terça-feira, 8 de novembro de 2011

PÍLULA DA CAMINHADA - Número 30

Cena do caminho para Woodstock

Estou pensando em privilegiar certas ações para a vida. Não sei se posso chamar de ativismo ou mesmo tendência para sentimentos religiosos. O que me move é a leveza da observação. E a tentativa de mantê-la frente às adversidades que começam a fazer convites para o enfado. Quero ir às ruas por incômodo ou fardo. Fazer como na praça Zuccotti, uma ocupação. Juntar-me aos hippies, punks, aos veteranos de guerra com seus rabos de cavalo já grisalhos, às saias coloridas de Bali, às rasteiras de couro, às gentes dançando ao lado, tocando sax, sanfona ou violão, batendo palmas, panelas e vassouras com os hare krishnas, entoados pelo cheiro forte de incenso, o cheiro da ocasião. Não dispenso também os de paletó e gravata, as senhoras de trench coat e as outras que distribuem sanduíches de queijo, bife, tomate e pão de sal. Dos lugares que vou caminhar e das pessoas que desejo ver, a regra é a da diversidade e nada de mal. O único partido que tomo é o de poder escutar Beirut. Em coro, para que a voz, assim em uníssono, alcance o viaduto, a caixa d'água, o mar de Venice ou Salvador. A luz pode ser a de 70, granulada, algo estranha e antiquada, refletindo nas construções, como num filme em super-8. Nessa marcha pública de resgate à alegria, a gente não precisa de polícia todo dia. O que a gente precisa é não esquecer o rosto um do outro e dormir nu, resistente, na cama de um hotel. A gente precisa romper com a poesia de ontem e reatar o verso de hoje. Não envelhecer, jogar o mundo inteiro na mochila pra não morrer. Sim, o sonho não acabou. Vou caminhar com os pés no asfalto ou na areia, colocar os sinetes nos tornozelos, pedir carona na estrada da esperança, descer as ruas, deixar a luz do sol entrar e me apaixonar eternamente. Quando eu sair, não vou bater a porta da frente. De vez em quando e tal, mando um postal. E quando eu estiver cansado, volto o pensamento à brandura, tiro a mochila das costas no meio do caminho dos dias e a brisa vai refrescando o suor. Vou seguindo, tirando o pó da roupa e remendando a intuição. Contribuição coletiva? Por que não? Gentileza, cortesia? Nada em vão. E, da porta da casa do mundo, verei um filete luminoso de lua e estrela, no azul profundo do céu noturno de verão. Chamo de céu do Oriente. Abaixo dele, o sorriso do Éden, o olhar azul-esverdeado de Mi do Carmo, as mãozinhas de Luana sobre as minhas, o sotaque mineiro de Graci, as vozes de Clara, Denise, Caíque, e as três meninas Marias chupando pinha na saudosa Angola de Ciro, na orla, na João Pessoa. Ou jabuticaba, laranja doce, manga madura da boa. O céu agora é cor abóbora. Ali, por trás dos eucaliptos. Tem cheiro de figo e de chuva no ar. E as pessoas caminham pelas árvores ou para onde for além de lá. É uma gente assim tão minha, que eu, simplesmente, vou. Do meu coração febril sou portador. Vou para uma Wwoof para trabalhar, viver novo estilo de vida, cuidar de jardins. Lá terei lugar para cozinhar, outro para dormir e capela para orar. Lá vou fazer yoga e meditação. Espalhar amigos pelas mesas e eles se apropriarão, se juntarão todos numa longa chaise, sem idade e sem gêneros, e serão universais. Talvez eu queira viver e ter venturas, sentir e ver diferente das estruturas atuais. Mas o que quero mesmo é poder escolher. Criar ou recriar, vestir-me de cores ou continuar nu, ler Quintana ou Chico Buarque de Holanda, experimentar todos os amores e entregar-me a todos os sabores. Eu quero ter esse poder sem pudor. E, caminhando com os outros, eu vou. Sem muito papo, sem muito explicar. Cheirando a gosto de mar, feito sábado, feito príncipe, pássaro a flutuar. Eu vou do jeito que sou e não quero nem conversa com quem não tem amor. Pode até estar às moscas o meu coração bobo, como dizem. Mas, como se lê no cartaz da caminhada, meu coração não tem corrupção.

Marco Antonio J. Melo

6 comentários:

  1. "Do meu coração febril sou portador." é do que são feitos os versos..os melhores saem dos corações febris e sobem às rubras faces de quem não tem o que dizer por ficarem perplexos diante de tanta febre.Peço um termômetro, quero que essa febre me atinja.. Sem explicações... apenas aplausos mudos, pois estes também se calaram ao "te ler"!!

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  2. Tão bom quanto saber fazer o próprio caminho, é perceber que o teu caminho te fez.
    Abração meu caro, lindo isso ai em cima.

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  3. "Dos lugares que vou caminhar e das pessoas que desejo ver, a regra é a da diversidade e nada de mal." Grata, Marco! Um caminhar assim tão leve há de ser bom.

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  4. ''Talvez eu queira viver e ter venturas,''
    Como viajei neste trecho, o poder da escolha, de qual caminho seguir, do que se privilégiar para algumas outras tantas coisas alcançar, semeando o que daqui pra frente irá se cultivar.
    Vivendo de todas maneiras o que mais te agrada.
    mei sem lógica, mas foi o que veio na cabeça ao ler, rs.
    Muito boa esta pílula, haha'
    {aaaaa} Mudei a foto, acho que a atual etá mais condizente, não?

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  5. "Eu vou do jeito que sou e não quero nem conversa com quem não tem amor."
    Suas palavras soaram, hoje, para mim, como um bálsamo, Marco Antonio.
    Esta é a primeira vez que acesso seu blog, voltarei certamente. Denso e sincero o que li.
    Só sentimentos bons rolaram enquanto o lia.
    Abraços.

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