terça-feira, 13 de setembro de 2011

PÍLULA DO POSTO DA SOLIDÃO - Número 25

Fotografia de Sonya Kozlova

Recordo os dias em que cunhei um posto da solidão em minha geografia, na tentativa de evitar o tempo em que eu perdia planejando encontros. Para estabelecer um ponto de apoio é que eu elegia lugares assim. Um lugar de esteio que se coadunasse a mim. A regra sempre foi simples e de inconstestável eficácia: eu saía só, sem avisos prévios, e deixava as horas passarem, às vezes até a alvorada. Nesse espaço-tempo, ficava por ali pelo centro da cidade, sentado na barra de ferro da loja de conveniência ou circulando no quarteirão, com água ou cerveja nas mãos, caminhando até a igreja, sob a antiga e imensa árvore onde Purki escondeu, na copa, talheres de ouro. Fortuitamente, portanto, eu encontrava pessoas. Entenda o casual como sendo seu oposto imediato, ou seja, todo o tempo eu via e, por minha vez, era visto. Ainda assim, eu testava o limite entre ficar só e solitário, e, nesse misto, acumulava histórias alheias, relicários. Meu único senso era o da observação, e não o da caça (eu, caçador de mim?), como certas vozes levantaram em falso testemunho. Por ali eu sentava, colocava fones de ouvido e me entretinha em algum suplemento para o olhar. Ali, por exemplo, reencontrei Well. "Só por hoje", repetíamos um ao outro, reproduzindo o adesivo de um carro em passagem. Imagine que Well mora na cidade há nove anos, sempre circulou pelo Centro e jamais cruzou meu caminho. São as coisas que se sucedem num bom estado daquilo que posso chamar de um homem sozinho. Se bem que fama, às vezes, faz minha cama. E a de Luciana. Certa noite ficamos a lembrar dos restos mortais da Sociedade do Poeta Morte e cada um de seus também perecíveis membros. Lu ainda lamenta os velhos delírios do tempo. Eu, nas madrugadas, prefiro encarar fantasmas presentes. Quase sempre tomam a forma de espectros adiposos, prolixos, desdentados e aborrecidos, calçados em pesados sapatos. Eu me desprendo deste teatro de devaneios e escolho ficar só. E descalço, absorvido em minhas generalizadas limitações e rodeado pelas paredes azuis do quarto. É um hiato que há de durar, este de escolher meu quarto como o mais novo lugar de impressões. É lá que tenho autonomia e totais condições de seguir, ainda que na esfera neblinada do devir, ou, por vezes, ensolarada de um horizonte pouco linear. No meu quarto, mudo inteiro. Ou mudo só os móveis de lugar. E, se o dia amanhece, desperto espreguiçado, ainda com o bom do riso de Danfer. Não é um jeito delicioso de começar o dia? Faço fotos das sombras do meu corpo nu e publico. Pra mostrar que, pelo menos, minha pele mudou. Passo as mãos no verniz sobre a madeira da mesa que resgatei do meu avô, ainda com os restos de tinta das telas de minha mãe. Acendo um incenso de mel e escolho a carta da intuição. Meu quarto me alerta o coração pra curar, numa troca de roupa, a aparente puerícia da vida. Empilho os livros de Bartlett, Grogan, Danuza. Deixo uma revista aberta nas páginas da casa da ilha de Hamilton. Coloco uma foto de Jardel no porta-retrato chinês que ganhei do meu irmão. Escolho uma caneta, deito as costas no chão de cerâmica clara e faço um bilhete ao refúgio do quarto, aos horários flexíveis, ao firmamento. Posso até ouvir o rufar surdo dos tambores de alguma marcha escolar. Penso que devo colocar um cabideiro no canto de lá, trocar o guarda-roupa e a armação da cama de solteiro. Encho a gaveta de sentimentos, da cigarreira que Cecye trouxe de Paris ao prato andino, das caixas coloridas de disquete ao grampeador. Tudo em meu quarto tem precioso valor. Até a luz. Algumas vezes, quando estou sentado na cadeira de couro sintético, escutando Erasmo, apoio os cotovelos sobre a mesa, sustento o queixo numa das mãos e olho a janela, tentando roubar a luz das venezianas. Não há nenhuma paisagem romana pra eu me apropriar. Só há o enquadramento de luz e sombras em projeção. Este efeito é meu quarto. Meu mais novo posto da solidão.

Marco Antonio J. Melo

6 comentários:

  1. Como é deliciosa de se ler a sua escrita.
    As vezes gostaria de dar o devido valor que foi dado aos minúsculos detalhes, como foi observado no texto acima. obrigado por me fazer refletir.

    Alexandre Aragão

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  2. Ah! Filho meu! Quanta ingratidão, apregoar no facebook que não leio e nem comento os seus textos. Puro desatino.Como não comento, se eu mesma sinto a essência de cada palavra deixada sobre o papel, e refletida sobre a imagem do cenário de cada detalhe de que fala quando escreve, e quase sempre sou a primeira a comentar.
    Interessante...conheço profundamente a sua vasta capacidade adquirida ao longo da vida, por leituras de vários e vários leitores...busquei, busquei e busquei várias vezes, nas entrelinhas que sejam, algo que falasse em um dos textos, do que escrevo ou até mesmo da Escritora que lhe fala neste momento.Por ventura já ouviu falar da Escritora Elvarlinda? Conhece a sua nova linha de escrita? Creio que ainda não. Não achei. Mas, entendi, e concordo quando dizem que
    "casa de ferreiro espeto de pau". Mas, deixemos de lado isso, e busquemos " os quês" do momento.
    "Que" magnífico texto esse que acabo de ler. Sem sombra de dúvidas, não deixa lugar a comentários vazios, pois a riqueza com que você expressa através dele só faz encantar. Creio que descreveu tão bem o aspecto físico e psicológico do espaço, que não tenho mais nenhuma necessidade de entrar ali tão cedo, a não ser quando a Secretária falte, e eu resolva arrumar sua cama.
    Agora, você se esqueceu de um detalhe: a mesa que você resgatou era minha, que um dia foi do seu avô, e que foi do seu pai, e que foi de Nalin.
    Concordo com o comentário acima, quando alguém diz "como é deliciosa de se ser a sua escrita. O interessante é que quem o lê, creio eu, fica sempre com uma sensação de querer que venha mais. Portanto, está intimado a não parar.

    Beijos e mais beijos da Mama Elva

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. É que eu entendo pouco sobre estar só. Não que eu me esforce para ter alguém para amar ou pra estar sempre rodeado de gente. Sei, desde Camões, que a solidão pode ser uma ilha, um quarto, uma saudade... Mas apenas saber disso não me trouxe a solidão pra perto. Acho que minha vida itinerante fez da novidade uma eterna companheira.
    Acho que solidão é caminho pro auto-conhecimento. É matéria-prima pra inspiração. Só não pode ser refúgio para o absurdo do sofrimento.
    Belo texto. Continuo tomando as pílulas.
    Abraço

    Avante marinheiro!

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  5. Vou simplesmente dizer que adorei a pílula e que fiquei com uma dúvida: onde purki conseguiu talheres de ouro? kkkk

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  6. E que sempre lembro de vc quando vou no posto da solidão!

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