segunda-feira, 5 de setembro de 2011

PÍLULA DO IMPLACÁVEL - Número 24

 
Cansei. Das censuras projetadas, tão típicas de quem não tem muita coragem de olhar e apontar o próprio desvio. Cansei da falta de conteúdo e das idiossincrasias. Tenho preguiça, agonia de gente que se pensa demais. Não quero acordar de manhã como o que se sente famoso e bajulado. Não sou Lord Byron. Quero só felicidade e não o fardo da rima. Quero simplicidade e só. Visões de domesticidade serena e só. Feito pintura flamenga. Quero ganhar mais que um selinho em dias ensolarados. Ficar imerso em meditação, ou ressaca. Mas que seja eu e nenhum porta-voz. Porque meu estado de espírito não precisa ser oficializado. Não é casa, nem comida, nem pede polidez e inteligência. Tenho novo carimbo e uma outra essência. Sem nenhum traço de angústia pra marcar o dia que vai amanhecer. Repriso: quero só felicidade. E alguma comunhão com minha própria identidade. Ganhar um primeiro pôr-do-sol no platô da cidade. No alto da elevação de ocupação irregular, agachar, olhar as circunstâncias do tempo. De nuance, a casa ao fundo, a árvore ao lado, entregando a primavera, em certo contraste com o céu ainda chumbo. Olhar o mundo para onde mais eu puder. Dirigir minha visão temporal para o encontro de rio e mar. Para a canga estendida. O banco de tronco e a derradeira realidade que ainda não descobri. Este olhar de misticismo do homem encolhido em si. Contemplação, aliás, é meu mais novo querer, o interlúdio feito com tinta cenoura-camarão. Quero aquela pele queimada, sem camisa, de gestos mouros, entre o Café Brasil e o Favela. E a voz de minha mãe. Aquela saudade velha. O refrão da música das algas: "Nobody knows you the way you know you. But I think I do". E a alemã de cor marrom. A tatuada. A mulher do mercado. A esguia que olhou nos meus olhos. E o olhar desse homem quase escondido que se perdeu na pracinha, na viela, seguindo a ladeirinha, ouvindo as ondas baterem no breu. O olhar desse homem sou eu. Que se perde de vistas num dilúvio, correndo de cabana em cabana. Esqueço-me num beijo longo, em amor de verão, comunicado e novo, reinventando certo pensar. Ao fim, sou eu que preciso me reinventar. Colocar uma camisa polo, bermuda jeans desfiada, deixar o zíper semiaberto, o cabelo displicente, enterrar o chapéu no rosto e dormir. Antes mesmo do sol sair, ver no que vai dar a noite. Se alguém questionar minha camisa, direi: "Não leve tão a sério". Tal qual Flora, negra da Ribeira. Tal qual Guinho, mistério abrandado na areia. Dudu e a argentina sereia. Ou a festa ao lado da igrejinha, no piso do casarão português. Cansei. São quase seis. Quero água da fonte pra não envelhecer. E roubar da manhã um pôr-do-sol. Quero viver. E andar com a turma que não perde tempo, que não se pensa. A turma real. Quero valer a pena e não ser o tal da enseada. Quero recortar a linha do horizonte, o sol marcando as costas, a fronte suada e o vento passando só pra aplainar. Quero ser alga e viver na água do mar ou no ar úmido. Que seja inexorável e profundo este querer em mim. Depois, posso até achar que minha humanidade não é tão implacável assim.

Marco Antonio J. Melo

5 comentários:

  1. Por mais que alguém peça, não há como deixar o verão pra mais tarde. Pra quem é da estação, pra quem é melhor caminhando sob sol escaldante e pés na areia. Pra quem é mais à beira-mar e na modorra da noite que cheira a maresia, o sol é o de agora.
    Ser feliz, é pra já!

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  2. Entendo o que vc diz com relação à preguiça do mundo, mas ainda assim vc consegue ver a poesia e isto é o que te faz tão especial.
    Beijosssssssss...

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  3. Concordo com a moça. Não vejo versos nem trechos definidos, embora enxergue poesia pra todo lado.
    Abraço

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  4. Eh, Marco... Há sempre uma linha tênue entre presente e passado, entre a luz e a escuridão, sanidade e loucura. Acho que felicidade é o que queremos na medida, embora essa medida seja apenas o sublime, por si só e simplesmente. Antes de abandonarmos velhos hábitos, crenças e pontos de vista, faz-se necessário uma constante releitura de nós mesmos. Penso que há dias que vc se encontre com saudade de quem vc a cada dia se torna, vislumbrando sempre novas descobertas e experiências!

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  5. contemplar..e ter a certeza que a felicidade reside ai.
    tão simples de entender, dificil de ser.
    todo mundo no mesmo barco marquinho..rss
    abraço camarada.
    tomar uma qualquer dia desses.
    eaa

    felipe

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