segunda-feira, 11 de julho de 2011

PÍLULA DA PESTANA - Número 16


Minhas pálpebras movem. Não é exatamente efeito da carne dura do corpo, mas é que beiro o anseio de certa beleza pura. Não, meu corpo não é dado a obedecer as chamadas do despertador. Por outro lado, ainda é livre a vontade de minha alma soar a quem mais não acordou. Desejo, sem pestanejar, ainda que como um animal hibernante, ver milagres, acordar, comer, rugir e trepar, sob a garoa, no galho mais próximo. Tremeluzir as pálpebras e deixar passar este julho de fumaça e frio. Comentadores dizem que estou passando por um inverno entorpecido, com este olhar meio caído e a chuva que também cai por fora da pestana. Sem grana, sem impulso. Sem fama ou poder transformador. Com apneias e com ojeriza declarada a este ruído. Sem forças para remover o torpor do corpo sublimado. Nestas horas avançadas do dia, é até bom ter o contato de celular bloqueado. Porque, olhando em volta, as circunstâncias não parecem mesmo tão normais. A polícia vai na direção contrária, os carros também vão, meus olhos até estacionam no meio da cidade parada, na queda da mulher na escada e na pia espatifada no chão. Os ônibus, por hora, não passarão. Da janela, vejo, piscando para não lacrimejar, o quanto o sol é bonito. Rapte-me, camaleão. E não àquela extravagante e esquisita com visual de Madonna atropelada por um caminhão. Ofusca-me. No piscar de olhos, vai ver de mim apenas uma gota de líquido salgado, segregado do rosto ao coração. Depois disso, posso até desistir. Chega de leituras das coisas do mundo. Chega de doença social, de True Blood, de fantasia, de aquecimento global. No fundo, quero ser como os outros que vejo por aí sem pestanejar. Quero ser lindo, rico, branco, jovem, veloz, usar gloss sabor cereja e brilhar sob a luz do sol que viceja do lado de lá. Porém, quando volto ao ônibus, o máximo que sou é aquele que senta no banco de trás, que se esconde, que cochila, que perde o fim da tarde e a abdominal respiração. Quanto tédio! Peguei o caminho errado, então. Esfrego os olhos e a cara com as costas das mãos. Tento entoar alguma oração esquecida, e, depois de piscar algumas vezes mais, minha realidade está, de fato, prostituída. Meu quintal está rachando ao meio, minha mãe anda pensando em vender cachorro-quente no portão e estou recebendo doação de barras de cereal. Virei o rosto de lado, franzi a testa, semicerrei os olhinhos e tratei de encontrar outros caminhos. Vi duas meninas, assim simplezinhas, conversando com um Papai Noel. Deve ser o sol quente na cuca. Ou assumo certo ar de insanidade para ganhar comiseração, ou fecho de vez os olhos ao som de...ah, qualquer canção do Caetano. E, pra não dizer que não falei das brutas flores do querer, do vento, do bolso vazio, revi, num pensamento tardio, Hugo e as histórias mal-contadas, William com as histórias inventadas. Todos tão iguais. Na inquietude dos cílios e seus sinais, resolvi não controlar o tempo, desapegar. Alguém, no entanto, achou de passar por mim sem notar o lampejo do meu querer, provando uma pêra e minha vontade de comer. Posso saborear os frutos, mas não preciso me agarrar a todos eles. Mas, se quiser me dar um pedaço da polpa, disse eu a este alguém, vejo, pela fresta dos olhos, que devo aceitar. Sem o mais ligeiro dos movimentos, sem pestanejar. É só uma vontade de acreditar no que ainda estou vendo e no breve gosto do que estou mordendo.

Marco Antonio J. Melo

3 comentários:

  1. Quando me sinto assim faço como você. Desapego e continuo a caminhada... Com a grande diferença de que o sol de lá brilha mais tempo no horizonte que o de cá...

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  2. Portas e janelas sempre abertas. É quando não precisamos dos olhos e ouvidos externos para saber de nós e do mundo.

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  3. Nossa quanta inspiração, lindo muito lindo, faz-se pensar em tantas coisas...

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