sábado, 2 de julho de 2011

PÍLULA DA ESQUINA - Número 15

Fotografia de Wim Wenders numa esquina de Londres

Observe o ângulo. São dois planos que se cortam e formam outro. Podem bem ser duas paredes de um edifício, duas ruas, duas pessoas, duas fases de um mesmo momento. É como se explicam as esquinas sob determinado fragmento de pontos de vista. De um lado, a casa do lago. De outro, a mesa posta, atrás do vidro, com a travessa de arroz com lentilhas, guisado de merluza e salada de feijão branco com passas. De Marcela, o rumor das pessoas que se deslocam. De Dai, a convulsão do rosto em repentinos sorrisos que se esforçam. De Talita, a ciência da galhardia restrita a si. Três pessoas afastadas pelo meio da mesa, mas, sob meu olhar, três esquinas em interseção. Falando em cruzamentos, em meses, aconteceu algo quase espetacularmente inédito. Um ponto em que se atravessaram duas linhas: a do fio do meu sono e a do despertar. Na última sexta, meu relógio biológico me acordou às 5h30. Não tão ao meio da noite, nem ao clarear. Abri os olhos devagar vendo a linha do horizonte se formar. Aquela esquina entre o azul do céu e do mar da parede em meu quarto. Creio que minha mente e corpo entenderam que eu faria uma viagem. Digo viagem no sentido de me deslocar de um pensamento a outro, de me afastar do que me oprime e de me arrastar da cama, porque tudo que dorme parece esquecer de que tem que nascer de novo. É como quando meus pés tocam o chão. A precisa sensação da cerâmica fria bem pode ser um espaço de razoável distância, às terras do sem fim, ou pode ser ao sul. Seja para onde for, do ponto último azul que meus olhos amanheceram até o mais próximo do travesseiro, deixei que a luz entrasse pelas frestas de casa. Fui fazendo o prazeroso e vagaroso ritual de arrumar a bagagem do tempo para pegar a estrada do vento. Partimos, então. Mona ao lado, Júlia ao outro. Tempo e vento, mãe e filha, outro encontro defrontado na trilha da esquina. Mona pelos papeis e escritos aos direitos humanos, pelas causas coletivas, o espelho refletindo a cor de um batom vermelho e um arranjo de flor. Júlia à francesa, cabelos curtos assimétricos, echarpe de vacas profanas amarelas, óculos escuros de tonalidade marrom e as páginas gastas pelos dedos de Carlos Ruiz Záfon. Do Nobel de Obama aos panetones de Brasília, da peruca da guerrilheira à liberação sexual no Islã da submissão, das fotos do pequeno Peu às simples vidas que passarão, esquinas. Das sapatilhas esquecidas na escadaria, dos espinhos aos salgadinhos roubados antes da festa, meu olhar em observação. Vi o alto da colina da cidade se ligando à madrugada, quase ao mesmo tempo e além. Júlia vestiu minha calça de alfaiataria. Cantarolei a ela, em inglês: "Metade do que digo é sem sentido, mas eu digo só para te tocar". Voltei de uma rua à outra, passando pela ponte que liga a alameda ao ar. Dobrei a esquina onde sumiram os homens e fiz um ângulo para, noutra esquina vazia, tudo outra vez começar.

Marco Antonio J. Melo

4 comentários:

  1. Lindo, Quinho, como sempre! Adorei ver que sou tão especial pra você assim como você é pra mim! Nossas esquinas ainda hão de se cruzar muitas vezes.. Beijos e Beijos!

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  2. ainda bem que o mundo é cheio de esquinas!

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  3. Fez bem a mim entender essas intersecções. Fica mais fácil perceber a luz que paira sobre os encontros e desencontros. Princípios e desfechos.
    Parafraseando a mim, digo: não podemos perder de vista a esquina dobrada.Embora seja inevitável transpassá-las.
    Dizem que a reta é a menor distância entre dois pontos, mas tenho que distorcer essa geometria. Pra mim, a esquina é a menor distância entre dois seres.
    Abraço querido.

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  4. e de algum ponto o que alguem percebeu e talvez até sentiu..afinal um ponto é um começo ou um final..percepção..essa imagem passa muita coisa..e o seu texto tbm..

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