dois? Marejei os olhos ali, no jogo de cena, nas memórias, na poesia, no cinema de Almodóvar, na música da minha cara lavada, na repartição, para pedir perdão por minha língua incompreensível, por minha letra morta. Eu estava, sim, "num deserto de almas também desertas". E vendo Raul ou Saul, lembrei de Jhon. A calça jeans meio caída, o jeito de cruzar as pernas, a cabeça um tanto baixa, o olhar apertado, oriental, o sorriso inesperado, a fala mansa, mineira, a profunda beleza de pele branca, o abraço eterno e o jeito de pedir um cigarro. Lindo, sempre assim, feito luz natural. Não foi um dia de calma o que vi, Caio. Mas dormi nu, como um arco-íris na cartola. E acordei me perguntando se sou, de fato, imortal.
Marco Antonio J. Melo