Fotografia de Luigi Ghirri |
Desde antes de nascer talvez eu saiba que tudo na vida tem um certo fundamento. A própria vida é um edifício com base sólida. Não é das construções que se vê com constância pelas avenidas, pois se faz raro o viver a vida, enquanto mais comum é ver os prédios conformistas das pessoas que apenas existem. É mais fácil, hoje, dizer que as coisas são frutos de explicações naturais. Perdeu a graça falar em milagres, acaso, sorte ou destinos pessoais. Sobretudo se movidos por estrelas. É mais fácil provar uma metade do que ser grande ou inteira. Do que ser todo em cada coisa boa, como escreveu Pessoa. Do que ser livre. Aliás, a liberdade é, dos fundamentos, o maior de todos. Maior que o adágio da vida, até. Na última madrugada escrevi, exausto, no mural: terminei a análise de uma extensa pesquisa. E, logo em seguida, questionei como se olhasse em meus próprios olhos: estou livre? Ninguém leu, ninguém curtiu. Muitas pessoas sequer assistem filmes inteiros, como fez, encantado, Fabrício. Talvez nem saibam sobre o Barravento. Nem ouvem jazz. Não sabem sobre nós, prós, contras e sobre imperfeição. Certa feita, enquanto caminhava, ali pela Lisboa, um sujeito de meia-idade, já entregue às rugas, perguntou-me as horas quando, no fundo, queria mesmo uma compensação. "Saí do trabalho tarde e, na verdade, queria encontrar alguém", disse-me, preso em seus próprios vícios. Eu mesmo tenho os meus. E aquele velho pode ser eu. Tenho vício de mar, quando também poderia provar rio de água doce. Vício de amar por uma semana. De observar o mundo e congelá-lo em letras e fotografias. Tenho o mau costume de olhar todas as provas. Esbarrei, uma vez, em fotogramas de um homem obeso, feio e nu. Faltou a mim idoneidade e, a ele, decoro. Não, não sou livre. Estou sempre sujeito a domínio estrangeiro e restrições. Não ganho mesada, não tomo Chandon, nem teço considerações. Aceito as caronas oferecidas por quem dirige um carro que também é meu. Já vi mais de três mil vídeos pornô, mas não fiz nenhum. Não apalpei ninguém, mas permiti que me tateassem a alma. Constatei, atônito, a figura altiva do tempo em minha própria barba. Para Marcos, isso é viver. Numa frase síntese, ele pareceu desprendido de qualquer calabouço. Enquanto eu questiono minha aptidão para vender ou tirar moedas do próprio bolso. E, do calor que faz agora, esta aflição. Logo eu, que sempre gostei do verão. É o tempo - este, sim, livre - zombando da minha limitação. Vanessa perguntou, então, o que parece ter valor universal para mim. Trabalhar, escrever, publicar. Baixar discos por dia, assistir filmes e ler mais revistas que livros. Fazer yoga, nadar, fumar vez em quando. Cuidar do pequeno, da família, do campo. E do quarto, que é templo, mas nem tão amplo. Sair, respirar, dançar em alguma pista. Viajar, não tanto quanto eu gostaria. Exercitar a ortografia do sorrir. Caminhar ouvindo música, beber cerveja gelada e dormir. Tentar, tentar outra vez e coisas mais que não posso declarar. Vanessa, em mais uma sinopse real, perguntou-me, tirando do meu rosto o sorriso ideal: "Tudo em você é sempre fantástico assim?". Não, não me faço livre. "Siga suas intuições", costuma dizer Nalim, numa inversão de valores. Antes, eu a aconselhava. Hoje é ela quem faz os ditames da razão. Eu nem sequer cumpro minhas penas em liberdade. E veja que nem sou antiamericano, nem nacionalista, nem estatista. Não sou politicamente correto, nem fanático e nem mesmo um homem prático. Sou tolo. Um bobo humanista. O que me faz calar é o som de um mensageiro dos ventos. É atravessar a rua pra falar com alguém. É viajar de moto por uma estrada de terra. É assistir "Um Lugar Para Recomeçar" só porque Mitch Bradley deseja ver o mar. E roubar araçá no quintal de Seu Cajaíba. Crer em disco voador. Escrever para Leandro Sarmatz, dizer que sonho em ser livre e acreditar que terei respostas. Não, não tenho o poder de qualquer proposta fazer. Ou pensar como Lucas, em que a Liberdade é seu lugar favorito. Ele, naturalmente, se referiu ao reduto de japoneses em São Paulo. Eu falo do estado da alma. Da vontade de ser livre e diferente pensar. É isso que mereço ter e que desejo saber pra, afinal, feito um oriental, me libertar.
Marco Antonio J. Melo