quarta-feira, 7 de março de 2012

PÍLULA DO PEITORIL DA JANELA - Número 41

Imagem de Tim Jarason

Sim, estou na extensão da dimensão do paraíso, do luxo de espontaneidade natural, de alma recompensada. De alguns dias pra cá, meu olhar cerrado se assenta num mar interior, a uma quadra da janela do apartamento. À meia altura da imensidão, abro as persianas de madeira e respiro ar e maresia. Reminiscências ainda da serra, enumeradas. Não como o mundo de cadáveres enunciados sucessivamente no poema de Colombo, mas com um intuito bem longínquo de me livrar delas. À frente dessa janela, uma criança sorri tocando o sino da trave. Mãe e filha passam caminhando, de mãos dadas, vestidas de primavera, ao longo da sacada amarela do casarão da Câmara. Operários, sentados em fila numa sombra de meio-fio, tocam o tempo chupando melancia. De algum espaço gourmet, um cheiro de bolo de puba. E o eco sussurrado de "Louisiana". Um moço, com roupas em desalinho, passeia com cães Basset. E um certo amanhecer cheio de neblina persiste sobre a serra. Alguém, que não enxerguei quem, grita uma declaração de amor. Um jovem pai ensina a filha a andar de bicicleta. Num poste, um cartaz mostra John e Yoko na cama de um hotel, pedindo paz. Avisto o sobrado, ao lado da igreja da Capelinha, antes assombrado, inaugurando agora uma escola de balé. De um carro em baixa velocidade, posso ver um menino cheio de gracejos sorrindo pra mim. De um raro avião no céu azul, um sinal. Um senhor, balançando uma amendoeira, tenta espantar os pássaros. Um outro anônimo, em frente ao banco da orla, acena a esmo. Vejo, encostado no peitoril da janela, uma garota de cabelos cor-de-rosa. E um companheiro se apoiando nos ombros de outro que pilota uma motocicleta. Puxo meu short Soul Carioca sobre as coxas, pra sustentar uma perna sobre a outra. Recordo o gosto do torrone, a conversa amena e o jardim de Rafaela. O convite de Helinha para um jantar à beira-mar. Repasso um poema de Ezra Pound. O que rima sensibilidade e radar. Ou a conversão da "Conversa Infinita" de Maurice Blanchot. A madrugada. Os verbos da doação de jeans à Cotton From Blue to Green: reciclar, reutilizar, reduzir. E o sotaque esmerado de Will. Também a sugestão de Túlio a Clarah Averbuck e suas coisas esquecidas atrás das estantes da praia grande no escuro, do que aconteceu em Woodstock e do cheiro de chuva na última sexta-feira. Da feira de biscoitos, pão de alho e requeijão que fiz ao lado de minha mãe. Da frase do rapaz na fila do Candeeiro: "Te vejo há dez anos". Debruçado no parapeito, vejo até o mar do Rio de Janeiro. E a nascente do Orinoco na América do Sul. E a posição do bailarino no gestual iogue de Kenio. Vejo Don e o dia passar. E a pungente dor de Émile Friant. "Há tanto tempo que te amo", parece dizer lá da esquina onde sumiram os homens. Apagando o cigarro na neblina, onde homens outros sumirão. E o choro de despedida do casal. O luxo do semileito, o leito, o sono do leitor. Estou, sim, de olhos fechados num paraíso, tamanho o esplendor. Só solitários inveterados como eu para dar demasiado valor especial a imagens e sensações que se correspondem assim. Debruçado na travessa inferior dos marcos da janela, nada mais vejo além de pegadas. Nada além de registros, lugares vazios e histórias cruzadas.

Marco Antonio Jardim

5 comentários:

  1. Diante dessa janela existe um mundo e saber contemplá-lo também pode ser considerado um tipo de arte. Belo texto!

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  2. Engraçado como as pessoas têm seu próprio mundo, raramente se chocando com o nosso, como se fossem planetas, estrelas, buracos negros, cada um vivendo no mesmo espaço, com histórias totalmente diferentes.
    Mas a vida é essa teia mesmo, tem que ser uma aranha muito boa pra saber tecê-la e perceber seus encontros e desencontros.

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  3. Marco, seu texto é avassalador. Toma uma amplitude a medida em que as referências se tornam familiares. É como pensar a memória geracional atravessando corpos, modos, e luzes... Que bom você ter lido Averbuk. Acho que de tanto [eu] gostar, não terei o meu exemplar emprestado [emprestei para uma colega]de volta. Mas faz parte. Texto lido, ideias e memórias compartilhadas. Obrigado pela pílula do dia e as referências sensoriais. Abraços!!!

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